2 de ago. de 2021

ELE DEIXOU O PALCO

 

Por Adriano Siqueira

 

            Era mais de meia noite e desta vez, Erick sabia que o seu padrasto não iria perdoá-lo.

            – Dá essa guitarra agora!

            – Mas, pai!

            – Me dá isso ou arrebento sua boca moleque!

            Erick, chorando entregou a sua guitarra e abaixou sua cabeça, olhando para o chão. Seu padrasto o pegou pelo braço e levou até o seu quarto gritando.

            – Eu não falei que não quero mais que você toque? - Olhe para você! Uma vergonha para a família! Essas roupas e esse cabelo. Você me ofende andando assim! Agora chega! É isso que você ama?

            Ele fala rasgando os pôsteres na parede. A mãe de Erick entra no quarto e tenta impedir o padrasto, mas ela é jogada com fúria para o canto do quarto. Erick corre para seus braços e olham para o homem completamente possuído pela loucura.

            – É isso que gosta? Essas músicas?

            Ele joga os CDs pela janela.

            – Acabou! Está me ouvindo!

            Ele bate a guitarra no aparelho de som varias vezes e joga tudo pela janela. Em seguida pega a mulher pelo braço, empurra para fora do quarto. Erick tenta impedir mas é jogado com facilidade para o chão.

            – Saia deste quarto e eu te mato!

            Erick chorou olhando os pôsteres rasgados do seu ídolo e sua guitarra completamente destruída... Até que finalmente adormeceu.

            Depois de pedir muitas desculpas para sua mulher. Ela finalmente o perdoou. Não por ser um bom marido, mas por não ter como cuidar do seu filho sozinha, já que ela não havia trabalhado antes.

            Ele foi até a cozinha pegar uma bebida. Escutou um barulho antes de entrar, mas achou que era um ladrão. Andando com mais cuidado ele, viu um vulto. A luz estava apagada, mas tinha um pouco de claridade que vinha da janela.

            Era um homem vestido com uma roupa e capa branca, de óculos escuros. Iguais aos do seu filho. Começou a relampejar e o reflexo dos raios apareciam nos óculos escuros. O padrasto deu um passo para trás, mas a criatura começou a socá-lo até que caiu completamente ensanguentado.

            De manhã Erick acordou com o grito da sua mãe. Assustado correu em sua direção e teve uma visão que jamais vai esquecer por toda a sua vida.

            Seu pai implorando por perdão... Logo a sua frente... Uma guitarra novinha autografada por Elvis Presley.

27 de jul. de 2021

ESTELA


Por Giulia Moon

 

            Estela lambeu os lábios. Ainda estava claro, mas uma lua cheia afogueada já surgia no céu. Estava tensa. Queria uivar. Queria agir como uma loba. Como uma das tantas lobas que vagavam nas ruas, nos campos, na imensidão do mundo. Todas assim, resfolegando de ansiedade antes do anoitecer.

            Tudo começara depois da primeira transa após os trinta anos. Era um cara lindo, bem mais novo que ela, tinha 0% de gordura no corpo e o mesmo percentual de QI. Na época ela não ligava pra esses detalhes, só sabia que dava gosto apalpar aquele corpinho rijo, firme, viçoso... Aquele fedor de suor, dos hormônios e do relaxo da juventude, que Estela aspirava com vontade, cheia de tesão.

            Se dependesse dela, desfilaria todo dia como uma verdadeira alfa no covil dos shoppings, dos restaurantes, das praias, do agito, com o seu tenro amante a tiracolo. As outras lobas salivavam, esticando e inflando os peitos dentro de suas blusas, camisetas e vestidinhos, todas de olho no garotão da Estela... Que as vigiava com o canto dos olhos, sem perder nenhum movimento das rivais. Ah, nas lobas, não dá pra confiar! Mulheres de todo o tipo, fêmeas chiques dos Jardins, teens sardentas e bronzeadas, intelectuais de cabelinho preso, garçonetes sexualmente contidas em seus uniformes sóbrios. Todas morrendo de inveja de Estela. Bem, se isso também não era um tesão, o que era?

            Isso foi há tempos atrás. As coisas mudam, sabem como é. No caso, o que mudou foi a disposição física de Estela, agora um dínamo de energia e excitação. O problema era a vontade quase incontrolável de uivar, pular e correr por aí, de preferência nua, num local selvagem. Ok, na falta de uma paisagem mais exuberante, podia ser ali mesmo, no asfalto estreito das ruinhas da Vila Madalena. Mas agora era hora de esperar, ter paciência, ficar ali, sentada no barzinho com as pernas musculosas cruzadas, mal-acomodadas sob uma mesinha pequena demais pro seu corpão moldado em academia. Pois é. Paciência...

