21 de jun. de 2021

ILONOMANOK: O INÍCIO DO FIM

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Pelas informações que eu tenho, quem primeiro se deu conta da chegada deles foram as crianças que jogavam futebol no campo localizado na entrada do antigo parque que anteriormente era conhecido como IBDF. Um dos garotos me contou que todos ficaram surpresos quando nuvens escuras e sinistras surgiram do nada, transformando o fim de tarde nublado e ameno em um ambiente caracterizado por tons enegrecidos e sombrios, semelhantes àqueles que antecedem as tempestades mais avassaladoras. Em seguida veio o estrondo, tão descomunal quanto aterrador, que fez a terra tremer de forma muito breve, mas tão intensa que nenhum dos meninos conseguiu se manter em pé naquele instante.

            Tão logo cessou o terremoto, a maior parte das crianças se levantou e correu chorando para suas casas, decerto antevendo o horror que estava por vir. Os dois ou três que permaneceram no local viram a coluna de fumaça de coloração indefinida que emergiu do meio das árvores, no interior do parque. Foi nesse mesmo instante que sentiram pela primeira vez o fedor. Sim, esse mesmo fedor nauseante e insuportável que agora nos obriga a improvisar máscaras amarrando camisas em nossos próprios rostos para tentar não desmaiar e nem vomitar perante tamanha repulsa. Eu lembro que estava saindo da barbearia, ainda atordoado pelo breve tremor de terra, quando todas as pessoas que estavam na rua começaram a ser fustigadas pelo odor podre e asqueroso que emanava sabe-se lá de onde. Uma mulher vomitou bem na minha frente; uma senhora idosa caiu ao chão levando as mãos ao rosto, e muita gente correu para o interior das casas e lojas, fechando as portas e janelas no intuito de amenizar aquela sensação horrível que beirava os limites da tolerância. Eu mesmo senti fortes náuseas e precisei me escorar na porta da barbearia para recuperar o fôlego. “O que é isso, professor?! De onde vem esse cheiro nojento?!”, perguntou-me um ex-aluno que ia passando na calçada naquele momento. Respondi que não sabia, mas intimamente supus que teria algo a ver com aquela fumaça de estranha coloração que surgia por detrás das casas que ficavam ao redor do parque.

            Mas deixe-me voltar ao relato das crianças. Por algum motivo que não sei explicar, o terremoto parece não ter assustado a todos na mesma proporção. Digo isso porque nem ele, nem o fedor alucinante e nem a escuridão repentina foram capazes de refrear a curiosidade dos meninos que permaneceram no parque, de forma que eles decidiram andar até o lugar de onde vinha a fumaça para ver do que se tratava. Márcio, o garoto que me contou essa história, disse que a fumaça vinha de uma rachadura – na verdade um verdadeiro abismo – que se abriu em uma parte do parque onde a vegetação é bastante densa. Dessa abertura também vinha uma série aterradora de ruídos de todas as formas bizarras e imagináveis, de tal forma que eles logo se convenceram de que estavam diante de uma das portas do inferno. Foi nesse momento que os meninos valentões decidiram imitar os companheiros de futebol e correr para suas casas.

            Márcio me contou também que, em dado momento, olhou para trás e avistou uma grande quantidade de criaturas horrendas e indescritíveis emergindo do abismo. Segundo ele, essas criaturas se assemelhavam apenas muito vagamente a algo similar à anatomia humana, e o pavor que essa visão lhe provocou foi tão forte que ainda a pouco, ao me fazer esse relato, ele caiu no choro de forma compulsiva e desesperada.

            Creio que neste mesmo instante, eu ainda estava na barbearia, junto com mais um grupo de quatro ou cinco pessoas que tentava entender o que, de fato, estava acontecendo. Então começamos a ouvir os barulhos. Eram sons muito altos, disformes, desconexos e apavorantes, para dizer o mínimo. No meio desses sons também era possível se ouvir gritos de dor e angústia que vinham das áreas circundantes ao parque. As pessoas começaram a sair para as ruas, improvisando máscaras para suportar o fedor, e olhavam com um misto de medo e curiosidade naquela direção. Logo, alguns indivíduos apareceram dobrando a esquina, duas quadras à frente, correndo e gritando de forma desesperada. Foi então que todos viram que havia coisas no encalço deles. Em função da distância, não pude distinguir muito bem o que era – e naquele momento até fui grato por isso – mas não foi preciso muito esforço para compreender que não se tratava de nada que já tivéssemos visto anteriormente andando sobre a face da Terra.

