17 de mai. de 2022

1999: O CASO DO PALHAÇO - Parte III

 

PARTE III

            19h 40min

 

            Dinho estava arrependido. Quando o Sr. Schneider ofereceu pagamento em dobro para os seguranças que permanecessem no hotel, ele havia decidido ficar, e agora era tarde demais para ir embora. Já havia anoitecido, e ele estava com medo. Dos oito seguranças da equipe, metade foi embora logo depois do último assassinato, há três dias. Permaneceram apenas Renato, Charles e Duda, além dele próprio. Ele sabia que Duda e Charles estavam interessados apenas na grana extra, e por isso ficaram. Mas deviam estar se borrando de medo, como ele. Estranho mesmo era o Renato, que parecia não ter medo de nada.

            Naquele momento, o estacionamento principal, em frente ao hotel, estava completamente vazio. Parecia um grande deserto asfaltado. O Sr. Schneider e seus convidados deixaram os carros no estacionamento de trás. Dinho viu quando eles chegaram.O Sr. Schneider em seu belo Omega, o detetive com um Vectra. O escritor parecia mais modesto, veio de Monza.

            O jovem segurança estava distraído, imerso em suas próprias preocupações, quando teve a impressão de ter ouvido um grito. Não tinha certeza, mas parecia ter vindo do outro lado do estacionamento, perto do bosque. Com o coração acelerado e uma crescente sensação de desconforto, tentou entrar em contato pelo rádio com Renato, que era quem deveria estar vigiando aquela área, mas ele não respondeu. Tentou contatar Duda, mas novamente ficou sem resposta. Apenas quando entrou na frequência de Charles é que conseguiu localizar alguém.

            – Charles, você está me ouvido? – perguntou Dinho.

            – Positivo. Pode falar.

            – Onde você está?

            – No meu posto,ora! No estacionamento de trás.

            – Você não ouviu um grito?

            – Não. Quando foi isso?

            – Acho que faz uns dois minutos. Tentei entrar em contato com o Renato e com o Duda, mas eles não responderam.

            – O Renato passou por aqui há meia hora atrás. Parece que esta acontecendo alguma coisa lá dentro. E quanto ao Duda, eu não o vejo desde que anoiteceu.

            – Ok. Fique atento.

            – Certo. Se o Duda aparecer, ou se precisar de algo é só chamar.

            – Valeu. Até mais!

            Depois de ter falado com Charles, Dinho se convenceu que o grito fora apenas uma alucinação auditiva, fruto do nervosismo. Quanto ao medroso do Duda, provavelmente estava escondido em algum lugar, todo borrado. E lá dentro não devia estar acontecendo nada de mais, caso contrario, teria sido chamado. Contudo, suas reflexões otimistas forma bruscamente interrompidas quando ele ouviu, com um sobressalto, passos de alguém se aproximando às suas costas. Virou-se apenas a tempo de receber uma violenta machadada que lhe espatifou o crânio em múltiplos pedaços, sujando em tons pegajosos de sangue e fragmentos de cérebro o asfalto frio e cinza do estacionamento.

 

            20h 02min

           

            – Mas onde será que aqueles dois se meteram?! – esbravejou o Sr. Schneider.

            – Será que Sidnei os pegou? – indagou o escritor, empolgado.

– Meu Deus! Nem sabemos se é realmente ele o assassino! Além disso, Sidnei é um cara debilitado, quase um aleijado! E aqueles dois são homens fortes e estão armados! – respondeu o dono do hotel.

– O assassino já demonstrou ser muito astuto. Ataca suas vítimas de surpresa, antes que possam se defender. – Argumentou Rubem, insistente.

– O pior de tudo é que o Rodrigues está com o rádio. Assim nem posso chamar os seguranças que estão lá fora! – lamentou o velho.

Nesse instante, um grito horripilante ecoou pelo hotel.

– O que foi isso? – indagou o escritor – Será que ele pegou mais alguém?

– Como posso saber? – retrucou o velho, já com a arma em punho.

Enquanto o Sr. Schneider se aproximava cautelosamente  da porta que dava acesso ao corredor, ouviu-se um estalo, e a energia elétrica foi cortada, deixando-os às escuras.

– Só faltava essa! – gritou Rubem.