            Estela franziu o nariz aquilino, farejando o ar. Nada. Contrariada, bebericou o chope. Soprou a fumaça da última tragada do cigarro e livrou-se do toco politicamente incorreto, que descreveu um semicírculo gracioso no ar, diretamente dos seus dedos para a sarjeta.

            Lá do fundo do bar, da área de não fumantes, veio um olhar de reprovação. Um sujeito de gravata olhava feio pra Estela e pro cinzeiro próximo, onde os restos de cigarros malcriados deveriam ser depositados. Ela rosnou baixinho. O homem tinha uns trinta anos, era posudo, com cara de bem-sucedido. A loba mordiscou os dedos de unhas longas pintadas de bege, mais claras que a sua pele. Sim, sim.

          Afinal as coisas estavam acontecendo. Abriu a boca, mostrando os dentes alvos e deixando a boca carnuda falar sem palavras. Leitura labial que o estranho soube fazer muito bem.

            Descruzou as pernas. O vestido solto, cor de chocolate, era quase continuação da sua pele morena. O homem engoliu o último gole do seu uísque e seus olhos percorreram as pernas da loba, indo e vindo, indo e vindo...

            Estela quase podia vê-lo arfando com a língua de fora, examinando a situação como um macho desconfiado. Perdera aquele ar certinho e arrogante em algum ponto entre a boca, o peito, as coxas e o cano das botas de camurça de salto altíssimo de Estela. Ficaram assim, num diálogo silencioso e cheio de malícia, durante alguns minutos.

            De repente, ele dobrou o jornal americano que fingia ler. Olhou a conta e jogou o dinheiro, displicente, sobre a mesa. Sinalizou para o garçom, apanhou o paletó, o jornal, e veio andando na direção de Estela. Uau, era um ataque frontal? Mas o sujeito passou por ela. Ao passar, abaixou-se para pegar o toco do cigarro no chão. Ah, era esse o plano? Ia jogar a guimba no lixo pra dar uma lição sutil na perua maleducada...

            Mas lobas não gostam de sutilezas. Não esta loba. Com um movimento rápido, Estela fincou o salto da bota no meio da mão larga e bem manicurada do homem. Ele não falou. Apenas olhou, atônito, lá debaixo de sua pose vexatória, para a loba de um metro e oitenta que o fitava, a boca enorme aberta num sorriso malvado, a língua vermelha e sem-vergonha passeando pra lá e pra cá nos lábios de caramelo.

            Ela não falou também. Apenas continuou a afundar ainda mais o salto cruel na maciez da mão espalmada. Com vontade. Com volúpia. Era sangue o que queria. E o olhar do macho, mesmo na dor, mesmo com vontade de meter a mão naquela mulher, insistia em percorrer os caminhos meio obscuros, meio reveladores, por debaixo da saia cor de chocolate, dando maior bandeira do seu tesão.

            Então, sob os olhares curiosos, ainda com a mão sob o jugo do salto agulha torturante, o homem ajoelhado aproximou os lábios da bota. E a beijou.

        A bota se afastou e deixou livre a mão vencida. Ele pegou no braço dela. E, juntos, deixaram o bar. O jornal ficou lá, esquecido, um montão de lixo na sarjeta, junto à pequena guimba manchada de batom.

 

            Lua cheia plena, no alto. Estela escovava os cabelos molhados depois do banho relaxante. Olhou-se no espelho do quarto, nua, a pele reluzindo de frescor. Sentia-se gostosa. Grande. Poderosa. Era sempre assim, depois de uma boa caçada. Fora depois dos trinta que começara a caçar. Lembrava-se muito bem. O garotão bonito viera com o papo de dar um tempo, enquanto armava pra cima dela com uma adolescente cheia de celulite. Pra cima dela, vejam só... Não gostava tanto assim dele, mas uma mulher desprezada sempre quer sangue. E às vezes vira loba. Naquela noite, sob a luz da lua cheia, transara com o jovem amante infiel.

            Uma transa cheia de raiva, de tesão e de veneno. E, quer saber? Foi a melhor transa que tiveram em toda a relação. Mas isso não fora nada, comparado com o que se seguiu. Só podia ser feitiço. E poderoso. Nunca soube por que e nem como, mas o desejo que gritara em silêncio durante o sexo se concretizou.