            O instinto de defesa das pessoas então começou a falar mais alto e muitos correram de volta para dentro de suas casas e lojas e passaram a trancar tudo de forma apressada. Alguns embarcaram em seus carros e partiram em disparada no sentindo contrário de onde vinham as criaturas. Outros, na falta de melhores alternativas, se desataram a fugir a pé, chorando e gritando, em pânico. Por fim, permaneceu na rua um grupo de não mais do que seis ou sete pessoas – entre as quais se encontravam o menino Márcio e eu – que simplesmente estavam surpresas e chocadas demais para reagir de forma coerente diante de tanto pavor. Foi então que apareceu o velho Michel, gritando e gesticulando de forma frenética:

            – Eu avisei! Eu avisei que eles viriam! Agora corram, corram inutilmente para tentar salvar suas vidas medíocres, seus estúpidos!

            O velho Michel era um professor de História que lecionou durante décadas na única escola estadual da cidade. Há cerca de dez anos atrás, ele realizou o sonho de conhecer o Oriente Médio, mas voltou de lá completamente insano, desempenhando o papel de uma espécie de profeta do apocalipse, anunciando a chegada iminente de demônios abissais. Só falava nisso, dia e noite. Acabou sendo afastado da escola e aposentado por invalidez. A partir de então, passou a dividir o seu tempo entre pregações solitárias na praça da cidade e os preparativos para o “início do fim”. Consternado, percebi que, afinal ele tinha razão. De alguma forma, ele realmente sabia da verdade.

            – Senhor Michel, nos ajude! – implorei – O que devemos fazer?

            – Eu devia deixá-los serem estuprados e esquartejados pelos demônios... – disse o velho, com indisfarçável rancor – Mas se eu fizesse isso não estaria usando de forma adequada o meu conhecimento. Venham, seus idiotas! Vamos para a minha casa! Depressa, antes que eles cheguem!

            Corremos o mais rapidamente que conseguimos. Além do velho Michel e de mim, mais cinco pessoas nos acompanharam. Na medida em que nos aproximávamos da casa do ancião – que ficava apenas há duas quadras de distância – ouvíamos a sinfonia de horror que ressoava às nossas costas de forma cada vez mais intensa. Agora, além dos sons aterradores emitidos pelos próprios demônios e dos gritos agonizantes de suas vítimas, também eram audíveis os barulhos provenientes das portas e paredes das casas e prédios sendo arrombadas e mandadas ao chão. Mas havia também um outro som. Eram risadas. Gargalhadas, na verdade. Sim, várias gargalhadas humanas, que soavam aos meus ouvidos de forma tão surpreendente quando insana. Intrigado, não resisti e olhei para trás, e o que vi fez com que cada molécula do meu corpo gelasse de espanto.

            Completamente nus, homens e mulheres – velhos, em sua maioria – corriam pela rua saltitando e movendo os braços de forma frenética, como se estivessem saudando os demônios recém chegados. “Até que enfim! Até que enfim chegou o dia!” gritavam alguns deles. Os demônios, por sua vez, agarravam esses insanos indivíduos e os destroçavam de forma brutal, bizarra e espalhafatosa, fazendo o sangue jorrar e os pedaços dos corpos mutilados voarem pelos ares.

            Os demônios! Ah, os demônios! Nem que eu ficasse aqui durante horas conseguiria descrevê-los! Limito-me a dizer que eram muitos, certamente milhares, e que possuíam as mais diversas formas e tamanhos, mas todos igualmente horrendos e repulsivos.

            Chegamos então na residência do velho Michel. Uma casa que já fora sólida e bela no passado, mas que agora era a imagem do desleixo e da decadência. Quando entramos, fui tomado pela surpresa ao ver que cada centímetro de cada parede estava completamente recoberto por símbolos e escrituras que me pareceram similares a hieróglifos, embora me fossem de origem desconhecida. Ao perceber minha admiração, o velho Michel falou:

            – Esses símbolos têm a função de nos proteger! Os demônios não poderão entrar aqui!

            Em seguida, o ancião acenou para que o acompanhássemos através de uma escada interna que levava ao porão. Ele ligou o interruptor e, com a claridade, pudemos ver que o espaço estava abarrotado de todo o tipo de coisas.

            – Há muitos suprimentos aqui! – disse o velho Michel – poderemos resistir por bastante tempo sem precisar sair!

            Com um gesto teatral, o ex-professor puxou um lençol que cobria uma mesa e revelou o arsenal que ali se encontrava, cuidadosamente organizado. Eram punhais, facões, revólveres, rifles e espingardas. Armas aparentemente normais, mas recobertas por símbolos similares àqueles que haviam nas paredes, pintados com tinta branca.

            – Armamentos comuns não surtiriam efeito contra os demônios... – disse o velho Michel – mas, graças a estes símbolos sagrados, poderemos utilizar essas “belezinhas” aqui para detonar alguns daqueles bastardos quando for preciso!

