26 de jan. de 2021

A BALADA DO COYOTE


 

Por André Bozzetto Junior

            E então?! – questionou Sonny com impaciência, tão logo o irmão adentrou na sala – Por que demorou tanto?!

            Por que demorei tanto?! – repetiu Freddy, apontando o dedo para o próprio rosto que se encontrava coberto de hematomas e escoriações – Por que eu estava apanhando até agora! Isso responde a sua pergunta?!

            E o que eles disseram?! – perguntou Sonny, cortando as prováveis lamúrias do irmão.

            Aquilo que já esperávamos: nada de acordo! – respondeu o mais novo dos irmãos Coltrane – Amanhã de manhã Raul Prado virá buscar o dinheiro!

            Merda! – esbravejou Sonny, atirando o chapéu no chão – Mas se eles pensam que levarão o meu dinheiro estão muito enganados! Não vou pagar nada!

            Então eles vão nos matar. – ponderou Freddy, em tom desanimado – É simples assim.

            Por que vocês não pedem ajuda ao xerife Dillon? – perguntou o velho Thomas, que até então se encontrava calado, sentado em uma cadeira no canto da sala.

            Ora, velhote, você está desinformado! – retrucou Sonny – Dillon morreu no mês passado! Cursed já teve outros dois xerifes depois dele! E, infelizmente, o atual é capacho dos irmãos Prado!

            Podemos pegar em armas e nos defender... – sugeriu Kaiowa, um ancião apache que vivia há décadas na fazenda dos irmãos Coltrane e que, naquele momento encontrava-se sentado à porta, fumando um cachimbo.

            E você acha que teríamos alguma chance, seu cara vermelha?! – gritou Sonny, escabelando-se – Thomas está tão velho e acabado que mal conseguiria erguer uma winchester! Você só serve para ficar o dia inteiro fumando essas ervas fedorentas, e Freddy é um atirador tão ruim que até hoje jamais acertou um disparo!

            Acertou sim! Em mim! – exclamou Thomas – Tenho a bala na minha nádega até hoje!

            Eu já me desculpei um milhão de vezes! – retrucou Freddy, em tom de mágoa – Você sabe que eu tentei acertar o coiote!

            Estão vendo?! – resmungou Sonny – É por isso que não teríamos a menor chance em um confronto contra aquele trio de chacais!

      Coyote! Coyote! – gritou Thomas, levantando-se empolgadamente da cadeira.

            Ah, não me venha contar pela milésima vez a história em que Freddy baleou você tentando acertar um coiote! – esbravejou o mais velho dos irmãos Coltrane – Não temos tempo para isso!

            Não! Eu estou falando do Coyote! Andrew Coyote! – insistiu Thomas.

               O matador de aluguel?! – indagou Freddy, intrigado.

            Claro! – respondeu o ancião, com grande empolgação – Como pude me esquecer?! Coyote está em Cursed! Fiquei sabendo que ele está morando em um pequeno rancho do outro lado da antiga ferrovia!

            Poderíamos contratá-lo! – complementou Freddy, exultante – Pela fama que ele tem, certamente poderia dar conta dos irmãos Prado!

            Será que ele aceitaria o serviço? – indagou Sonny, com desconfiança.

            Evidentemente! – exclamou Freddy – Afinal, é o trabalho dele! Basta pagar o preço!

            Prefiro dar tudo que eu tenho a ele do que para aqueles calhordas dos irmãos Prado! – resmungou Sonny.

            Então não vamos perder tempo! – concluiu Thomas – Irei procurá-lo agora mesmo, pois não pretendo ficar zanzando por aí depois que anoitecer!

            Sem mais delongas, o ancião foi acompanhado pelos amigos até o pátio, montou no melhor cavalo da fazenda e partiu a galope sob os olhares esperançosos dos três companheiros.

            Vocês são loucos em deixar o Tio Thomas sair agora! – exclamou em tom de desaprovação uma voz feminina vinda da porta da casa – É óbvio que ele não vai conseguir voltar antes que escureça! E vocês sabem muito bem o que isso significa, não é mesmo?

            Os três homens voltaram-se na direção da residência e depararam-se com Evelyn, a filha adolescente de Sonny.

            Querida, eu já não lhe disse para parar de ficar pelos cantos ouvindo nossas conversas?! – exclamou Sonny – Isso é assunto de homens!