– Isso está ficando fora de controle! Vou chamar a polícia ! – exclamou o dono do hotel, pegando o telefone de cima da escrivaninha.

– Do lado de fora da sala, alguém estava tentando abrir a porta.

– O telefone está mudo! Foi cortado! – gritou o velho.

– Tem alguém ali fora, Sr. Schneider ! – disse o escritor, aproximando-se do velho.

– Rodrigues, é você ? – perguntou o dono do hotel, apreensivo.

Ninguém respondeu. Do lado de fora, a porta foi forçada novamente.

– É você, Allan? – questionou o velho – Eu estou armado, e se não disser quem está aí, vou atirar!

– Sr. Schneider, abra a porta, por favor! – sussurrou uma voz, do outro lado.

– Quem está aí ? – perguntou o dono do hotel, com os nervos à flor da pele.

– Sou eu, Charles! – respondeu a pessoa do outro lado.

– Quem é esse Charles? – perguntou Rubem.

– É um dos seguranças. – explicou o Sr Schneider.

– Por favor, abram a porta! – insistiu a pessoa do lado de fora – Está acontecendo um massacre aqui!

O dono do hotel aproximou-se da porta.

– Não abra! – gritou o escritor – Ele pode estar envolvido!

– Isso é bobagem! – retrucou o velho – Conheço esse rapaz desde que ele era criança!

Quando o Sr. Schneider abriu a porta, Charles atirou-se para dentro desesperadamente. Estava ensopado de suor, e trazia na face um semblante apavorado.

– O que está acontecendo? – perguntou o dono do hotel, trancando a porta novamente.

– Dinho e Rodrigues estão mortos! – respondeu o rapaz, com a voz trêmula.

– Mas como?! – espantou-se o velho.

– Eu não sei! Falei com o Dinho pelo rádio, e ele estava preocupado porque não conseguia contato com os outros seguranças. Como também não os encontrei, decidi ir até o estacionamento principal, para falar com o Dinho pessoalmente. Mas quando cheguei lá, ele estava morto, com a cabeça arrebentada! Havia pedaços de miolos e sangue por toda parte! – Charles estava quase desmaiando – Quando vi aquilo, corri aqui para dentro, e então encontrei o Rodrigues.

– E onde ele estava ? – perguntou o Sr. Schneider, servindo ao segurança uma dose de whisky.

– O corpo estava no meio da escada... e a cabeça estava lá embaixo, no primeiro andar. – respondeu Charles, bebendo com muita dificuldade, devido à tremedeira.

– Meu Deus! Meu Deus! – exclamava o velho, abismado.

– E agora? O que vamos fazer? – indagou o escritor.

– Podemos tentar chegar até o estacionamento de trás. – disse o Sr. Schneider – Então pegamos um carro e fugimos!

– Não vamos conseguir! – exclamou o escritor – O assassino vai nos pegar antes disso! Além do mais, ele já cortou o telefone e a eletricidade, provavelmente sabotou os carros também.

– Eu não teria certeza quanto a isso. – interveio Charles – Eu estava lá até alguns minutos atrás, e ninguém apareceu.

– Você não viu ninguém lá fora? – perguntou Sr. Schneider.

– Na verdade, um pouco antes de encontrar o corpo do Dinho, eu vi o detetive correndo pelo bosque, feito um louco.

– O detetive? – espantou-se o velho – Agora realmente eu não entendo mais nada!

– E Sidnei? – perguntou o escritor – Você não viu Sidnei?

– Sidnei? – espantou-se Charles.

– Isso mesmo, Sidnei, o manco. Você o viu?

– Mas, ele foi embora, há um bom tempo atrás! – respondeu o segurança.

– Como assim, foi embora? – interveio Sr. Schneider.

– Simplesmente pegou a sua caminhonete e saiu em disparada, pelo portão dos fundos.

– E por que você não nos avisou?

– Porque Sidnei sempre entrou e saiu a hora que quis. Ninguém me pediu para vigiá-lo.

– Bem – disse o velho – Pelo menos sabemos que o assassino não é ele.

– Eu não apostaria nisso. – intrometeu-se Rubem – Ele pode ter feito aquilo apenas para despistar.

– Pelo amor de Deus, Rubem! – irritou-se o dono do hotel – Pare de insistir nessa história! Veja o que aconteceu com Rodrigues! Ele era um homem com mais de um metro e noventa de altura, entendia de artes marciais e estava armado com uma Magnum! Sidnei nunca teria condições de massacra-lo daquela forma!

