18 de jan. de 2023

O MEU LABIRINTO

 

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Quando abri os olhos, já estava aqui, perdido no meio deste labirinto. Não é novidade pra mim. Eu sonho com ele há anos. Desde que entrei na faculdade. Não a de Letras, que era a que eu queria, mas sim a de Administração, que o meu pai exigiu que eu cursasse para depois gerenciar a empresa da família. Como o plano era dele e não meu, funcionou perfeitamente. Me tornei o administrador e o negócio rendeu muito dinheiro. É a única esfera da minha vida onde tive sucesso.

            O labirinto é escuro e amedrontador. Ele deve ser muito grande. Talvez tenha um ou até dois quilômetros quadrados. As paredes não são tão altas, devem ter uns quatro ou cinco metros, no máximo, mas aparentam ser muito sólidas e resistentes. Lá em cima o céu é sempre ameaçador, com nuvens escuras que parecem trazer um temporal prestes a desandar. Nunca encontrei ninguém circulando pelos corredores, mas seguidamente ouço vozes vindo de diferentes direções, chorando e gritando. Antes eu acreditava que eram as vozes de amigos que deixei para trás, de familiares que decepcionei, de namoradas que magoei. Agora começo a acreditar que são versões alternativas de mim mesmo, abandonadas a cada vez que sacrifiquei um sonho em nome de uma ilusão.

            No passado eu pensava que costumava sonhar com o labirinto de tempos em tempos, mas atualmente desconfio que sempre estive aqui e que tudo que vivenciei para além destes muros foram apenas devaneios de uma mente encarcerada. Será que sempre fui um prisioneiro?

            Naquela vida, que eu pensava ser de um homem livre, sempre permiti que me dissessem o que fazer, que me mandassem ir para lá ou para cá. Agora, sem ninguém para me apontar qual direção tomar, fico zanzando entre estes corredores sem chegar a lugar nenhum. Será que sempre estive perdido?

            Eu sento no chão e me escoro no muro. Não por cansaço, mas por desânimo. Então reparo no meu cinto. Ele tem uma fivela de metal enorme, em formato de pomba. Confesso que sempre achei brega, mas, como ganhei do meu avô e ele ficaria desapontado se eu não usasse, tive que usar. Agora ele me deu uma ideia. Uma esperança. As paredes do labirinto são revestidas por algum tipo de argamassa, em uma camada que, apesar de grossa, não é muito resistente. Ao receber alguns golpes com o metal da fivela, o revestimento esfarela, me permitindo escavar frestas grandes o suficiente para introduzir meus dedos. Assim, posso improvisar uma escada e escalar até o topo do muro. Lá de cima poderei ver para que lado fica a saída. Se as paredes forem da largura que acredito, poderei andar por cima delas, me equilibrando até onde terminam.

            Não sei quantas horas levei nessa tarefa, porque aqui o caráter ilusório do tempo é distorcido. Parece que ele nunca passa. Mas, agora já estou chegando no fim da escalada. Coloco um pé sobre o topo do muro, depois o outro, e então estou sobre as paredes. Eu olho em todas as direções. O labirinto se estende por todos os lados, até se perder de vista, ocupando cada centímetro de uma planície absolutamente gigante. Deve ter dezenas, ou, provavelmente, centenas de quilômetros quadrados. Talvez seja infinito.

            Não vejo mais como encontrar o caminho certo entre esses corredores. Sem chance. Porém, se como desconfio, isso tudo for uma prisão da minha mente, pode ser que ainda haja uma esperança. Talvez, ao invés de procurar a saída, eu precise apenas acordar. Mas, como despertar uma consciência que sempre esteve entorpecida em ilusões?

            Eu encaro o labirinto em busca de respostas e ele me encara de volta, oferecendo apenas silêncio e sombras.

