23 de mar. de 2021

A ESCADA ATRÁS DA PORTA

 

 

Por André Bozzetto Junior

 

            De novo a imagem daquela estranha porta. Ela não é fixada em parede alguma, e de seu interior parece emanar um luz esbranquiçada. Adão não consegue visualizar direito o que há por detrás dela. Seria uma escada?

          De repente, uma sensação de leve tontura, uma vertigem, e as pálpebras pesadas se abrem lentamente. Adão vê o copo vazio e a garrafa também. Havia adormecido sobre a mesa e agora está de ressaca, mais uma vez. A queimação no estômago é horrível. Talvez comer algo ajude a passar o mal-estar.

          Contudo, na geladeira só há líquidos. Todos eles alcoólicos. Decide pegar a vara de pesca e descer até o rio. A ideia de fisgar um peixe para comer já ganha ares de necessidade. Meio cambaleante, se põe a percorrer e curta distância que separa sua cabana do curso d’água.

          Enquanto desce o barranco, avista por entre as árvores algo estranho bem junto à margem. Uma sensação desconfortável e inquietante começa a oprimir o seu peito, dando a impressão de que alguma coisa esquisita está prestes a acontecer. Ele continua se aproximando com desconfiança, agarrando-se na vegetação ao redor. Quando finalmente chega à borda do declive, o que avista lhe causa um espanto tão grande que chega a cambalear para trás, soltando a vara de pesca e caindo sentado na terra úmida. O que está estendido nas rochas diante de si é um cadáver, e, como se tal descoberta não fosse suficientemente assustadora, o pavor lhe toma por completo ao constatar que se trata do seu próprio corpo ali desfalecido.

          Ele faz menção de levantar para sair correndo, mas, nesse momento, visualiza ao lado do cadáver um menino magro, de olhos grandes e verdes, que parece ter surgido do nada. A criança não faz movimento algum, permanece imóvel, observando de forma impassível, mas, mesmo assim, sua presença transmite a Adão um sentimento de pânico tamanho que ele fecha os olhos com força e grita, em desespero.

 *

          De repente, uma sensação de leve tontura, uma vertigem, e as pálpebras pesadas se abrem lentamente. Adão vê o copo vazio e a garrafa também. Estava de volta sobre a mesa, só que dessa vez, o estranho menino estava sentado diante de si, o encarando. Com o susto, ele cai do banco e o pavor emerge novamente, todo de uma vez.

          Adão corre para dentro de casa e tranca a porta. Ao perceber que a janela está aberta, se dirige para lá com a intenção de trancá-la também. Ele abaixa o tampo de vidro e então dá de cara com os olhos esverdeados do menino observando-o do lado de fora. Sem saber o que fazer, corre para o lado contrário da sala e se agacha junto à parede tomado pelo medo. Nesse instante, uma voz ressoa vinda do canto oposto:

Não precisa ter medo.

          Adão tem a impressão de estar infartando. Olha para o lado, procurando identificar o dono daquela voz misteriosa e vê um homem bem vestido, de aparência séria e jovial.

Quem é você?! Um fantasma?! – pergunta Adão, com voz embargada.

Bem, sou o espírito de alguém que está morto. Então, tecnicamente, sim, sou um fantasma. – responde o homem desconhecido, de forma impassível.

Veio para me levar para o inferno?! – questiona o apavorado Adão, tentando se espremer cada vez mais contra a parede.

Pelo contrário: vim para ajudar a resolver essa confusão de uma vez por todas.

          Tão logo essas palavras são pronunciadas ,o menino surge de um canto escuro da sala e se posiciona ao lado do estranho.

E ele?! – pergunta Adão, com os olhos cheios de lágrimas – Quem é ele?!

Ele é você. – responde o homem, em tom tranquilo.

O quê?! – vocifera Adão.

Ele é você… – repete o desconhecido – Uma versão de você que, por enquanto, ainda não existe no mundo material.

Mas, como assim…?!