Todos ficaram em silêncio.

– Talvez você tenha razão. – concordou o escritor, após refletir por alguns instantes.

 

       20h 15min

 

       Duda já tinha planejado tudo. Sairia sorrateiramente da cozinha, onde estava escondido, passaria correndo pela área de serviço, e chegaria ao estacionamento traseiro pela porta dos fundos. Lá, entraria no primeiro carro que encontrasse aberto, e fugiria daquele lugar maldito, o mais rápido possível. Que se lixassem o Sr. Schneider, o Dinho e os outros seguranças. E principalmente, que se lixasse o nojento do Renato, que sempre quis bancar “o gostosão”. Tomara que o tal Palhaço Gargalhada arrancasse as tripas dele. Não importava que o chamassem de covarde. Aliás, nada mais importava, além de salvar a sua própria vida.

       Desde que anoitecera, Duda notou que as coisas não estavam bem. O ar estava denso e tinha cheiro de morte. Por isso resolveu se esconder. Afinal, nunca fora segurança droga nenhuma, apenas pegou aquele emprego porque lhe disseram que não precisaria fazer nada. Chutar o traseiro de algum bêbado, no máximo. Mas a situação ia mal. Há alguns instantes atrás, ele ouviu passos, gritos, gemidos e todo tipo de barulhos assustadores. Porém, depois tudo ficou em silêncio, e só o que ele tinha que fazer era sair do armário e correr, com todas as suas forças. Se alguém aparecesse na frente, ele iria mandar bala.

     Silenciosamente, o rapaz saiu de seu esconderijo. Estava tudo calmo. Andou apressadamente em direção a porta da área de serviço, mas um calafrio percorreu-lhe a espinha ao constatar que a mesma estava trancada. Subitamente, uma dor tremenda invadiu-lhe o corpo no instante em que suas costas foram transpassadas por uma violenta facada. Em um primeiro instante até tentou se defender em meio à dor e o pânico, mas foi inútil, pois o seu agressor era muito forte. Depois de uma série de golpes, desabou ao chão, repleto de sangue, e antes de perder definitivamente a consciência, lhe veio à mente a imagem surreal do velho sítio dos pais, na sua cidade natal, de onde desejou nunca ter saído.

 

Continua na próxima semana...

 

O Caso do Palhaço é um livro escrito por André Bozzetto Jr em 1999 que acabou não sendo publicado no época e, posteriormente, seus originais foram considerados perdidos, fazendo com que permanecesse inédito por mais de 20 anos. Recentemente redescoberta, a obra está sendo agora disponibilizada gratuitamente na forma de capítulos semanais no blog Relatos Noturnos.  

10 de mai. de 2022

1999: O CASO DO PALHAÇO - Parte II


 

PARTE II

 

            Vale Dos Pinhais, 24 de Novembro de 1999

            18h 35min

 

            – Palhaçada! Isso é uma grande palhaçada! – bradou o detetive Allan – Não sei em quê esses sujeitos podem nos ajudar!

            – Eles sabem muito sobre essa história toda! – respondeu o Sr. Schneider – Podem nos dar informações valiosas !

            – Eu fiz uma ampla pesquisa sobre o Caso do Palhaço – intrometeu-se Rubem, procurando se justificar – Publiquei um livro falando sobre o assunto, e na época do lançamento esse livro ficou oito meses no topo da lista dos mais vendidos do Jornal Zero Hora.

            – Isso foi há dez anos! – Retrucou o detetive, com desprezo – A história agora é outra!