9 de jan. de 2023

O RELATOR DA NOITE - ENSAIO Nº 02: SOBRE A ATUALIDADE INFESTADA POR DEMÔNIOS


 

Por O Relator da Noite

 

            No ensaio anterior, abordamos a argumentação de diferentes autores, oriundos de diversas vertentes ocultistas, acerca do entendimento que nos parece mais adequado para tratar daquilo que designamos como “demônios”. Recomendo a leitura daquele texto antes deste, mas, para fins de recapitulação, penso ser útil retomar a noção de que, nos meus escritos, os demônios não são espíritos de pessoas mortas, mas sim formas-pensamento emanadas por consciências que habitaram nosso planeta [ainda que de forma etérica] desde antes do surgimento dos seres humanos encarnados e que, por isso mesmo, não foram compostas por mero substrato psíquico análogo ao que abunda na psicosfera terrestre atual, mas sim por energias primordiais que, como tal, são eternas e intrínsecas àquilo que chamamos de realidade.

            Por serem anteriores à própria humanidade, essas formas-pensamento encontraram caminho para interagir com as pessoas de maneira mais ou menos padronizada através daquilo que costumamos perceber e classificar como emoções. Assim, os demônios se manifestam através das emoções negativas [destrutivas, autodestrutivas, que vão contra à evolução harmônica da natureza, em sentido físico e metafísico]. Para Franz Hartmann, esses seres são as próprias emoções [que, no aspecto benéfico, seriam classificadas como “anjos”]. O mesmo autor frisa que essas criaturas “não são necessariamente entidades racionais conscientes, mas podem manifestar-se por meio de organismos conscientes dotados de razão; não são pessoas, mas personificam-se sempre que encontram expressão em formas individualizadas”, pois “amor e ódio, inveja e beneplácito, luxúria e ganância não são pessoas, mas personificam-se em formas humanas ou animais”, de tal forma que “uma pessoa extremamente maliciosa torna-se a própria encarnação da malícia”.

            Uma vez que as emoções sempre fizeram parte da constituição humana tal como a conhecemos, se deduz que a interação entre pessoas e demônios sempre existiu, ainda que as formas de se interagir e o entendimento acerca delas possam ter variado enormemente ao longo do tempo e de acordo com o momento cultural de diferentes sociedades. Demônios, anjos, elementais, deuses bons ou maus, as designações parecem quase infinitas nos mais variados idiomas, muitas vezes com termos diferentes para classificar as mesmas entidades, ou usando as mesmas expressões para elencar seres completamente diferentes, o que se constitui em um sério problema semântico e ontológico. Contudo, ajustando adequadamente o foco da pesquisa [o que se constitui em uma verdadeira ordália para qualquer estudante sério de Ocultismo em início de caminhada] é possível encontrar as correlações.

            Em Magic: White and Black, Hartmann exemplifica tais correspondências afirmando que “as potências elementares da natureza são numerosas e deram nascimento ao panteão dos gregos e das mitologias orientais”, e continua, afirmando que “o Cristianismo [por exemplo] moderno não destruiu os deuses olímpicos, mas apenas as formas que os representavam, pois estas constituíam representações alegóricas de forças eternas, que não podem ser eliminadas. “As leis da natureza ainda são hoje as mesmas do tempo de Tibério; o Cristianismo só alterou seus símbolos; passou a chamar coisas velhas por novos nomes. Os ídolos pagãos mortos ressuscitaram na forma de santos católicos romanos”. Suponho que Jung diria que estamos falando aqui de “forças arquetípicas do Inconsciente Coletivo”. Dilemas de linguagem, mais uma vez.

            O fato é que os demônios estão por aí desde sempre, atuando sobre nós para além de tempos imemoriais. Os motivos para isso só podemos especular. Talvez seja para nos induzir à ação, corroborar com o aspecto destrutivo [porém, necessário] da natureza, mas que, seja pela nossa imaturidade consciencial ou pelo mau uso de nosso livre-arbítrio, acabam se manifestando como forças desequilibradas ou propriamente maléficas [no sentido de “desarmônicas”].