            Não seria mais fácil de resolver toda essa confusão se você simplesmente pagasse o que deve?! – indagou a moça, ignorando a repreensão do pai – Acho ridículo alguém apostar tanto dinheiro nas cartas se depois não quer pagar!

            Não é tão simples, Evelyn! Miguel Prado trapaceou durante o jogo inteiro, e quando eu reclamei ele me ofendeu, me esbofeteou diante de todo o Saloon de Billy Monstrengo e ainda me arremessou pela janela! É sobre reputação que eu estou falando! Ninguém me humilha desta maneira! Jamais darei a ele um único dólar!

           Você também vive trapaceando nesses jogos! Aliás, será que existe alguém que não trapaceia?!

             Eu não trapaceei! Miguel Prado foi quem trapaceou!

            Então por que você simplesmente não o desafiou para um duelo, como qualquer homem honrado faria?! – insistiu Evelyn, com petulância.

            Constrangido, Sonny desistiu de discutir com a moça e lhe deu as costas lamentando internamente pela morte prematura da esposa. Talvez, se ela estivesse viva, saberia como lidar melhor com a rebeldia da filha.

            Depois das tensões da tarde, a noite chegou e com ela veio também a sombria desconfiança de que as piores previsões de Evelyn estavam corretas. Thomas não retornou.

            Talvez ele tenha decidido passar a noite no Saloon de Billy Monstrengo... – especulou Freddy, sem muita convicção.

            Ou foi pego por um espírito da noite. – sugeriu Kaiowa, de forma bem menos otimista.

            Quando chegou a meia-noite, todos concordaram que não seria apropriado permanecerem em vigília, pois a luminosidade dos lampiões poderia atrair visitantes indesejados. Assim, desistiram de esperar e optaram por recolherem-se aos seus respectivos dormitórios.

            O fato é que o velho Thomas nunca mais voltou e jamais se soube exatamente o que aconteceu com ele. Durante os anos seguintes, passou a circular por Cursed City o boato de que ele também era visto a bordo do trem fantasma que, de tempos em tempos, era avistado por algum incauto circulando pela antiga ferrovia abandonada, repleto de almas de indivíduos que, de uma maneira ou de outra, encontraram um fim violento para as suas vidas miseráveis. Mas isso, obviamente, era algo impossível de ser comprovado, pelo simples fato de ninguém em sã consciência se arriscaria a ir até lá no meio da noite apenas satisfazer uma vã curiosidade. Circular pelas bandas da decadente estrada de ferro era algo a se fazer apenas em casos de extrema necessidade e, ainda assim, poucos dos que para lá se dirigiam retornavam para contar suas histórias de aparições e almas penadas.

            Contudo, se o velho vaqueiro não mais retornou, um outro sujeito apareceu na fazenda tão logo o dia clareou. Todos estavam na cozinha, quando o som melodioso de um violão se fez ouvir, acompanhado de uma voz suave que cantarolava uma música desconhecida:

              And here's to you, Mrs. Robinson,
             Jesus loves you more than you will know. Wo wo wo.
            God bless you please, Mrs. Robinson,
            Heaven holds a place for those who pray
            Hey hey hey, hey hey hey.

            Mas que cantoria é essa?! – resmungou Sonny, um segundo antes de dirigir-se para a porta em companhia dos demais habitantes da casa e avistar, com indisfarçável perplexidade, o indivíduo que se aproximava.

            O recém chegado era um homem jovem que tinha os cabelos negros cuidadosamente ensebados e penteados para trás. Trajava um terno azul com gravata borboleta e botas de bico fino. De seu pescoço pendia um chapéu branco preso por uma tira de couro preta e em suas mãos ele ostentava um violão de aparência antiga e mal conservada.

            Bom dia! – disse o sorridente visitante, curvando-se em um gesto cordial – Sou Andrew Coyote, do Alabama, à sua disposição!

            Esse é o tal pistoleiro?! – cochichou Sonny com o irmão – Nem arma ele parece carrega!

            Talvez ele seja como Guitar Jim... – ponderou Freddy – Aquele cara que tinha um revólver escondido em um fundo falso do violão.

            Para mim esse sujeito está parecendo efeminado demais para ser um terrível matador! – insistiu Sonny.

            Dê uma chance a ele! – retrucou o irmão mais novo – Não temos outra alternativa mesmo!