            – Não, a história não é outra! É a mesma história! – Insistiu o Sr. Schneider, com irritação – E por  isso vou refrescar a sua memória, já que estou lhe pagando para que faça algo de útil: Em 1989, um homem pacato e bem-humorado, chamado Adão Fonseca, que nunca teve nenhum antecedente criminal, e que trabalhava como animador de festas infantis, enlouqueceu, sabe-se lá por que motivo, e invadiu o meu hotel, assassinando três dos meus funcionários e mais dois clientes, arruinando a minha reputação e a minha vida! – O Sr. Schneider estava realmente enfurecido. Ofegava, e tinha o rosto vermelho, acentuado pelos olhos lustros. Acendeu um cigarro e continuou a divagar, de uma forma que parecia ao detetive quase teatral – Dois dos meus seguranças acabaram por matar aquele infeliz. Mas esse não foi o fim do pesadelo. Processos, inquéritos, policiais, advogados,... tudo só pra me ferrar! Como se eu tivesse culpa! Perdi uma fortuna com isso tudo, e para piorar o meu hotel nunca mais foi o mesmo! Eu nunca mais fui o mesmo! Demorou sete anos para as pessoas esquecerem aquela noite horrível e voltarem a frequentar esse lugar como antigamente. Antes disso, apenas malucos e fãs de bizarrices do tipo que acham divertido especular sobre tragédias como a que aconteceu aqui.

            O detetive e o escritor entreolhavam-se, inquietos.

            – E agora, dez anos depois, quando parecia que tudo estava bem, o Palhaço começa a matar novamente! – Continuou o Sr. Schneider, dando um soco enrraivecido na escrivaninha.

            – Logicamente, Sr. Schneider, trata-se de um novo assassino, fazendo-se passar pelo antigo Palhaço. – disse o detetive Allan, em um tom que soou arrogante aos  demais presentes na sala.

            – E você acha que alguém não sabe disso?! – perguntou rispidamente o dono do hotel – Não foi para me dizer essas merdas que eu contratei o mais caro detetive particular do Estado!

            – O senhor contratou o mais caro e melhor detetive particular do Estado! – respondeu Allan, com a petulância que parecia ser sua marca registrada.

            – Então prove isso e pare de se comportar como um idiota! – esbravejou o velho Schneider – Ouça o que esses homens têm a dizer!

            O detetive olhou para os outros indivíduos presentes no aposento. A sua direita estava sentado o escritor, o tal de Rubem. Aparentava ter mais ou menos a sua idade, cerca de trinta e poucos anos. Tinha um visual esquisito, todo vestido de preto, com os cabelos negros e lisos, aparentando estar sempre úmidos. Possuía o olhar ágil e desconfiado. Sentado em uma cadeira próxima à janela, estava um homem pálido e abatido. Tinha os cabelos grisalhos como os do Sr. Schneider, embora fosse visível que era mais novo do que este. Uns cinquenta anos, talvez. Até aquele momento não havia pronunciado sequer uma palavra. Além deles havia ainda um sujeito grande e mal-encarado, com um bigode a lá Charles Bronson, em pé em um canto da sala.

            – Quem é ele? – Perguntou o detetive, apontando para o homem grisalho.

            – O nome dele é Sidnei Azevedo. – Explicou o senhor Schneider – É o chefe do setor de Serviços Gerais aqui do hotel. Trabalha para mim desde o início. Esta aqui porque foi o único a ser atacado pelo Palhaço e sobreviver.

            – E aquele? – indagou apontando para o grandalhão de bigode.

            – É o Rodrigues, meu segurança particular. Ele vai comigo a onde eu for.

            – Pois bem. – disse o detetive, em meio a um suspiro – Então que seja. Vamos começar reconstituindo os fatos e ver se achamos alguma informação nova. No último dia 31 de Outubro, uma hóspede chamada Alice Miner foi morta enquanto passeava sozinha pelo bosque que fica nos limites do terreno do hotel. A causa da morte foi estrangulamento. Junto ao corpo foi encontrada uma peruca de palhaço. As investigações preliminares da polícia, como sempre, não deram em nada. Pelo menos até agora. Todos os hóspedes foram embora do hotel. Dois dias depois, um novo corpo foi encontrado. Desta vez a vítima foi uma moça que trabalhava na lavanderia, chamada Gina Dias. Foi atingida na cabeça com um objeto que se acredita ser um machado. Junto ao corpo, o assassino deixou um nariz de palhaço, daqueles que se usam nas fantasias. Logicamente, o pânico instaurou-se na região, e a polícia nada descobriu. Por fim, há três dias, um funcionário dos serviços gerais também foi morto com uma machadada na cabeça. Seu rosto foi pintado igual  ao de um palhaço. Como todos vocês já sabem, as investigações policias seguem sem que se consiga reunir indícios suficientes para se chegar a algo de concreto. Por isso, o Sr. Schneider resolveu me contratar.