            O garotão esqueceu a outra, escolheu ficar com Estela. O mesmo se deu com todos os demais, que se transformavam de imediato em fiéis companheiros. Um a cada mês, sempre na lua cheia. Doze por ano. Sessenta e quatro até agora. Amantes belos, fogosos, insaciáveis, com os quais só podia fazer sexo uma única noite. Todos aqueles machos deliciosos! O problema era o dia seguinte. Estela tinha que enxotá-los. Eles uivavam e ganiam, mas, no final, iam embora, os rabos entre as pernas, o olhar magoado. Ah, o que podia fazer? Não tinha espaço em casa para um canil. E nem dinheiro para comprar tanta ração...

            Mas o garotão, ela fez questão de manter. Caminha todos os dias com ele. Leva-o ao veterinário, mantém todas as vacinas em dia. Comprara até umas roupinhas de frio no petshop pra ele, que, por sinal, parece bem feliz com a sua nova vida.

            Pois é, hoje era lua cheia mais uma vez. E havia mais um macho no seu quintal. Um tipo arrogante, cheio de pose. O garotão não gostou muito da concorrência, mas acabou se conformando. Afinal, mesmo com o seu QI pequenininho, sabia, pela experiência, que logo o novato seria enxotado como os outros. Pelo menos ele achava que sim. Ela achava que talvez.

            Estela pingou duas gotas de perfume no seu pescoço. Às vezes sentia falta de um macho fixo. Alguém diferente, com quem atravessaria a noite e alcançaria o dia sem se perder nesse labirinto confuso de desejos e instintos desenfreados. Não para desfilar entre as outras lobas, mas para compartilhar algo maior. Mais profundo. Mas lobas não entendem de coisas profundas. Quem, afinal, entende?

            Estela abriu a janela e olhou para o céu, deixando o vento pentear os seus cabelos. Viu as estrelas, ah, tantas estrelas! Um longo uivo começou a brotar de sua garganta. Do quintal, os uivos dos dois machos juntaram-se ao seu.

            E a noite, por um breve instante, foi deles. Só deles.

 

 

* Conto publicado anteriormente no FicZine nº 05, de dezembro de 2006.

19 de jul. de 2021

NOITE INESQUECÍVEL EM AUSCHWITZ

 

 
HQ publicada originalmente no Almanahque Nona Arte nº 2, de Angelo Júnior. Exemplares podem ser adquiridos clicando AQUI.

 

 

 

 
 

 

12 de jul. de 2021

ENTREVISTA COM ANDREI BRESSAN

 

Andrei Bressan
 
 

Primeiramente, gostaria de pedir para que você fizesse uma breve apresentação aos nossos leitores, falando sobre seu envolvimento com as histórias em quadrinhos:

Sou de Piracicaba, interior de São Paulo. Como todos os colegas, comecei a ler quando criança... levou anos pra acabar sendo uma realização profissional. Durante a maior parte do tempo era só um sonho meu. Não achava que seria possível, mesmo sabendo de vários brasileiros trabalhando nos quadrinhos. A coisa só aconteceu de verdade a partir de 2001... fazia Publicidade e Propaganda. Tive um sério acidente de carro... bati a cabeça, fiquei com amnésia... foi pesado, achei que não me recuperaria. Após a recuperação decidi mudar o rumo das coisas. Não dava pra ignorar mais aquele impulso, não dava mais pra armazenar sonhos. Tinha que virar realidade. E acabei indo pra Unicamp estudar arte clássica, mas foi só com o pessoal da Quanta que a coisa realmente aconteceu. Foi ali que dei o polimento gráfico necessário para os quadrinhos.

Você é um daqueles casos de quadrinistas brasileiros que fazem muito mais sucesso no exterior do que no Brasil. Como é conviver com essa realidade?

Acho que faz parte. O Birthright ainda não saiu por aqui e some-se o fato de não ter um estilo com o apelo mais tradicional dos Comics de heróis. Veja bem, não se trata aqui de criticar o gênero, mas sim de reconhecer onde meu trabalho funciona melhor.

Como surgiu a oportunidade de trabalhar para grandes editoras dos EUA, como DC e Image Comics?

Surgiu de uma sample do Gambit que fiz em 2009... O Rafael Brizola escreveu uma história “resposta” a uma HQ que a Marvel lançou para promover o Gambit no filme do Wolverine. Na época dividia um estúdio com o colorista Marcelo Maiolo que topou fazer as cores nessa sequência. Acabou dando certo e isso chamou a atenção do Joe Prado, que desde aquele momento, veio a ser nosso agente.