            Tentando disfarçar a desconfiança, Sonny aproximou-se do recém chegado e apertou sua mão.

            Sou Sonny Coltrane. Aquele ali é meu irmão Freddy e o apache chama-se Kaiowa. Apesar de feio ele é inofensivo.

            E aquela dama tão formosa? – perguntou Coyote, sorrindo insinuantemente para Evelyn, que, por sua vez sorria, sorria de volta.

            É minha filha, Evelyn. – respondeu o patriarca, com certa rispidez – Vamos entrar, pois precisamos conversar.

            Sem perda de tempo, Sonny perguntou se Coyote não tinha noticias de Thomas e o rapaz prontamente respondeu que não, explicando que, após visitá-lo em seu rancho, o velho foi embora e depois disso ele não mais o viu. Mesmo reticente, o patriarca deu prosseguimento à conversa e disse que Coyote deveria acabar com o trio de irmãos Prado que, em breve, aparecia para cobrar um dívida de jogo, fosse em dinheiro ou em sangue.

            Está vendo isso? – continuou Sonny, mostrando um volumoso saco de tecido – É o dinheiro que os irmãos Prado querem tomar de mim. Ele será todo seu se você nos livrar daquele trio de vermes!

            Confesso que nunca fui muito apegando a dinheiro. – retrucou Coyte, em meio a um sorriso.

            Pois eu lhe darei qualquer coisa! – insistiu o fazendeiro – Acabe com aqueles nojentos, peça o quiser e eu lhe darei! É simples assim!

            Sonny! Sonny! – gritou Freddy, entrando na sala afobadamente – Ramon Prado está vindo aí!

            Ótimo! Agora é com você! – exclamou o mais velho dos irmãos Coltrane, apontando o dedo para Andrew Coyote.

            Mas, já?! – indagou o rapaz – No meio da manhã?!

            Percebe-se que você é novo em Cursed. – disse Freddy – Aqui as contas são acertadas de dia. Ninguém perambula impunemente pela noite.

            Pegando Coyote pelo braço, Sonny o conduziu até a entrada principal da residência e praticamente o empurrou para fora, trancando a porta em seguida. Mesmo demonstrando uma inesperada insegurança, o rapaz andou na direção do segundo dos irmãos Prado, que acabava de desmontar do cavalo.

            Bom dia, amigo! – exclamou Coyote, com o sorriso que lhe era característico.

            E então?! Coltrane vai pagar o que deve ao meu irmão, sim ou não! – Vociferou Ramon Prado, ignorando a cordialidade com que foi recebido.

            Infelizmente, não. – respondeu o rapaz – Sonny mandou avisar que não vai pagar nada.

            Ah, é mesmo?! – retrucou o outro – Então deixe esse recado para ele!

            De forma súbita, Ramon Prado desferiu um violento soco no rosto de Coyote, que, surpreendido, tombou pesadamente no chão poeirento. Sem perder tempo, o agressor se aproximou do rapaz e desferiu contra ele meia dúzia de chutes que o atingiram no estômago, nas costelas e no rosto.

            Como se querendo concluir o espancamento de forma apoteótica, Prado ajuntou o violão que Coyote trazia a tira colo e, com um único e vigoroso golpe, quebrou-o contra a cabeça do próprio dono.

            Agora vocês já sabem o que lhes espera quando eu voltar com meus irmãos! – exclamou Ramon, um instante antes de montar em seu cavalo e partir a galope, levantando poeira pela estrada.

            Um minuto depois todos os moradores da fazenda já estavam no pátio, observando perplexamente o ensanguentado Andrew Coyote tentando juntar os pedaços de seu violão.

            Por Manitu! Que surra! – exclamou Kaiowa.

            Isso não é nada. – retrucou Coyote – O pior foi ele ter quebrado o meu violão!

            Meu Deus! Como o famoso Andrew Coyote é espancado desse jeito sem nem ao menos reagir?! – esbravejou Sonny.

            Eu estava despreparado. – respondeu o rapaz, mais preocupado com seu instrumento musical.

            Agora Ramon irá voltar com o resto dos irmãos Prado e vão acabar com a nossa raça! – desesperou-se Freddy.

            Não se preocupem... – disse Coyote, em tom sereno – Quando eles voltarem o negócio vai ser diferente. Podem deixar comigo.