            – Sim. – concordou o dono do hotel, gesticulando de forma impaciente – E chamei eles para ajudá-lo.

            O detetive já estava pronto para dizer que não precisava da ajuda daqueles caras, mas para evitar um novo discurso do velho, resolveu aceitar que a coisa fosse do jeito dele. Estava sendo muito bem pago, de qualquer forma.

            – Sendo assim, será que o nosso “escritor sabe-tudo” tem alguma teoria? – perguntou Allan, cheio de ironia.

            – Na verdade, tenho várias teorias. – Respondeu Rubem.

            – Fantástico! – Exclamou Allan, em meio a aplausos zombeteiros – E será que você poderia dignar-se a dividi-las conosco?

            – A primeira delas seria chantagem. O criminoso comete uma série de assassinatos no hotel, e depois entra em contato com o dono cobrando uma determinada quantia para que as mortes cessem. – disse o escritor.

            – Pois saiba que a sua primeira teoria é completamente infundada. – Retrucou o detetive – Se o caso em questão fosse uma chantagem, o Sr. Schneider já teria recebido algum aviso do assassino. Além disso, quanto mais mortes ele comete, mais a polícia tende a apertar o cerco. Se o objetivo fosse apenas dinheiro, então ele estaria correndo um risco desnecessário.

            – De fato, não recebi nenhum contato do assassino. – completou o Sr. Schneider – Também acho que não é chantagem.

            – Faz sentido. – disse o escritor, resignado – Na verdade acredito que estejamos lidando com um psicopata, que age inspirado nos moldes do matador original. Um copycat.

            – Um o quê?! – resmungou o dono do hotel, com expressão de espanto.

            – Um copycat. – repetiu Rubem – Um novo assassino que age inspirado por um mais antigo, tentando imitá-lo.

            – Um louco imitando outro. Grande bosta! – Sentenciou o Sr. Schneider.

            – Quanto a isso não resta dúvida. – disse Allan, levantando-se da poltrona – Mas a dificuldade está justamente em traçar um perfil do suspeito. Veja esse Adão, o tal Palhaço Gargalhada. Era um cara perfeitamente normal. Trabalhador, honesto, divertido. E de repente, sem mais nem menos, comete um massacre sem nenhum motivo aparente.

            – Concordo. Mas no caso do Adão, é importante lembrarmos que a filha dele desapareceu no dia do massacre, e nunca mais se teve notícias dela. Acredita-se que, de alguma forma, o seu desaparecimento esteja relacionado com a chacina. – Disse Rubem.

            – Certo, mas isso não quer dizer nada. Provavelmente ele mesmo matou a filha e escondeu em algum lugar. Como podemos saber? Ele estava louco! – Emendou o detetive, enquanto servia-se de café – Esse maníaco atual poderia ser qualquer um. A única coisa evidente é que ele está agindo inspirado no antigo palhaço.

            – Sim. – disse o escritor, com visível empolgação – Mas existem algumas diferenças básicas que podem nos servir de pistas. Por exemplo: o assassino atual só usa armas brancas, enquanto o antigo palhaço usou um revólver na maioria dos seus crimes. O matador de agora também demonstra ser muito astuto e calculista, pois só ataca suas vítimas quando estão sozinhas em lugares afastados ou isolados.

            – Tudo isso é verdade, mas não nos leva a lugar nenhum. Até agora só estamos especulando sobre obviedades aqui. – concluiu o detetive.

            Todos ficaram em silêncio, imersos em suas próprias reflexões.

            O Sr. Schneider estava impaciente. Andava de um lado para o outro, e fumava sem parar. Lá fora o sol ia se pondo.

            – Ei, Sidnei... – disse o dono do hotel, dirigindo-se ao homem sentado próximo à janela – Porque não conta sua história ao detetive? Talvez possa ajudar em algo.