            – Ótimo! E o que você sugere?! – exclamou o padeiro, de forma tão irritada quanto irônica – Que a gente saia para a rua atirando naquelas coisas?!

            – Oh, não! – respondeu o ancião – Além de não termos munição suficiente para todos, isso também não resolveria nosso problema, uma vez que esses seres que estão lá fora são apenas os batedores, aqueles que vêm para abrir caminho. O verdadeiro demônio anda não apareceu.

            – Como assim?! – indaguei perplexamente – Quer dizer que ainda há algo pior do isso?!

            – Sim! – afirmou o velho – Tudo isso é a preparação para a chegada de Ilonomanok, o demônio gigante profanador de mentes, devorador de corpos e estuprador de almas! Este mundo agora pertence a ele!

            – Meu Deus! E o que vamos fazer?! – questionou Roberto, um vendedor de carros usados que também nos acompanhou até a casa do ex-professor.

            – Vamos fazer a única coisa que nos resta: tentar permanecer vivos pelo máximo de tempo possível... – respondeu o senhor Michel, de forma sombria.

            Consternados pelas palavras do velho, todos se calaram. Porém, apenas por alguns breves instantes. A barulheira perturbadora e angustiante que vinha do lado de fora da casa nos fez compreender que seria melhor conversarmos sobre qualquer assunto do que nos dedicarmos a ouvir a sinfonia infernal que se desenrolava na rua. Foi nesse momento que eu pedi para o menino Márcio me contar o que ele sabia sobre o início da história. Eu também pretendia perguntar para o velho Michel como foi que ele ficou a par da iminente ocorrência desse acontecimento hediondo, mas não foi possível, pois um novo terremoto tomou de assalto a atenção de todos. Na verdade, não foi um terremoto, mas sim uma sucessão de tremores de terra de intensidade mediana, intercalados por alguns poucos segundos de intervalo entre eles. Esses tremores eram tão regulares e cadenciados que logo me passaram a impressão de serem... passos! Sim, passos de algo gigantesco, imenso, pesando centenas de toneladas.

            Na medida em que os tremores se tornavam mais intensos e mais próximos, o fedor que impregnava o ar de maneira hostil se tornava ainda mais exacerbado, de forma que não foi difícil deduzir que aquele aroma pestilento era exalado da própria coisa que se aproximava. Na rua, os gritos de terror também aumentavam de intensidade.

            – Estão ouvindo?! É Ilonomanok... – disse o velho Michel – Ele já caminha entre nós... 

 

* Conto publicado originalmente em 2010, na antologia intitulada 2012, editada pela Ravens House Brasil.   

17 de jun. de 2021

ENTREVISTA COM ADRIANO SIQUEIRA

 

Adriano Siqueira

1. Primeiramente, gostaria de pedir para que você fizesse uma breve apresentação aos nossos leitores, falando sobre seu envolvimento com a literatura fantástica:

Meu primeiro contato com mundo fantástico da literatura com autores nacionais, foi quando eu criei um site no antigo Geocities que era um portal onde se podia colocar contos e dar uma cara de site. E foi dessa forma que conheci mais pessoas que escreviam sobre o mesmo tema. Isso foi em 1998. Antes eu era moderador de uma BBS sobre vampirismo. A organização desses grupos naquela época era cheia de preconceitos. Quando eu já era conhecido eu levei esse grupo de amigos para o Yahoo grupos e foi aí fundado o Tinta Rubra que trouxe mais escritores e leitores. Em 2000 eu estava com um novo site no HPG que era o Conto Nuturno e eu chamei como Adorável Noite. Com isso eu pude criar em 2001 o Fanzine Adorável Noite que parou no numero 37. Esse fanzine me ajudou a entrar nas Casas Noturnas e com estande. Eu sempre levava autores com livros para lançar nessas casas na madrugada. Tudo isso foi me levando a editoras, eventos, encontros, lançamentos e palestras. Tudo registrado com minha máquina fotográfica que eu usava para alimentar os sites. Acabei indo para TV em entrevistas com gente muito famosa. E isso abriu espaço para eu publicar um livro de forma gratuita. Amor Vampiro foi lançado em 2008 e até hoje já foram lançados 37 livros fora os que eu fiz o prefácio que são mais 15 livros.