            Ao mesmo tempo em que instigam nossa faceta emocional, os demônios se retroalimentam da energia psíquica impregnada pelas emoções correspondentes emanadas pelas nossas próprias consciências encarnadas. Esse intercâmbio fluídico que se mantém incessantemente ao longo das eras, tem gerado, no Plano Astral, verdadeiras dimensões energéticas, habitadas não apenas pelos demônios mas também pelos espíritos humanos que, por afinidade, são atraídos para lá depois do desencarne, por se encontrarem no mesmo padrão vibratório. Na Kabbalah essas dimensões costumam ser designadas como Qliphoth e sobre elas Migene González-Wippler afirma na obra Jesus e a Cabala Mística que “ali encontram-se cada sentimento negativo do coração humano, cada vício, cada crime e cada fraqueza personificados num demônio que se torna o algoz dos que se deixam levar por essas imperfeições”, sendo, “portanto, a causa e também o efeito de todos os pensamentos e atos maus”. Em seu livro Qabalah, Qliphoth e Magia Goética, Thomas Karlsson faz uma inferência semelhante ao afirmar que as Qliphoth “são ocupadas por aqueles demônios que representam os vícios humanos encarnados, e torturam àqueles que têm se entregado a tais vícios na vida terrena”.

            Conforme já citado no ensaio anterior, essa visão dos demônios das Qliphoth sendo personificações de vícios e más tendências corriqueiras aos seres humanos os colocam em um paralelo análogo aos Demônios dos Sete Pecados Capitais, dos Vícios personificados e combatidos pela Maçonaria, e uma vasta gama de outras possíveis correspondências. São as emoções negativas manifestadas pelas pessoas cotidianamente, através de uma gradação quase infinita de formas e intensidade, podendo ser desde um reles desconforto subjetivo até um estado de ânimo que descamba para a autodestruição, ou ainda que induz à crueldade, violência e destruição contra terceiros.

            Então chegamos ao ponto central deste texto: a perturbadora constatação de que aquilo que podemos chamar de “realidade consensual atual” está infestada por demônios em seus mais variados níveis estruturais, como nunca antes esteve na trajetória da humanidade. Os vícios e as maleficentes deformações da conduta cotidiana que incrustam a sociedade contemporânea estão aí para comprovar.

            Sou capaz de supor que alguns leitores estejam inicialmente propensos a discordar dessa afirmação. Talvez estejam pensando em todos os horrores que já marcaram a trajetória humana até aqui e deduzam que muitos momentos do passado foram mais do que propícios para que os demônios assolassem a humanidade com toda sorte de más emoções e que dela extraíssem energia psíquica negativa mais do que suficiente para se nutrir e perpetuar sua ação. É possível que estejam lembrando que logo ali atrás, no “breve século XX” tivemos duas guerras mundiais, Guerra Fria, epidemias, cataclismos de grande envergadura e ditaduras cruéis e assassinas nos quatro cantos do planeta. E se recuarmos um pouco mais? E as brutalidades do Imperialismo? E os genocídios da “Era dos Descobrimentos”? E a Inquisição? E as Cruzadas? E as contendas feudais, as disputas regionais, os conflitos tribais...? E a mácula [por milênios onipresente nas mais diversas sociedades] da escravidão? Sem dúvida, em todos esses contextos a realidade há de ter sido mais do que propícia à infestação demoníaca. Contudo, precisamos fazer algumas ponderações.

        Primeiramente, devemos observar que, em qualquer um dos momentos históricos citados acima à guisa de exemplo, a população mundial era bem menor do que a atual. Além disso, esses foram contextos que provocaram milhares [ou mesmo milhões] de mortes no seu decorrer. A consequência disso podemos ilustrar de forma análoga a um vírus causador de uma grande epidemia. Se todos os infectados morrem, o micro-organismo fica sem hospedeiros para se propagar, ainda que essa imobilidade possa ser apenas temporária. Semelhantemente, quanto menos população houver em um determinado lugar, menos veículos para manifestação um demônio vai ter e, consequentemente, menos energia para se nutrir. Em Magic: White and Black, Franz Hartmann argumenta que uma força anímica [como, por exemplo, o demônio da Inveja] perderia sua capacidade de interagir no mundo físico pela ausência de hospedeiros, caso todas as pessoas do planeta morressem, mas ele não deixaria de existir. Apenas ficaria latente, restrito ao Plano Astral, até que surgisse algum outro tipo de ser material que fosse receptivo à sua atuação.