            Sidnei olhou para o detetive com desconfiança. Desde que entrou na sala, não havia dito nada. Permaneceu mais alguns instantes em silêncio, mas depois começou a falar:

            – Bem, sobre o Palhaço Gargalhada, o Adão,  o que eu posso dizer é que sempre fomos amigos. Quando éramos crianças, íamos à escola juntos. Eu, ele e a  Béti, a falecida esposa dele. Quando começamos a trabalhar aqui no hotel, ele demonstrava estar muito feliz, pois a grana era boa, e o serviço divertido. Tudo corria bem até aquele final de tarde, há dez anos atrás. Eu estava vindo para cá, e o vi na beira da estrada, não muito longe da casa dele. Achei estranho, porque ele estava fantasiado. Quando me aproximei para lhe dar carona, ele simplesmente sacou uma arma e atirou. O tiro me atingiu no ombro, mas perdi o controle da caminhonete e capotei ribanceira abaixo. Quebrei várias costelas, e minha perna ficou presa nas ferragens. O osso da canela partiu-se em sete lugares diferentes. Só me encontraram no dia seguinte. Passei uma noite horrível, com tanta dor e medo que nem gosto de me lembrar. – Sidnei tremia e suava muito enquanto falava, mostrando-se visivelmente abalado.

            Sr. Schneider aproximou-se e lhe deu um copo de whisky. Sidnei bebeu alguns goles avidamente, e recomeçou a falar:

            Tive que ficar meses no hospital, mas a minha perna nunca mais melhorou. As pessoas começaram a me chamar de “Sidnei, o Manco”. – o homem estava chorando – Nunca mais consegui fazer nada direito, passei a viver com medo o tempo todo! Houve uma época em que eu não queria mais ver ninguém, não queria mais falar com ninguém! Nem saia mais do quarto! Comecei a beber! A minha mulher foi embora, e a minha filha não fala mais comigo!

            O Sr. Schneider sentou-se ao seu lado.

            – Está tudo bem Sidnei! Vamos até ali fora pegar um ar. – Convidou o dono do hotel.

            – Não! Lá fora eu não vou! – Gritou o homem, levantando-se – E sabem porquê? Porque ele está lá fora! O Palhaço está lá fora, e vai nos matar! Às vezes à noite, eu ouço as suas gargalhadas no mato! E uma vez, há três noites atrás, eu o vi espiando pela janela do meu quarto! Ele vai nos matar! Ele vai nos matar !

            Sidnei estava completamente transtornado. Tinha o olhar alucinado, e parecia à beira de um colapso. Sr. Schneider e Rodrigues, o guarda-costas, levaram Sidnei para fora da sala. O detetive e o escritor ficaram sozinhos.

            – Você está pensando a mesma coisa que eu? – perguntou Rubem, em um tom que parecia querer soar astuto.

            – Não posso imaginar em que esteja pensando. – respondeu Allan, com desdém.

            – Acho que acabamos de ter uma sorte tremenda! É ele! – disse Rubem, levantando-se empolgado.

            – Do que você está falando?

            – Ainda não percebeu? É Sidnei! O assassino é Sidnei! – exclamou com empolgação o escritor.

            – Você deve estar ficando louco! – retrucou o detetive, com desinteresse.

            – Não! Sidnei é o louco. Você não viu? Está completamente transtornado. É evidente que não conseguiu superar os traumas do passado, e alo longo do tempo acabou desenvolvendo uma espécie de personalidade psicótica!

            – Para mim isso parece roteiro de livro ruim. – devolveu Allan, com ironia.

            Neste momento o Sr. Schneider e o guarda-costas voltaram para a sala.

            – O que fizeram com o Sidnei ? – perguntou o escritor.

            – Obrigamos ele a tomar um calmante e depois o levamos para repousar em um dos quartos. – Responde o velho Schneider, servindo-se de uma dose de whisky.

            – Pois então é melhor trancar o quarto. – Disse Rubem.

            – O quê? – Indagou o velho, confuso.

            – Esse “escritorzinho sabichão” está achando que Sidnei é o assassino! – intrometeu-se o detetive, irritado – Eu disse que a presença dele aqui só iria atrapalhar ao invés de ajudar.

            – Mas me parece lógico! – defendeu-se o escritor, exaltado – Está claro que Sidnei está doente. Não sei se o seu problema é esquizofrenia, paranóia, ou sei lá o que, mas ele está muito transtornado, e todos vocês viram isso. Além do mais, ele é o cara perfeito para ter cometido aqueles crimes. Com a desculpa de estar verificando se está tudo em ordem, ele pode ficar o tempo todo andando pelo hotel. Assim, ele percebeu quando a hóspede afastou-se e entrou no bosque. Foi muito fácil pegá-la,  pois ele trabalha aqui há mais de dez anos e conhece toda a região perfeitamente. Vejam o caso da segunda vítima: Sidnei conhecia os seus horários, e surpreendeu-a quando estava saindo sozinha da lavanderia. E a terceira vítima é a mais evidente de todas: o cara trabalhava no setor de serviços gerais. Como Sidnei era seu chefe, não teve dificuldades para atraí-lo a um lugar deserto e matá-lo. E ainda teve tempo de pintar o seu rosto como o de um palhaço. Agora só precisamos entrega-lo a polícia!