Você está morto, Adão. – interrompe o estranho – Morreu há um bom tempo atrás, quando estava indo pescar, bêbado, como de costume. Rolou o barranco e quebrou o pescoço. Porém, por estar com a mente sempre entorpecida pelo álcool e por nunca ter feito qualquer esforço para sair da ignorância, ficou preso neste plano de consciência, revivendo repetidamente, apenas com pequenas alterações, o dia de sua morte.

          Adão permanece em silêncio, como se tentando processar as impactantes informações que acabou de ouvir.

Este menino – continua o desconhecido, apontando para a criança ao seu lado – É uma nova versão de você, idealizada para viver em uma realidade paralela. O fato de ele estar aqui, aparecendo aos seus olhos, é uma tentativa da sua consciência de lhe fazer entender que o foco da sua mente agora deve ser outro.

E você, quem é? – pergunta Adão, como se, ao desviar o rumo da conversa, pudesse diminuir a tremenda angústia que estava sentindo ao ouvir as palavras do estranho.

Eu também sou você. – responde o desconhecido – Sou uma versão de você que viveu e morreu em uma dimensão alternativa. Na verdade, só estou aqui porque é assim que a sua consciência organizou as memórias daquela vida anterior, para lhe ajudar a entender a verdade.

Não estou entendendo é nada! – grita Adão, com voz trêmula – Vocês são reais ou estão apenas na minha mente?!

Nós estamos apenas na sua mente... – afirma o estranho, de forma tranquila – E por isso mesmo é que somos reias. Tudo o que existe de real é o que está na sua consciência.

Isso não faz sentido! – resmunga Adão – Se você é eu, como poderia saber todas essas coisas que está me dizendo? Eu sou um simples pescador!

Quando você viveu a vida a qual eu represento, era um funcionário do Governo, com grande conhecimento em metafísica e ocultismo. O problema é que foram cometidos alguns erros e, como na natureza tudo precisa ser compensado e equilibrado, você voltou nesta existência como um homem simples em um cotidiano trivial, mas com plenas condições de se desenvolver e evoluir. Porém, sua dificuldade em resistir aos vícios lhe colocou no alcoolismo e então tudo foi por água abaixo.

          Finalmente, as coisas pareciam começar a fazer sentido para Adão.

E então… – pergunta ele, de forma um pouco mais serena – O que acontece agora?

          Sua existência atual aqui neste plano consciencial precisa ser descontinuada – explica o estranho – Assim toda a sua energia psíquica vai migrar para o menino. É naquele corpo que a sua mente deve habitar agora. Se não for assim, ele nunca vai existir no mundo normal. Vai ficar aqui, e vocês ficarão assombrando um ao outro, como dois fantasmas.

E como se faz isso? – questiona Adão, já com uma sutil intuição do que estava por vir.

Lembra-se da porta? – indaga o desconhecido – Aquela da escada e da luz estranha, com a qual você ainda “sonha”? O jeito natural de resolver a situação seria você ter entrado nela na primeira vez que a viu, logo depois de ter morrido. Como não fez isso, ficou vagando por esta dimensão intermediária, como uma “alma penada” dos contos de assombração. Agora precisaremos usar um método mais drástico para convencer a sua mente de que a existência desse foco consciencial chegou ao fim.

          Ao proferir essas palavras, o estranho calmamente insere a mão direita no interior do blazer e dali retira uma pistola. Adão arregala os olhos com espanto ao ver o cano da arma apontada para a sua cabeça.

Não se preocupe. Vai ficar tudo bem. – afirma o estranho, um segundo antes de apertar o gatilho.

 *

          De repente, uma sensação de leve tontura, uma vertigem, e as pálpebras pesadas se abrem lentamente. O menino vê diante de si o copo vazio e a jarra de suco também. Não devia ficar até tão tarde lendo histórias em quadrinhos. Se a sua mãe soubesse que pegou no sono na cozinha de novo, certamente lhe daria uma bronca. 