            Compreensivelmente, ninguém levou a sério as palavras do cada vez mais desmoralizado matador de aluguel. Kaiowa foi o que se revelou mais cético a ponto de, discretamente, esgueirar-se até o estábulo e literalmente picar a mula. Fugiu montando em jumento e nunca mais apareceu por aquelas bandas. Tempos depois, surgiu em Cursed City o boato de que o velho apache havia se estabelecido como ajudante de um traficante de armas em Tijuana, no México, mas tal boato, assim como tantos outros que circulavam sobretudo no Saloon de Billy Monstrengo, nunca veio a ser comprovado.

            Por sua vez, Sonny voltou para o interior da residência em companhia do irmão e da filha. Estava tão furioso que chutava as cadeiras que encontrava pela frente.

            Esse tal Coyote mais parece uma ovelhinha! – esbravejou o fazendeiro – Estamos ferrados!

            Talvez ele ainda possa nos ajudar... – ponderou Freddy, sem muita convicção – Se não acreditarmos nisso só nos restará fugir!

            Nunca abandonarei minhas terras e meu gado!

            Então por que você simplesmente não paga o que deve e resolve esse problema de uma vez por todas?! – intrometeu-se Evelyn.

            Jamais! – gritou Sonny – Prefiro morrer a pagar um dólar sequer!

            Então vou rezar para que seu desejo se realize! – retrucou a moça, antes de correr e trancar-se em seu quarto.

            Alheio a discussão que ocorria no interior da casa, Coyote sentou-se na varanda e, com muita concentração e empenho, dedicou-se a tarefa de tentar consertar o violão quebrado. Passou praticamente toda a tarde entretido com esse objetivo e quando finalmente conseguiu deixar o instrumento em condições de ser tocado – pelo menos de forma improvisada – já estava anoitecendo.

            Ao perceber que Evelyn o observava através da janela de seu quarto, o rapaz sorriu para ela e começou a entoar uma canção:

Sweet home Alabama where the skies are so blue.
   Sweet home Alabama, Lord, I'm coming home to you.
   Sweet home Alabama where the skies are so blue.
   Sweet home Alabama, Lord, I'm coming home to you.

            A moça sorria, divertindo-se com a música e Coyote seria capaz de cantar para ela durante a noite inteira se a performance não tivesse sido bruscamente interrompida pelos gritos de Freddy, que a mais de uma hora encontrava-se plantado junto à porteira da fazenda.

            Eles estão vindo! Os irmãos Prado estão chegando!

            Em uma atitude pretensamente heroica, Freddy posicionou-se com uma winchester por sobre a cerca de madeira e esperou até o momento em que julgou que o trio de cavaleiros inimigos já se encontrava ao alcance de suas balas. Nervosamente, descarregou a espingarda contra os rivais sem acertar um tiro sequer.

            Sonny, que assistiu a tudo da porta de sua residência, não chegou a se surpreender com a péssima pontaria do irmão, da mesma forma que também não ficou surpreso ao ver o corpo de Freddy desabar com uma bala na testa um segundo depois do estrondo de um tiro ecoar da direção da estrada. Afinal, todos os membros da família Prado carregavam o status de exímios atiradores.

            Assim que adentraram a porteira da propriedade, os irmãos Prado deram mais uma demonstração de que a fama de pistoleiros quase imbatíveis que acompanhava a família era mais do que justificada. Com grande destreza, Miguel Prado sacou seu colt e, com um único disparo, abateu Andrew Coyote, fazendo-o tombar ao chão com uma bala no peito tão logo este havia se levantado da varanda.

            Apavorado, Sonny simplesmente saltou para dentro de casa e trancou a porta detrás de si.

            Achando graça da situação, uma a um os irmãos Prado desmontaram calmamente de seus cavalos. Eles sabiam que Sonny Coltrane era muito avarento para abandonar seus bens e covarde demais para tentar enfrentá-los. Certamente estaria enfiado debaixo da cama, rezando por um milagre.

            Em meio às risadas, Raul passou ao lado do corpo de Coyote e ajuntou seu violão. Em tom de deboche, começou a dedilhar grosseiramente as cordas do instrumento enquanto improvisava versos de ofensa aos Coltrane, estimulando ainda mais as gargalhadas dos irmãos.