            Um profundo silêncio dominou a sala.

            – O que você acha disso, detetive ? – Perguntou o dono do hotel, com desconfiança.

            – Me parece uma história absurda demais. – respondeu Allan, em tom de desaprovação – A Polícia deve ter checado algum álibi de Sidnei. Não é possível que os policiais daqui sejam tão ruins a ponto de não terem verificado isso.

            – Nesse ponto, acredite, amigo: a polícia daqui é sim, muito ruim. – retrucou o Sr. Schneider, acendendo mais um cigarro.

            – Ele está com inveja, porque é um incompetente, incapaz de descobrir qualquer coisa! – gritou Rubem, furioso, apontando para o detetive.

            – Veja lá como fala, seu “Stephen King de meia-tigela”, ou eu enfio a mão na sua cara! – Retrucou o detetive, igualmente irritado.

            – Vamos parar com isso! – interveio o velho Schneider – A idéia do Rubem até que faz sentido. Rodrigues, vá até lá em cima e tranque o quarto onde o Sidnei está.

            O guarda-costas prontamente obedeceu ao patrão.

            – Por que você me chamou de “Stephen King de meia-tigela”? – Perguntou Rubem, sem disfarçar a mágoa e a indignação.

            – Porque é justamente isso que você é! – respondeu o detetive, de forma incisiva – Um escritorzinho de merda que passou anos escrevendo histórias de terror de segunda categoria sem repercussão nenhuma, e de repente decidiu escrever sobre o Caso do Palhaço, uma tragédia real. E então, o que aconteceu? Ganhou alguns instantes de fama às custas da desgraça alheia!

            – Não sabia que você conhecia tão bem a minha carreira. – resmungou Rubem, irônico.

            A discussão foi bruscamente interrompida quando o guarda-costas entrou na sala, ofegante.

            – O que aconteceu, Rodrigues ? – Indagou o velho Schneider.

            – Ele sumiu! O Sidnei sumiu! – respondeu o guarda-costas, visivelmente preocupado.

            – Eu disse! Eu disse! – gritou o escritor – Daqui a pouco ele vai entrar em ação!

            – Calma, não vai acontecer nada. – disse o dono do hotel – Vamos tomar providências. Rodrigues, pegue o rádio e entre em contato com os seguranças lá de fora. Peça para que fiquem atentos. Detetive, me faça um favor: vá até o elevador no fim do corredor e acione o mecanismo para deixá-lo travado. Assim, se alguém quiser mudar de andar, terá que passar pela escada aqui ao lado.

            Os dois homens assentiram e saíram rapidamente. O Sr. Schneider abriu uma gaveta da escrivaninha e pegou um revólver, colocando-o na cintura.

            – Quantos seguranças estão aqui ? – perguntou o escritor, andando nervosamente de um lado para o outro.

            – Cinco, contando os quatro que estão lá fora mais o Rodrigues. – respondeu o velho, enquanto acendia um cigarro.

            – E os outros?

            – Foram embora. Estavam com medo.

            – Então quer dizer que são cinco seguranças, além de você, eu e o detetive? Bem, teoricamente, temos chance. – disse Rubem, servindo-se whisky.

            – Não é preciso ter medo. Vai ficar tudo bem. – Retrucou o dono do hotel.

            – Se eu fosse você não apostaria nisso. – concluiu o escritor, olhando pela janela. Lá fora a noite estava escura e silenciosa.

 

Continua na próxima semana...

 

 

O Caso do Palhaço é um livro escrito por André Bozzetto Jr em 1999 que acabou não sendo publicado no época e, posteriormente, seus originais foram considerados perdidos, fazendo com que permanecesse inédito por mais de 20 anos. Recentemente redescoberta, a obra está sendo agora disponibilizada gratuitamente na forma de capítulos semanais no blog Relatos Noturnos.