2. Antes mesmo de começar a ter seus livros publicados, você teve uma importante trajetória como fanzineiro. Fale um pouco sobre essa fase do seu trabalho:


O mais difícil em produzir fanzines era o tempo gasto para isso. Eu trabalhava na área de editoração eletrônica, chegada de noite, selecionava os contos para colocar, diagramava, colocava o arquivo PDF no disquete e levava para imprimir. Era muita correria para dobrar os fanzines pois o tamanho do meu era meia pagina A4 e eu imprimia de 60 a 100 fanzines em cada vez que eu ia em um evento ou casa noturna. É importante dizer que foi graças a esse trabalho que conheci muita gente. Muitos contatos foram se aproximando e levou a novos eventos. Tudo vira uma grande corrente. E quando se tem livros, fica bem mais fácil de vender seu produto pois muitos já conhecem o trabalho feito em blog, em sites e em fanzines. O fanzine leva as nossas histórias para fora da internet e isso é muito positivo.  

3. Você fez parte de um ótimo – ainda que curto – ciclo dentro da cena da literatura fantástica nacional que durou de 2009 até aproximadamente 2014, onde houve uma profusão de antologias, séries, coletâneas, sites e blogs especializados, eventos e publicações de livros solo de muitos autores nacionais que conseguiram espaço para expor seus trabalhos em editoras de pequeno, médio e até grande porte. O Seu livro Adorável Noite (2011), cujo exemplar autografado guardo com muito carinho na minha estante, foi um dos maiores sucessos dessa época. Eu também tive livros publicados nesse período, como Na Próxima Lua Cheia (2010) e Jarbas (2011), que tiveram repercussão muito boa. Hoje, passados mais de dez anos, como você avalia aquele momento e o legado deixado por aquele ciclo?


Realmente, André, foi uma época de ouro e nós aprendemos muito com tudo que aconteceu. Vejo que tudo foi um grande aprendizado. Eu aprendi muito e essa bagagem de aprendizado me ajudou quando fui morar em Curitiba. Quando eu usei tudo que aprendi em uma cidade que eu não conhecia. Em pouco tempo eu já estava na TV e no jornal e em menos de seis meses já tinha um livro novo que era o Sangue dos Vampiros. E lá conheci as academias de letras e o núcleo de literatura. Eu já estava experiente e foi bem mais fácil de conquistar editoras e livros. Fiquei quatro anos lá e saí de Curitiba com 6 livros com minha participação. Tudo isso agradeço as bagagens de aprendizados daquela época. Fiquei feliz em saber que o que aprendemos pode ser utilizado em qualquer cidade.

4. Como mencionamos anteriormente, apesar de intenso, aquele ciclo não teve longa duração. Se pesquisarmos na internet, veremos que a quase totalidade dos sites e blogs sobre literatura fantástica surgidos naqueles períodos estão abandonados há muito tempo, ou já não existem mais. Os eventos também arrefeceram, mesmo antes da pandemia. A grande maioria dos autores que participaram das suas antologias deixaram a produção literária de lado – muitos sem nunca ter conseguido publicar um livro solo, apesar da inegável qualidade de seus trabalhos – e as oportunidades junto às editoras parecem significativamente menores hoje em dia do que na década passada. Daquela leva de autores, você foi um dos únicos que se manteve produzindo de forma constante e regular e está muito ativo até hoje. Na sua opinião, qual seria o motivo – ou os motivos – para que aquela cena não tenha conseguido se perpetuar?

Eu vejo tudo aquilo como uma grande cozinha onde muitas receitas foram utilizadas e a popularidade trouxe mais receitas e mais clientes. Mas chegou um momento onde já não se testavam as receitas e isso causou um descontentamento geral abrindo espaço para críticos e noticias falsas sobre o universo que estava ali. Mas a falta de apoio foi mesmo o grande motivo que acabou com essa fase. Muitos queriam e se achavam merecedores de prêmios e palestras e participação em livros gratuitamente. Por nem todos terem atenção, as críticas foram aumentando. E acabou por terminar. Foram se distanciando ate que muitos eventos acabaram.

5. Você sempre foi um grande especialista no tema dos vampiros, que, historicamente, alterna ciclos de grande popularidade com outros onde se mantém fora do foco de atenção da grande mídia especializada. Como você avalia o momento atual da literatura vampírica?

Eu participei de tudo que pude. A mídia abriu um grande espaço pra mim. Existe de tudo no meio da vampirologia, vampirólogos, religiões vampíricas, estudiosos sobre filmes e histórias em quadrinhos. O mundo dos vampiros é muito vasto e acontece muito de ressurgirem os vampiros em matérias e em filmes inovadores ou livros impactantes. No ano passado participei de uma antologia sobre vampiros e fui convidado a participar, pela bagagem que tenho e a popularidade do vampiro Neculai, que muitos apreciam por ser um ser que sai do celular para atacar as pessoas. Esse vampiro tecnológico nasceu no Brasil e tenho percebido que vampiros nacionais estão dominando muito bem e estão deixando o estilo branstokeano. Um bom exemplo é a autora Maria Ferreira Dutra. Escrevemos e desenhamos muito sobre monstros e vampiros e sempre agradeço a ela essa parceria e apoio. A Maria trouxe a Escarlate, a mariposa vampira e o Chygadcarius-Oids que é um tritão, monstro marinho vampiro que está em livro e também na série de rádio Putz Grila no programa da Creepy Metal Show comandado pelo Sérgio Pires. São autores assim que a gente tem visto aparecer e as histórias são ótimas. Muito se aprendeu com a experiência que adquirimos.