20 de mar. de 2021

ÁGUAS SOMBRIAS - PARTE III: Uma Noite Muito Bizarra

 

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Depois do relato anterior, que para algumas pessoas pode ter dado a impressão de que não teve nada a ver com o primeiro, justifico que todas as histórias estão interligadas e servem para ilustrar o tipo de acontecimentos insólitos que ocorrem nas imediações do Lago Verde e também para evidenciar que não são tão raros assim. Vou dar mais um exemplo aqui e, no próximo capítulo, começarei a explicar qual pode ser a razão de tais fenômenos misteriosos. Se você ainda não leu o capítulo introdutório dessa série, clique AQUI, e para ler a segunda parte clique AQUI. A história de hoje eu decidi nomear como

Uma noite muito bizarra

            Conforme já mencionei anteriormente, depois da incrível e apavorante experiência vivida em uma noite calorenta às margens do Lago Verde, comecei a buscar por todos os relatos e histórias que conseguia compilar e, entre várias, essa é uma das mais impressionantes e bizarras. Eu já conhecia a versão “oficial” do fato, como todo mundo na cidade, pois o ocorrido gerou muito alvoroço e boatos, mas a versão supostamente verdadeira só fiquei sabendo depois. E adivinhe aonde? Isso mesmo, no Bar do Fachi! Havia cinco rapazes tomando cerveja em uma mesa naquela noite, não sei como entraram no assunto, pois quando cheguei já estavam falando à respeito. O personagem principal desse causo para lá de esquisito era um rapaz um pouco mais velho que eu, natural da cidade mesmo, mas que morou durante muitos anos em Porto Alegre, depois voltou a morar em Ilópolis, depois foi para a Capital de novo, depois retornou para a nossa cidadezinha, e atualmente não sei onde está morando. Obviamente, não podemos revelar seu nome verdadeiro, então, vamos providenciar um fictício: Raimundo. Tomei conhecimento desse relato em 1998, ou 1999, mas o fato, pelo que me recordo, ocorreu em 1997.

            Todo ilopolitano conhece muito bem o Ginásio de Esportes de propriedade da Escola Estadual, localizado na esquina das ruas Augusto Tomasini com a Luís Bresolin. Durante muitas décadas o local sediou o Campeonato Municipal de Futsal, evento que mobilizava muita gente, do interior e da cidade. Também servia de espaço para a realização de eventos, festas e baladas. Ah, se aquelas paredes falassem! Quantos gritos de gol, xingamentos às mães de juízes diversos, risos e lágrimas… quantos namoros, brigas, romances e amizades que marcaram as páginas das vidas de muitas gerações e hoje são apenas memórias. Há lugares que, ao longo do tempo, constituem uma aura própria, formada por um pouquinho de cada um que já esteve lá. O Ginásio de Ilópolis é um lugar desses e outro dia vou escrever mais sobre ele. Por enquanto vou me limitar a dizer que naquela noite estava acontecendo um evento grande, devia ser o concurso de escolha da Garota Cultura, promovido pela Rádio do município vizinho, ou algo assim.

            Raimundo – que era uma espécie de galã da época – estava de olho em uma moça, aluna do terceiro ano do Ensino Médio. Depois de algumas cervejinhas e um pouco de dança (eu imagino a cena ao som de Barbie Girl, do Aqua, grande sucesso daquele ano) o casal saiu de fininho e foi para o carro do rapaz. Em poucos minutos já estavam estacionados no bosque de pinheiros às margens do Lago Verde, que além de ficar bem próximo, já tinha entre a juventude da época o status de local propício a esse tipo de encontro, chegando até a ganhar o apelido extraoficial de “Motel dos Pinheirinhos”. Dizem que em certas noites chegava até a ter congestionamento nas estreitas estradinhas que circundam a área, e na grande maioria das vezes não acontecia nada de anormal. Mas, naquela noite específica, aconteceria sim. Algo muito anormal.