            O trio estava tão absorvido na diversão que nenhum de seus membros percebeu quando Andrew Coyote abriu os olhos e levantou-se sorrateiramente. Apenas Evelyn viu – através de uma fresta na janela de seu quarto – quando o famoso matador de aluguel despiu-se silenciosamente sob a luminosidade pálida da lua cheia que acabara de raiar. Somente a espantada garota percebeu que o corpo do rapaz – que se revelou repleto das mais variadas e bizarras cicatrizes – estava distendendo-se e aumentando de envergadura, ao mesmo tempo em que presas pontiagudas emergiam de sua boca e garras afiadas brotavam de seus dedos. Quando a metamorfose se completou, o rapaz de aparência pacata havia desaparecido e em seu lugar estava um monstro de quase três metros de altura, recoberto por uma densa camada de pêlos negros e ostentando uma horrível carranca de feições lupinas.

            Com uma agilidade impressionante, a enorme criatura urrou e saltou na direção de Raul Prado. Como estava com o violão nas mãos, o surpreso pistoleiro instintivamente tentou defender-se desferindo um pontapé contra o monstro. Porém, o lobisomem agarrou sem dificuldades a perna do infeliz, girou-o no ar como se fosse um mero saco de batatas e bateu com a sua cabeça de encontro a um dos pilares que sustentava a varanda, fazendo com que o seu crânio se despedaçasse ao mesmo tempo em que uma parte do teto desabou.

            Mesmo estando terrivelmente espantados, Miguel e Ramon sacaram seus revólveres e dispararam uma saraivada de tiros contra o monstro. Alvejada, a criatura urrou de dor, cambaleou para trás e chegou mesmo a cair ao chão, mas apenas por um breve instante. Quando as balas dos pistoleiros acabaram, o lobisomem se levantou e partiu para cima deles sem lhes dar chance de recarregar suas armas.

            Com uma única e violenta patada, o mostro atingiu o peito de Ramon e o arremessou dentro do bebedouro dos cavalos – que àquela altura já havia fugido relinchando apavoradamente. Antes que Miguel pudesse escapar, o lobisomem agarrou-o pelo pescoço e suspendeu-o no ar. Com um golpe brutal desferido com suas garras afiadas, a criatura rasgou o ventre de sua vítima, fazendo com que suas entranhas escorressem de encontro ao chão arenoso.

            Enquanto gritava de dor e desespero, Miguel sentiu as próprias vísceras sendo enroladas pelo monstro ao redor de seu pescoço e, dentro de poucos segundos, sua voz foi agonizantemente sufocada para sempre.

            Sentindo tanta dor a ponto de supor que estava com algumas costelas quebradas, Ramon rastejou para fora do bebedouro, mas não conseguiu percorrer mais do que dois ou três metros antes que o lobisomem o alcançasse. Pisando nas costas de sua vítima para imobilizá-la, o mostro agarrou a cabeça do último dos irmãos Prado e – emitindo um urro de triunfo e satisfação – arrancou-a do corpo e arremessou-a para longe.

            Quando Andrew Coyote chutou a porta e adentrou na residência de Sonny Coltrane, já havia retornado à sua forma humana. Encontrou o fazendeiro agachado detrás da mesa da sala, espiando com desconfiança.

            Pe... Pegue! – disse o fazendeiro com voz trêmula, ao mesmo tempo em que oferecia o saco de tecido para Coyote – Você fez o seu trabalho... Merece todo esse dinheiro!

            Já lhe disse que não me importo com dinheiro. – respondeu o rapaz, em tom sombrio.

            Então peça o que quiser e eu lhe darei!

            Eu quero ela! – disse Coyote, apontando o dedo para Evelyn, que acabara de entrar na sala.

            Como?! Minha filha?! – gritou Sonny – Isso nunca! Evelyn é minha! Minha! Minha!

            Nesse momento, um estrondo ecoou pelo recinto. O fazendeiro teve um espasmo e um filete de sangue escorreu de seus lábios, um instante antes de ele tombar sem vida no assoalho, alvejado com um tiro nas costas.

            Finalmente estou livre de você, seu velho nojento! – exclamou Evelyn, com um revólver fumegante em mãos.

            Com um sorriso enorme nos lábios, Andrew Coyote se aproximou da moça, tomou-a nos braços e a beijou longamente.

            Vamos? – indagou ele, puxando-a pela mão.