6. Como você avalia, de maneira geral, a atual cena da literatura fantástica nacional, em termos de volume de publicações e qualidade do material publicado?

Existe um mercado diferenciado. Antes você precisava mostrar do que era capaz para participar de uma obra solo. Hoje existem mais oportunidades para todos em seu nível de possibilidades. Claro que ainda existem grandes editoras e seus zilhões de livros, mas também existe mercado para os que preferem ter o seu jeito independente. Querendo ou não, o mercado só pela internet acaba deixando livros e editoras equilibradas. Agora estão investindo em divulgação de livros. Antes não era um mercado muito bom. Raramente o autor investia na divulgação, hoje já se investe mais. É favorável anunciar. Existem muitos sistemas que ajudam o autor. Lives e entrevistas são uma grande fonte de informação e com os cursos aparecendo e as conversas em grupos acabam aproximando mais o leitor do escritor. Geralmente os escritores ou deixam o livro em plataformas on demand ou fazem pouca tiragem do livro físico, ou deixam a obra como e-book. Mas existem escritores que preferem uma boa tiragem para quando tiver um evento já ter os livros para vendas.

7. Há quem acredite que o foco da comunicação atual, para as mais variadas áreas, é a produção de vídeos. Você acredita que ainda há espaço para blogs como o nosso Relatos Noturnos e também os seus, focados em textos escritos?

As plataformas sempre vão mudar. Ainda mais na internet. Porém, você e eu temos bagagem e conteúdo. Não adianta só conhecer uma nova plataforma de divulgação. Tem que ter conteúdo para alimentar sempre e tem que ter público. E nós temos isso. Por esse fato, se usamos blogs ou redes sociais para divulgar nossos textos o resultado será positivo, pois tem muito conteúdo, experiência e conhecimento. É uma soma de valores que mostra muitas fontes e vivências.

8. Para concluir, gostaria de pedir para você nos falar um pouco sobre seus projetos atuais e como os leitores do blog podem ter contato com o seu trabalho:

Eu tenho um Instagram que tem crescido muito @revistaliteratopeia e meu blog é www.contosdevampiroseterror.blospot.com que já passou de um milhão de visitas. No facebook, tenho a página do Adorável Noite e o Literatopeia. Atualmente escrevo contos de tamanhos diferentes para blogs, Instagram, livros e rádio. Tenho uns 10 livros de participação em antologias para lançar ainda este ano. E estou fazendo o Livro do vampiro Neculai onde o James Gallagher Junior tem me dado muito apoio. Agradeço muito a entrevista, André, e desejo sucesso em seu novo livro, como foi nos seus outros maravilhosos trabalhos.

Adriano Siqueira e André Bozzetto Jr no "Dia dos Vampiros" de 2011, em São Paulo.

 

11 de jun. de 2021

A NOITE DOS NAMORADOS

 

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Apesar da noite agradável, com temperatura amena e uma bela lua cheia contribuindo para o tom idílico e romântico da data comemorativa, Cássio não andava nada satisfeito. Fazia mais de uma hora que ele estava em companhia de Vanessa, com o carro estacionado naquele local ermo e deserto, mas nada havia acontecido. No seu entendimento, estava fazendo tudo certo: já tinha levado a moça ao cinema, à danceteria, à pizzaria e até já tinha conhecido os pais dela. Naquela semana, inclusive, lhe comprou um presente de Dia dos Namorados que havia custado caríssimo. Tão caro que com aquele dinheiro daria para comprar várias e várias cervejas. Mas nada parecia dobrar a resistência da moça. Quando Cássio estacionou ali – em uma área popularmente conhecida entre os jovens por ser propícia a encontros mais íntimos – a garota pareceu ficar ainda mais resoluta em resistir às investidas do rapaz.

            – Você anda muito chata! – esbravejou Cássio, sentido sua paciência se esgotar. Um segundo depois, o rapaz já estava do lado de fora do carro, andando em direção à mata circundante.

            – Aonde você vai?! – perguntou Vanessa, intrigada.

            – Vou mijar! – respondeu o rapaz, com rispidez.