            Pelo que se sabe, o rapaz estacionou seu carro quase no mesmo lugar onde eu e os meus amigos estávamos na noite do primeiro relato. Não parecia haver outros por perto naquele momento. Talvez por isso mesmo as coisas evoluíram rápido no interior do veículo e logo o casal já estava sem roupas. Porém, o lance parou por ali mesmo, pois, segundo Raimundo, o carro de repente começou a balançar violentamente, como se várias pessoas o estivessem chacoalhando ao mesmo tempo.

            Como estava muito escuro ao redor, Raimundo pensou que seus amigos os haviam seguido e estavam de sacanagem. Abriu a porta e já saiu do veículo – pelado mesmo – xingando quem quer que fosse. Até então ele estava irritado, mas não com medo. Só começou a sentir medo de verdade quando percebeu que não havia ninguém do lado de fora, ao mesmo tempo em que a música e a luz interna do carro se desligaram, tornando a escuridão praticamente total. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, o rapaz ouviu um estrondo muito forte vindo do próprio veículo e a moça começou a gritar desesperadamente.

            Apavorado, Raimundo percebeu que o som dos gritos foi ficando mais fraco, não porque a garota estava se acalmando, mas sim porque ela estava ficando mais distante! Estava sendo arrastada, ou levada para longe – por alguém ou alguma coisa – de forma muito rápida. O rapaz tentou gritar o nome dela, mas sua voz se perdeu na escuridão da noite quando percebeu que ele próprio estava sendo arrastado. Ao contrário da moça – que pela direção da voz parecia ter saído voando – Raimundo foi puxado rente ao chão, como se estivesse com o tornozelo amarrado junto ao para-choque de um carro em movimento.

            Embora não saiba precisar por quanto tempo isso durou – e ele teve a impressão que foi muito – na verdade deve ter sido rápido, pois apesar de estar completamente nu, não se machucou muito, ficando apenas com alguns esfolados, terra e palha de pinheiro pelo corpo.

            Quando conseguiu se levantar, Raimundo chamou pela moça e ainda conseguia ouvir ela gritando, mas parecia cada vez mais longe. Então sentou ao volante do carro e tentou ligá-lo, mas sem sucesso. Ele não ligava de jeito nenhum. Naquele momento, a única ideia que passou pela sua mente desesperada foi a de pedir ajuda. E precisava ser o mais rápido possível. Imediatamente!

            Então ele simplesmente saiu correndo pelas estradinhas em meio ao bosque, seguindo em direção ao Ginásio de Esportes, que fica a apenas 1 km do Lago Verde, talvez um pouquinho mais ou um pouquinho menos. Não me pergunte como ele fez isso, pois eu já estive em situação semelhante e sei como é difícil correr na escuridão, com a sensação constante de que há uma ameaça que você não consegue enxergar, lhe espreitando por entre as árvores.

            Contudo, o fato é que ele conseguiu chegar de volta à festa, sem sofrer maiores danos. Mas, havia um detalhe: estava pelado. Ao se aproximar do Ginásio, mais ou menos lá pelas cercanias da casa do Celso Secco, ele começou a se esgueirar por trás dos carros estacionados, procurando avistar algum conhecido do lado de fora, sem ser visto pelo povo que circulava diante do evento.

            Como em Ilópolis todo mundo conhece todo mundo, ele logo avistou alguém que sentiu confiança em chamar. Deu alguma explicação rápida e mandou o sujeito entrar na festa e buscar os seus amigos que estavam lá. Enquanto o cara fazia o que ele pediu, pois qualquer um entenderia o senso de urgência do momento, Raimundo tentou permanecer escondido detrás dos carros, mas era óbvio que alguém mais iria vê-lo e, como sempre acontece em lugares pequenos, a notícia se espalhou à velocidade da luz e rapidamente um monte de gente já estava saindo do recinto com os pescoços espichados, tentando enxergar onde estava o tal cara pelado zanzando por entre os veículos.

            Em meio ao tom de comédia, sem saber se era para achar graça ou se apavorar, quatro ou cinco amigos de Raimundo saíram da festa, embarcaram em dois carros e seguiram em direção ao Lago. O rapaz então precisou sair de onde estava parcialmente escondido para que eles o deixassem embarcar também, e foi nessa hora que muita gente viu o tal sujeito “com o bundão branco e o bilau de fora”, como me contaram as más línguas depois.