Em termos de reconhecimento e compensação financeira, como se poderia comparar o mercado de HQs brasileiro com o dos EUA?

Não tenho experiência com o nosso mercado nacional de quadrinhos... Não conheço essa realidade sob a vivência de um autor de HQs, por exemplo. Trabalhar pra fora toma muito tempo e dedicação. O máximo que fiz foram ilustrações didáticas e material publicitário pro mercado nacional editorial. Nesse sentido não dá pra comparar muito.

Durante sua carreira internacional, você desenhou HQs de personagens clássicos, de enorme sucesso e prestígio, como Batman, Lanterna Verde e Esquadrão Suicida. Fale um pouco sobre essa experiência.

Foi tudo muito intenso e bastante complexo. Começa pela realidade brutal do tempo. Você tem que entregar no prazo! Você queima teu amor na primeira semana se vacilar... Leva tempo pra entender o esforço necessário pra fechar uma edição. Crescemos do outro lado da mesa, como leitores. Naturalmente, isso gera bastante idealização do trabalho, é normal. Compomos uma realidade que cabe no tamanho exato da fantasia. É lindo, desconhecer a realidade faz tudo parecer incrível. E não resta dúvida de que o trabalho acaba se alimentando dessa energia. Veja bem... ao “chegar lá”, ciente da conquista do tão desejado sonho, é de imediato a aniquilação do mesmo. Você embarca numa outra jornada, que é a realidade de trabalho. Passa muito brevemente de realização de um sonho para aprender a correr uma maratona. São km de páginas! É obrigatório se conhecer pra dar conta desse ritmo. Imperativo de verdade. Saber o que é capaz de fazer numa janela de tempo é o que determina nossa caminhada. O amor com o qual embarcamos passa a dar espaço a nossa maturidade... passamos a entender o que é, na realidade, ser um desenhista sob o aspecto profissional. Ainda se trata de uma forma de amor, mas jamais nutrida por fantasia ou idealização. Ou você passa a amar as horas que oferta nesse altar ou passa a idealizar um novo sonho.

Um dos meus personagens favoritos da DC é o Monstro do Pântano. Você o desenhou em um momento em que os roteiros estavam a cargo de Charles Soule, em uma fase que, na opinião de muitos fã – inclusive na minha – é uma das melhores desde Alan Moore. O que você pode compartilhar conosco sobre esse trabalho?

Na época foi uma surpresa. Das boas! Não acompanhava o Soule no Monstro do Pântano. Estava trabalhando nos Lanternas Verdes e o tempo livre acaba sendo pra fazer outras coisas... e foi muito satisfatório descobrir o talento dele na medida em que embarcava no texto. Jurava que faríamos mais coisas, corri atrás dos números anteriores, mas no final da edição meu editor atual, o Sean me convidou pro Birthright. Encontrei o Soule anos depois, conversamos um pouco durante uma convenção, mas acaba sendo tanta coisa e projetos diferentes que não fizemos mais nada juntos.

Nos conhecemos em uma comunidade sobre lobisomens na extinta rede social Orkut, quando você compartilhou algumas belíssimas ilustrações envolvendo licantropos. Qual o seu sentimento sobre essas criaturas mitológicas?

Meu sentimento? Haha, pura devoção. Foi meu primeiro amigo, o mais leal. Eu era criança e entendia que o Lobisomem me visitava na TV. A periodicidade do seriado que passava “toda sexta” (Nota do editor: o seriado em questão era “O Lobisomem ataca de novo”) era entendida como um pacto de amizade. Minha adoração permitiu trazer um Licantropo(s) para as páginas do Birthright na edição 42. Foi tão apreciado que acabou se tornando um personagem da série.

Você desenhou as capas dos meus livros de lobisomens, e também fez as ilustrações internas do Na Próxima Lua Cheia. O que esses trabalhos representaram para a sua trajetória?

Foi minha primeira oportunidade de exercitar essa antiga veneração pelas criaturas. Foi também um grande laboratório de nanquim. Me envolvi muito nas ilustrações. Queria que cada uma tivesse uma força e autonomia, mesmo quando os monstros não estavam nelas.

Para concluir, gostaria de pedir para você nos falar um pouco sobre seus projetos atuais e como os leitores do blog podem ter contato com o seu trabalho:  

Acabei o Birthright faz pouco tempo, estou trabalhando em coisas que ainda não posso divulgar, mas pra quem estiver interessado em acompanhar meu trabalho, estou no Instagram como @andreibressan e no Facebook também! Valeu!!