            – Cássio, você está bravo? – inquiriu a moça, em tom manhoso – Eu acho que você está sendo muito apressado.

            “E você está sendo insuportavelmente teimosa!”, pensou o rapaz, sem coragem de proferir as palavras.

            Cássio já se preparava para voltar ao carro, tentando idealizar uma última e desesperada estratégia de persuasão, quando sua atenção voltou-se para algo estranho vislumbrado quase ao acaso em meio à mata. Era alguma coisa grande e esbranquiçada, estendida junto às folhas secas debaixo das árvores. Fustigado pela curiosidade e não sem uma ponta de receio, o rapaz andou lentamente na direção da coisa.

            – Cássio! Onde você está indo?! – voltou a indagar Vanessa, desta vez demonstrando uma leve irritação.

            Contudo, o rapaz nada respondeu, pois nem sequer a ouviu. Todas as suas atenções estavam voltadas para o pálido cadáver deitado no chão diante de si, completamente nu. Era um homem, de idade indefinível, e que – a julgar pelas lacerações e pela quantidade de sangue ressecado que trazia aderido ao corpo – aparentava ter tido uma morte violenta. A impactante visão fez com que Cássio perdesse a postura de machão que costumava emular com tanto afinco, de forma que não tardou para que ele corresse apavoradamente de volta ao carro.

            – O que aconteceu?! – perguntou Vanessa, assustada com a fisionomia transtornada do rapaz.

            – Tem um cara morto ali no mato!

            – O quê?!

            – Tem um cara morto ali no mato! – repetiu Cássio, dando partida no veículo e acelerando fundo.

            O rapaz estava tão assustado que nem cogitou manobrar o carro para retornar à cidade pelo mesmo caminho que viera. Optou por seguir através de um acesso paralelo, para onde o veículo já se encontrava direcionado. Ainda nos primeiros metros do trajeto a namorada enchia-o de perguntas, mas ele não respondia a nenhuma, impressionado que estava com a cena bizarra que não lhe saía da cabeça, a imagem de um misterioso cadáver ensanguentado tetricamente iluminado pelo luar.

            A cena sinistra só esvaneceu-se de sua mente no momento em que foi substituída por outra não menos inesperada e insólita: uma viatura da polícia militar estava estacionada na beira do estreito caminho de terra, poucos metros à sua frente. Vanessa falava e gesticulava freneticamente enquanto Cássio diminuía a velocidade do carro ao se aproximar, de forma que pode ver perfeitamente o momento em que um policial desembarcou da viatura e deu dois passos para o meio da estrada, sinalizando para que estacionassem.

            Mal o carro havia parado e Cássio já baixou o vidro e se dirigiu ao policial de maneira afobada:

            – Seu Guarda! O senhor apareceu na hora certa! Nós estávamos lá em cima na clareira quando eu encontrei um cad...

            – Saiam do carro! – interrompeu rispidamente o policial.

            – Sim! Mas acontece que...

            – Saiam do carro! – repetiu o policial, em tom ameaçador.

            Cássio e Vanessa entreolharam-se, intrigados. Saíram então do carro em silêncio e fitaram o semblante do oficial com desconfiança. Ele devia ter sido admitido na força militar muito recentemente, pois era bastante jovem. Provavelmente tão jovem quanto o próprio casal de namorados.

            – Virem-se de costas e coloquem as mãos na lateral do carro! – ordenou o policial – Vou revistá-los!

            – Mas, Seu Guarda! – protestou Cássio – Eu estou tentando lhe dizer que...

            – Cale a boca, seu maconheiro! Vai fazer o que eu digo ou precisarei algemá-lo?!

            – Ora! O que é isso?! – exclamou Vanessa – O senhor não pode nos tratar assim!

            – Fique quieta, sua piranha! Só me dirija a palavra quando eu lhe perguntar alguma coisa!

            Vanessa deixou escapar um gemido que denotava espanto e indignação. No instante seguinte já estava se aproximando do militar com o dedo em riste.

            – Escute aqui, Seu Guarda! Você não tem o direito de...

            A moça não conseguiu completar a frase, pois o policial atingiu-a com uma bofetada no rosto com força suficiente para fazê-la cair sentada na estrada empoeirada. Indignado, Cássio tentou intervir, mas mal havia se movido e deparou-se com o cano do revólver do militar apontado para a sua cabeça.

            – Nem pense em bancar o machão, ou estouro a sua cara aqui mesmo! – vociferou o oficial – Encoste-se no carro! Agora!

            Sem alternativas, o rapaz apoiou as mãos no veículo e o policial passou a revistá-lo de forma rude. Vanessa permanecia sentada no chão, com as mãos cobrindo o rosto enquanto soluçava.