            Enquanto Raimundo tentava explicar o ocorrido – sem ninguém entender quase nada – o grupo rapidamente chegou ao local onde estava o carro abandonado e todos começaram a procurar e chamar pela moça desaparecida, pois esta parte era a única que tinham entendido.

            Embora não conseguissem enxergá-la, os rapazes ouviam a voz da garota ao longe. Alguns diziam ter a impressão que o som vinha de uma direção, outros de outra, e havia até quem achasse que os gritos vinham do alto. Os dois carros com os quais o grupo chegou ao local estavam funcionando perfeitamente e parece que até o de Raimundo voltou a funcionar quando tentaram ligá-lo de novo. E foi assim, com o auxílio dos faróis, que finalmente avistaram a moça, depois de muito circularem pelos arredores. Ela estava dentro da água, a mais de 500 metros do local de onde havia sumido. Para ser mais específico, estava próxima daquela área onde há um laguinho menor, do outro lado da estrada que passa sobre uma tubulação de concreto.

            Como ela sabia nadar, já estava se aproximando da margem por conta própria e não foi nada difícil para os rapazes a retirarem da água. Estava com o corpo repleto de arranhões e pequenos cortes, como se causados pelo atrito com os galhos dos pinheiros, mas nenhuma lesão mais séria. O dano maior parecia ser psicológico mesmo, pois não parava de chorar e balbuciar palavras incompreensíveis, em choque. Não conseguia explicar o que havia acontecido, assim como Raimundo também jamais conseguiu.

            Provavelmente você que está lendo isso deve estar achando que essa história não pode ser verdade, que é maluquice, invencionice, ou simplesmente uma bela mentira, não é mesmo? Pois então, com certeza a maioria das pessoas pensaria do mesmo jeito e por isso foi preciso inventar uma história mais plausível para tentar justificar o injustificável. Raimundo e seus amigos decidiram contar para todo mundo a seguinte versão: o casal estava no carro, namorando, quando de repente apareceu um cara da cidade vizinha, Arvorezinha, acompanhado de dois amigos. Esse sujeito gostava da moça que estava com Raimundo e, enciumado e irritado por ter sido rejeitado na festa, decidiu seguir o casal com seus comparsas para se vingar. Então esses três indivíduos teriam agredido o casal, o que justificava os machucados. Como na época havia uma forte rivalidade entre grupos de Ilópolis e de Arvorezinha, tendo inclusive gerado diversas brigas, é possível que muita gente tenha acreditado na história.

            Porém, bastaria uma reflexão mais atenta para se perceber que tinha muitos furos nessa versão, a começar pelo peladão circulando lá pelos arredores do Ginásio. Provavelmente os primeiros a perceber que algo estava muito estranho nessa história toda – além do vexame – foram os pais da moça, tanto que a mandaram para concluir o Ensino Médio em Porto Alegre, onde a família tinha parentes, e depois ela já ficou por lá mesmo para fazer a faculdade. “Quem não é visto não é lembrado”, diz o ditado, e mantendo a garota afastada, poderia ser que o povo se esquecesse mais rapidamente daquele caso constrangedor. O mais engraçado é que, como sempre acontece nas cidadezinhas do interior, com o passar do tempo a história vai ganhado versões alternativas, reduzidas, aumentadas ou simplesmente modificadas a tal ponto que quase ninguém mais se lembra de como as coisas ocorreram na época. Ao longo dos anos, eu já ouvi gente contando essa história – na verdade, parte dela – dando a entender que o Raimundo teria circulado nu pelo entorno do Clube Recreativo, da Praça e até do Salão Paroquial. Sabemos que as coisas não foram bem assim, mas, de qualquer forma, “a tal festa onde um cara apareceu pelado na rua” se tornou parte do folclore popular de uma geração. Uma festa muito bizarra, mas que nos dias de hoje, talvez fosse classificada como uma mera lenda urbana.