            Claro! – respondeu a garota, ajuntando o saco de dinheiro que estava caído ao lado do cadáver de seu pai.

            No pátio da fazenda, Coyote vestiu novamente seu terno, ajuntou o violão e – enquanto tomava o ruma da estrada em companhia de Evelyn – começou a cantarolar uma nova canção:

            Country roads, take me home
             To the place I belong,
            West Virginia,
            Mountain mamma, take me home
            Country roads

            Nunca tinha ouvido nenhuma destas músicas... – disse a moça, sorridente – Foi você quem as compôs?

            Não... – respondeu o rapaz – Quem me ensinou a tocá-las foi um negro vidente que conheci no Mississippi.

            – Um vidente?! – exclamou Evelyn, com indisfarçável curiosidade.

            – Sim. – afirmou Coyote – E ele me disse que todas essas canções farão muito sucesso no futuro...

                     

 * Conto publicado originalmente no livro Cursed City – Onde as almas não têm valor (org. M.D. Amado, Estronho: 2011).

MIRZA, A MULHER VAMPIRO

                                                                                   Por Gian Danton

A primeira vampira de sucesso dos quadrinhos surgiu no Brasil. Trata-se de Mirza, criação do desenhista italiano naturalizado brasileiro Eugênio Colonesse e do roteirista Luís Meri. A personagem surgiu na época de ouro dos quadrinhos de terror nacional, na década de 1960.
Nessa época, Colonnese e Rodolfo Zalla tinham um estúdio, o D-arte, especializado em quadrinhos, no qual chegavam a produzir 300 páginas por mês nos mais diversos gêneros (dos super-heróis aos de guerra). Um dia José Sidekerskis, da editora Jotaesse os procurou e pediu que Colonesse criasse uma personagem vampira.
No dia seguinte surgia Mirza. O nome era uma variação de Mylar, super-herói de sucesso, criado por Colonesse. "Não parecia nome de uma mulher, tanto que resolvi acrescentar no título 'a mulher vampiro' para acentuar mais. Hoje se você pesquisar na lista telefônica, vai encontrar várias Mirzas, mas naquele tempo não existia", lembra Colonnese.
A revista foi publicada em 1967 e virou um hit. Dos 35 mil exemplares impressos, sobravam pouco mais de mil. Além disso, a redação da editora começou a receber várias cartas de fãs pedindo a continuidade da personagem. O interessante é que as histórias conseguiam captar muito bem o clima erótico, elemento essencial do terror vampiro. O roteirista Luis Meri escrevia de acordo com as orientações de Colonnese, mas de vez em quando colocava uma inovação, como uma festa de lésbicas.
    Apesar do sucesso, o gibi durou apenas 10 números. A razão disso foi a mudança de ramo do desenhista. Um dia Rodolfo Zalla procurou Colonnese com a proposta de desenhar para livros didáticos. Este respondeu que não sabia fazer livros didáticos, pois sua especialidade era quadrinhos. "Uma cenoura que você fizer para um livro didático paga mais que cinco páginas de quadrinhos", rebateu Zalla. Foi o bastante para convencer o amigo. Dedicando-se apenas às ilustrações didáticas, o criador deixou de lado sua personagem, que ainda seria republicada, no início dos anos 1970, pela Editora Regiart, de forma pirata. Essa publicação manteve o interesse pelos leitores.
Na década de 1980 houve um renascimento dos quadrinhos nacionais e Colonnese acabou voltando à sua personagem mais famosa, pelas editoras Press, D-arte e Vecchi.
Eram outros tempos, de abertura política e a vampira ganhou contornos mais sensuais. Se antes ela usava um vestido longo, que cobria até suas pernas, agora ela usava decotes generosos e vestidos curtos, quando não lingerie sensual. O roteirista Osvaldo Talo colaborou nessa fase dando um passado para a personagem: ela seria uma condessa chamada Mirela Zamanova.  Uma nova história, na revista Metal Pesado, apresentou uma versão totalmente erótica da vampira.
Desde então, Mirza tem voltado em edições especiais, para jubilo dos fãs. E, quando se fala que Vampirella é a primeira vampira dos quadrinhos, ele se lembram que a grande criação de Colonnese é bem anterior.
 
* Texto publicado originalmente em ivancarlo.blogspot.com, em 2020.