            – Vocês estavam fazendo sacanagem lá em cima, não é mesmo? – provocou o oficial, em tom de deboche – Agora eu vou revistar essa safada! Garanto que ela adora sentir as mãos fortes de um homem apalpando seu corpo!

            – Seu Guarda... – disse Cássio, com um fiapo de voz que era quase uma súplica – O senhor precisa acreditar... Tem um cadáver lá em cima, na clareira.

            – Eu sei! – respondeu o militar, andando lentamente na direção de Vanessa com um sorriso malicioso nos lábios – Eu estive lá antes de vocês aparecerem.

            A moça, que já estava um tanto assustada, sentiu-se invadida pelo mais opressivo pavor. Tirou as mãos do rosto e, por estar sentada, fitou diretamente as pernas do policial que se aproximava. Julgou que sua mente estava vacilando quando se deu conta que ele estava de pés descalços e com a barra das calças dobradas. A situação ali estava ainda mais bizarra e assustadora do que lhe pareceu inicialmente. Algo estava terrivelmente errado.

            – Ora, sua quenguinha! – exclamou o militar, com ironia – Você está com essa cara por causa dos meus pés?! Mas o que eu posso fazer se o dono dessa farda usava outro número?! – Vocês viram ele lá em cima na clareira?! Meu Deus! O sujeito devia calçar 44 ou mais!

            Mesmo sem a completa compreensão da situação, Cássio percebeu que precisava fazer algo antes tudo ficasse pior. Aquele sujeito não era policial coisa nenhuma!

            Procurando ser o mais rápido possível, o rapaz projetou-se na direção do falso militar e tentou imobilizá-lo com uma gravata. Porém, o impostou desvencilhou-se com facilidade e atingiu Cássio com um violento golpe desferido com a coronha do revólver, fazendo-o cair por terra com a testa sangrando.

            – Seu babaca! – vociferou o falso policial, guardando a arma no coldre – Nem vale a pena gastar balas com um verme feito você!

            Diante dos olhos atônitos de Vanessa, que gritava estridentemente, o impostor sacou o cassetete do cinturão, aproximou-se do corpo semiconsciente de Cássio e – demonstrando frieza e brutalidade – espatifou-lhe o crânio com uma saraivada de golpes extremamente violentos.

            Quando o vigor das pancadas fez com que o cassetete se partisse, o falso policial voltou então suas atenções para Vanessa. A moça notou um brilho rubro e inumano em seu olhar, e com isso passou a gritar de forma ainda mais desesperada.

            – Pare de gritar e poupe suas energias! – disse o impostor, despindo a farda – Cansei de brincar de policial! Com você a brincadeira será diferente!

            Vanessa percebeu que o corpo do sujeito estava coberto por uma camada de pelos negros e disformes que pareciam se multiplicar em uma velocidade espantosa. Garras afiadas afloravam de seus dedos e presas pontiagudas emergiam de sua boca.

            – Levante-se e corra! – ordenou o indivíduo, com voz gutural – Quando eu estiver pronto irei procurá-la! Nesta data tão especial, você será a minha namoradinha! Ha, ha, ha!

            Impulsionada pelo pânico, Vanessa partiu, correndo da forma mais veloz que suas pernas lhe permitiam. Em meio à fuga, sua mente abalada trouxe à tona a ideia de que, se fosse possível voltar no tempo, ela deixaria Cássio tocá-la, despi-la e amá-la no aconchego do carro estacionado lá no alto da clareira, e isso seria maravilhoso. Contudo, o uivo horripilante que ecoou às suas costas trouxe-a de volta à desoladora realidade. A besta estava pronta para a caçada.

4 de jun. de 2021

A OESTE DA CIVILIZAÇÃO

 

 

Por Petter Baiestorf

 

            O Calor fritava meus pés, queimando-os impiedosamente. Meus sapatos furados haviam ficado para trás há quarenta quilômetros. Derretiam sob o insaciável apetite do sol escaldante. Uma mistura de sangue coagulado com suor e sujeira parecia fazer uma proteção natural, uma espécie de casco que funcionava como um escudo que me protegia das dores proporcionadas pelos cascalhos afiados da imensidão seca, sádica, daquele imenso deserto que eu insistia em atravessar.

            Cambaleando, continuava minha travessia rumo ao nada. Um nada que podia representar um tudo.

            Estava cansado, confuso, quase descrente nas palavras do Profeta do Oeste. Nunca siga um profeta, você pode perceber a burrada que fez somente quando for tarde demais para retornar ao seu próprio caminho.