            Depois de ouvir atentamente esse relato, me convenci de que os acontecimentos insólitos envolvendo o Lago Verde eram mais comuns do que se poderia imaginar, o detalhe é que quem passou por isso raramente assume publicamente. O mais normal é se ficar sabendo assim, em uma mesa de bar ou entre aqueles pequenos círculos de amigos de confiança. Eu poderia inserir vários outros relatos nessa série, mas não vou fazer isso. Creio que já ilustrei como os fenômenos ocorrem – há diferenças, mas também padrões de semelhança – e agora vou me dedicar a explicar porque eles ocorrem. A primeira possível explicação para a origem dos eventos misteriosos chegou até mim em 2001 ou 2002, enquanto eu trabalhava na Escola EMAFA e apareceu por lá um professor da Universidade Federal de Rio Grande (FURG) que estava fazendo sua tese de Doutorado – ou Pós-doutorado – sobre Educação Ambiental. Foi ele quem primeiro me falou sobre Linhas Ley. Mas, isso é assunto para o próximo capítulo.


19 de mar. de 2021

ÁGUAS SOMBRIAS - PARTE II: O Menino do Lago


 

Por André Bozzetto Junior

 

            Após vivenciar a experiência relatada no capítulo anterior (que você pode ler clicando AQUI), passei a ficar praticamente obcecado pela vontade de entender a lógica por trás daqueles insólitos acontecimentos. As respostas mais coerentes vieram um tempo depois, mas vou seguir a abordagem dos fatos em ordem mais ou menos cronológica.

            A primeira coisa que fiz, nos dias seguintes, foi procurar por um colega de aula do tempo do Ensino Fundamental, quando estudávamos na Escola Estadual, que ficava no prédio onde hoje funciona a Câmara de Vereadores e a Secretaria de Educação de Ilópolis. Eu não tenho mais contato com ele há muitos anos e, por isso, vou lhe dar um nome fictício neste relato: Sílvio. Pelas informações que tenho, ele foi trabalhar como pedreiro em Porto Alegre, no início dos anos 2000 e ficou morando por lá mesmo. A família dele vivia bem próximo do Lago Verde – onde está até hoje – e, por isso mesmo, sempre soube de muitas histórias estranhas supostamente acontecidas por aquelas bandas ao longo do tempo. Sílvio havia me contado várias dessas histórias quando conversávamos nos intervalos das aulas, e eu queria muito ouvi-las de novo, agora com outras possibilidades de entendimento.

            Encontrei-o algumas semanas depois, em uma sexta-feira de noite, no Bar do Fachi, mais popular ponto de encontro dos jovens de nossa faixa etária naquela época. Convidei Sílvio para tomar uma cerveja e rapidamente entramos no assunto dos “causos misteriosos” envolvendo o Lago Verde. Creio ser interessante mencionar que naquela época – final de 1998 – eu havia acabado de publicar meu primeiro livro, Odisseia nas Sombras, o que gerou certa repercussão no Município. Então, as pessoas viam como natural o meu interesse de escritor por ouvir histórias e causos diversos e relatavam o que sabiam de boa vontade, se limitando a pedir anonimato, para não se exporem e correrem o risco de virar alvo de piadas por parte daqueles que não acreditam nesse tipo de acontecimentos.

            Para a minha surpresa, Sílvio tinha uma nova história que, ao contrário daquelas que me haviam sido relatadas na infância, das quais ele só tinha ouvido falar através de parentes e amigos, agora tratava-se de algo vivenciado presencialmente, bem pouco tempo atrás. Para deixar a narrativa mais fluida e facilitar a leitura, vou transcrever o relato na forma de um conto, que decidi intitular como

O Menino do Lago

            Em um sábado de noite, haveria um baile no salão da comunidade de Linha Peca, distante mais ou menos uns 5 km da cidade de Ilópolis. Sílvio e um grupo de mais três rapazes, formado por primo e amigos, estavam bebendo em um bar no centro, quando decidiram que queriam ir ao evento. Nenhum deles tinha carro, e como não arrumaram qualquer carona, optaram por ir a pé mesmo. Compraram várias latas de cerveja para beber no caminho, acreditando que a caminhada seria divertida e que, para voltar, conseguiriam que alguém os trouxesse de volta.

            Inicialmente, nenhum membro do grupo parecia ter a mínima preocupação por terem que passar pelas margens do Lago Verde no meio da noite, já que esse era o caminho mais rápido para se chegar à Linha Peca. Era lua cheia, o céu estava sem nuvens e a temperatura estava bem agradável. Em tese, daria para percorrer o trajeto sem maiores dificuldades. Talvez até arrumassem uma carona no caminho, com alguém que também estivesse indo ao baile. Porém, quando passou diante da própria casa – que estava às escuras em função de toda a família já ter se recolhido – Sílvio começou a ficar apreensivo. Se lembrou das diversas vezes em que a mãe recomendou que não fossem para perto do lago à noite. Também lhe veio à mente os diversos relatos de aparições fantasmagóricas feitos por outros parentes, e nenhum deles parecia estar brincando ao tocar nesse assunto. Chegou até mesmo a pensar em propor ao grupo que desistissem da ideia, mas como sabia que não seria ouvido, preferiu ficar quieto. Cogitou sugerir aos amigos que caminhassem o mais rápido possível quando chegassem às margens do reservatório, mas ficou com vergonha porque deduziu que o acusariam de estar com medo. Então seguiu calado, com uma crescente sensação de que algo ruim viria pela frente.

            Quando chegaram próximo ao final do calçamento – na altura daquele local onde há uma espécie de piso de cimento que se prolonga da margem para dentro da água, e é utilizado como plataforma de descarga para lanchas, jet ski e similares – o grupo ouviu um longo assobio, melodioso e tétrico ao mesmo tempo, que pareceu vir do meio do lago. Imediatamente, todos pararam de rir e conversar, ficando no mais absoluto silêncio. Sílvio sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha. Olharam em direção à água e, sob a luminosidade pálida do luar, avistaram, lá no meio, um menino acenando para eles. Ficaram como que petrificados assistindo aquela cena. O menino acenava, tornava a mergulhar, sumindo nas águas escuras, para em seguida emergir de novo, emitir aquele enregelante assobio, acenar e afundar novamente na escuridão.

            Sílvio não conseguiria dizer por quanto tempo ficaram vislumbrando aquela cena fantasmagórica. Sabe apenas que sua atenção foi despertada pelo grito vindo da sua esquerda. Quando olhou naquela direção, um de seus amigos estava apontando para a margem, com expressão de desespero. Então, ficou em pânico ao perceber que seu primo estava entrando no lago, já com a água na altura do peito. Ele parecia em transe, e dava a impressão de que continuaria em frente até sumir nas profundezas, só tendo sido impedido por que o rapaz mais velho entre os membros da turma se jogou na água e rapidamente nadou até o amigo, arrastando-o para fora.

            Sílvio e o garoto que estava ao seu lado ajudaram os outros dois a sair da água. De volta à estrada, todos pareciam perfeitamente despertos e cientes de algo muito anormal estava acontecendo. Antes mesmo que pudessem falar qualquer coisa ou cogitar o que fazer, começaram a ouvir passos de algo, ou alguma coisa, que vinha correndo pela escuridão, na direção deles. Imediatamente, se puseram a fugir de volta para a cidade, correndo e gritando estrada à fora.

            Dentro de poucos minutos, já estavam diante da casa de Sílvio, que, conforme já mencionado, ficava próxima. Só então se deram conta de que estavam faltando dois rapazes, justamente os que haviam entrado na água. Nesse momento, os familiares de Sílvio já estavam saindo de casa para ver qual era o motivo da gritaria. Sem tempo para detalhes, foi dito que algo estranho tinha acontecido no lago e dois amigos estavam desaparecidos. Rapidamente, um grupo de cinco ou seis pessoas com lanternas e facões se dirigiu ao local onde a dupla havia sido vista pela última vez.