            Mesmo cansado, exausto, a única coisa que fazia era seguir em frente, sempre em frente. Sempre rumo ao horizonte que dançava à minha frente, tremulando pela ação do Sol, tal qual uma miragem infernal. Sol que nunca dava tréguas. Horizonte lá longe, sempre a minha frente, sempre cozinhando aos quarenta e sete graus. Nenhuma sombra, somente calor, cascalhos, cactos, espinhos, galhos secos e animais peçonhentos.

            O vento batia em meu rosto enrugado, empoeirado, cicatrizado pela vida. Caminhava quase parado, deixando que os pensamentos me conduzissem a um estranho transe onde não parecia ter mais dúvidas, nem perguntas indecifráveis.

            Lembrava-me do cão sarnento de perna quebrada, magricela igual à Morte, que balançava alegremente sua cauda pela água podre que dei para que bebesse, há mais ou menos duzentos quilômetros atrás. Mas logo os pensamentos cessaram. Fome. Estava sem comer há mais de três dias. Minha última refeição havia sido uma sopa de cactos com pedaços de escorpião.

            Caminhava cambaleante, feliz que as crostas em meus pés aliviavam minha dor. Não sentia mais nem o calor angustiante que me torturava há vários dias. O silêncio fazia cantigas anarquistas ecoarem por minha cabeça. Cantigas tristes, lamúrias de cancioneiros sofridos que tentavam educar o povo com suas letras realistas.

            Muitos esqueletos humanos estavam espalhados pelo chão. Alguns, recém falecidos, ainda iriam entrar em colorida decomposição. Outros, tomados por vermes, já serviam de alimento aos abutres. Abutres eram uma espécie de ave, e aves, até onde lembrava, podiam ser comidas. Pegava minha atiradeira e alguns cascalhos, mas, desprovido de forças, só conseguia fazer com que as majestosas aves dessem pulinhos de um lado pro outro. Ignorava-me por completo. Estava fraco demais. Não conseguia mais nem atirar pedrinhas com uma atiradeira, algo que até crianças de cinco anos conseguiriam.

            Fome.

            Ajoelhava-me ao chão. Largava a atiradeira que já era apetrecho inútil. Com o resto de minhas forças arrastava-me até um dos muitos corpos em decomposição.

            Fome.

            Minhas mãos trêmulas agarravam um pedaço do braço podre de um defunto. Levava a podridão a minha boca animalescamente. Meus bons modos eu já havia esquecido quilômetros atrás, em alguma encruzilhada do destino. A carne podre não tinha paladar nenhum. Mastigava aquela pasta gosmenta sem gosto só a engolindo para tentar viver mais algumas horas.

            Com alguma coisa no estômago, lembrava-me quem eu havia sido.

            Lembrava-me da minha história. História estúpida, cheia de sofrimento e escolhas erradas. Lembrava-me dos poderosos que haviam me comprado com seu ouro. Lembrava-me de tudo. Lembrava-me que fui capataz de grandes fazendeiros. Era tocador de gado e, logo depois, Capitão do Mato. Lembrava-me do massacre contra sem-terras que comandei a mando dos patrões. Lembrava-me de cada uma de minhas mais de cinquenta vítimas. Lembrava-me dos corpos de pobres miseráveis que fiz arder nas chamas da injustiça. Lembrava-me dos policiais que ajudaram no massacre. Dor. Lembrava-me que num momento de lucidez me rebelei contra os patrões e havia sido caçado do mesmo modo que cacei pretos, índios e toda sorte de párias sociais que só queriam um pouco para sobreviver. Lembrava-me como fugi para a cidade grande, como mendiguei de porta em porta. Lembrava-me da fome e de como conheci um homem autointitulado Profeta do Oeste e de como me iludi com as suas palavras, enquanto ele reinava comodamente, alimentado por seus seguidores.

            Lembrava-me do dia em que o grande Profeta do Oeste convenceu seus seguidores a iniciarem a jornada em busca da Terra Prometida. Lembrava-me que fui um de seus seguidores, pois naquele momento preenchia meu vazio existencial. Lembrava-me que era apenas mais um tolo seguindo um lunático. Lembrava-me do instante que o Profeta do Oeste tombou sem forças, morrendo agonizantemente de fome, parando então a marcha para lugar nenhum. Lembrava-me como um bando de cegos esfomeados ficou sem rumo naquela terra árida. Lembrava-me do tolo que fui, e que agora era o último dos seus seguidores, o último perdido neste deserto de misérias.

            Todos os cadáveres ao meu redor eram dos discípulos do profeta que acabou seus dias como alimento dos urubus, possivelmente a coisa mais útil que já fez.

        Então, alimentado da carne putrefata de um cadáver desconhecido, percebia que os urubus estavam se aproximando de mim, todos com olhares de inebriante vitória, olhares que devoravam o pouquinho de esperança que ainda trazia comigo.