            O primo de Sílvio estava ali mesmo, deitado no chão em posição fetal, chorando baixinho, em estado de choque. Apesar de tudo, não aparentava estar machucado. Quando questionado sobre onde estava o outro garoto, dizia apenas que alguma coisa o havia arrastado para longe. O grupo continuou procurando pela estrada, pela margem do lago e pelas encostas de mato.

            Subitamente, notaram alguém se aproximando pela estrada escura. Quando apontaram as lanternas naquela direção, viram que era o rapaz desaparecido que voltava mancando e caminhando com dificuldade. Estava ensanguentado, com a camisa esfarrapada e as calças rasgadas na altura dos joelhos. Faltava-lhe o sapato no pé esquerdo. Cogitaram levá-lo ao hospital, mas depois, na claridade, viram que ele estava muito esfolado e até com alguns cortes, mas nenhuma lesão mais grave. No hospital fariam muitas perguntas e seria difícil dar alguma explicação convincente sem parecer ridículo. Por fim, decidiram tratar seus ferimentos em casa mesmo.

            Quando perguntado sobre o que havia acontecido, ele disse simplesmente que alguma coisa o agarrou e saiu lhe arrastando pela estrada, até passar pela frente da Escola EMAFA, quando finalmente foi solto. Ou seja, foi arrastado nos cascalhos por mais de 300 metros.

            A família de Sílvio repreendeu o grupo, dizendo que todos sabiam ser perigoso circular por aquela área tarde da noite. Também disseram que muita gente já tinha presenciado a aparição do Menino do Lago, um fenômeno que se repetia ocasionalmente há muitos anos. Supunham que se tratava do espírito de alguém que havia se afogado ali, em algum momento do passado. Explicaram que, um bom tempo antes da construção da Escola EMAFA, um pouco para cima daquele local, havia várias casas de famílias, inclusive de alguns parentes. Quando surgiu, na segunda metade da década de 70, a proposta da Prefeitura de remover esse pesoal para a Vila Santa Rita, a quase totalidade aceitou de bom grado, justamente por que tinham medo de sair de casa durante a noite.

            Obviamente, fiquei muito intrigado com a história do Sílvio, o que só aguçou a minha curiosidade para procurar saber mais. Pouco tempo depois, fique sabendo da versão “real” de um fato muito polêmico envolvendo um casal de “namorados”, que tinha dado o que falar na cidade, pelo menos entre os jovens. Vim a saber que, na verdade, a história não era como se contava, mas sim  tinha relação com os insólitos acontecimentos do Lago Verde. Mas, esse relato farei no próximo capítulo.

            Quero concluir citando que, duas ou três semanas depois dessa conversa com o Sílvio, encontrei na rua o rapaz que teria sido arrastado em seu relato. Nos conhecíamos do tempo de escola e até tínhamos jogado futebol juntos algumas vezes, então não tive receio de tocar no assunto. Quando perguntei o que havia acontecido naquele momento fatídico, ele – que tinha um sotaque carregado e costuma usar umas gírias engraçadas – ficou constrangido, mas respondeu mais ou menos assim:

            “Eu gritei: Corre, piazada, que tá vindo o diabinho encarnado! Dai aquela coisa me puxou e levei um peitaço que tá louco! Me esfolei tudo os peito e os beiço!”

            Questionei se ele não tinha conseguido ver o que era que estava lhe puxando, e a resposta foi:

            “Só vi dois zóião vermeio me oiando! Parecia que chegava sair fuísca naquela escuridão!”

            Eu disse então algo como “Que bom que pelo menos aquilo não seguiu para dentro da água…”, ao que ele interrompeu:

            “Tentou me arrastar para dentro da água, sim! Só que eu me agarrei numas capoeiras e depois me firmei num pinheirinho. Daí a coisa me largou.”

            Por fim, fiz a pergunta que não queria calar: “O que será que era aquela coisa?”. Ele respondeu meio sem jeito, e já foi saindo, encerrando a conversa:

            “Acho que era o demônho”.