            A conclusão desse raciocínio não é difícil de inferir. Graças a desdobramentos como o avanço da Medicina, a maior disponibilidade de alimentos, as melhoras nas condições de saneamento básico e higiene, entre outros fatores [que infelizmente não abrangem todas as áreas do globo] tivemos um acelerado crescimento populacional nas últimas décadas [a ponto de preocupar alguns teóricos] e, neste início de 2023, já somos mais de 8 bilhões de terráqueos. Ou seja, nunca houve tanta disponibilidade de veículos para a manifestação demoníaca como agora. Mas, será que as condições são propícias? No meu entendimento, está muito claro que sim. Com mais indivíduos para contaminar e, consequentemente, mais energia psíquica deletéria para se nutrir [ainda que, inicialmente, sua concentração possa estar em áreas restritas], mais o demônio se fortalece no Plano Astral, maior fica a Qliphah a qual ele pertence e, assim, se expande seu poder de atuação.

            Aqui no Plano Físico o aspecto dual daquilo que chamamos de “evolução” também faz a sua parte. Refletindo rapidamente sobre os dispositivos tecnológicos [peguemos apenas os telefones celulares e a internet, por exemplo], é muito claro até para crianças [que muitas vezes se tornam vítimas do lado maléfico desse contexto] que eles tornaram a nossa vida muito mais fácil e eficiente em inumeráveis âmbitos, que vão desde a atuação profissional ao mero entretenimento. Contudo, alguém poderia negar que a realidade conectada e esses dispositivos também facilitou enormemente a difusão de conteúdos que instigam a cobiça, a vaidade, a luxúria, o consumismo, a inveja, o ódio e tantos outros elementos que são ao mesmo tempo as armas e a matéria-prima constituinte dos demônios? É claro que celulares e computadores são apenas ferramentas, e as pessoas determinaram se eles vão desempenhar funções úteis ou inúteis, seguras ou perigosas, benéficas ou maléficas. Mas, no atual estado de consciência da maioria da população, quais opções você acredita que são predominantes? Olhe ao redor e tire suas conclusões. Tenho certeza que não será difícil.

            Vamos agora tratar de um exemplo fácil e, por isso mesmo, preocupante. O consumo excessivo de bebidas alcoólicas e seus desdobramentos. Vejamos o que Franz Hartmann escreveu sobre o assunto já em 1886, ano em que Magic: White and Black foi publicado: “É inquestionável que não existe no mundo paixão mais diabólica e perniciosa aos interesses verdadeiros da humanidade e à felicidade individual do que o alcoolismo. [...] Além de causar uma longa lista de enfermidades nos órgãos internos e conduzir à morte prematura, são a causa majoritária dos crimes cometidos nos países civilizados. Para aqueles que encaram o homem como um ser racional, parece incompreensível que nações ditas civilizadas ajudem a sustentar um mal que abarrota suas penitenciárias, hospitais, sanatórios, hospícios e sepulturas”. Não pesquisei dados sobre o consumo de álcool na Europa do final do século XIX [nem sei se existem], mas seria capaz de apostar que aumentou enormemente de lá até os dias atuais.

            Para levar o tema adiante, vamos focar no Brasil, por condizer à nossa realidade imediata e pela maior facilidade de acesso a estatísticas. Por falar em estatísticas aproveito para esclarecer que, obviamente, vou citar as fontes dos dados apresentados, mas não irei colar links, tanto por buscar a praticidade quanto visando não poluir o texto. Quem quiser saber mais à respeito, ou confirmar a veracidade das informações, se for o caso, pode consultar os Registros Akáshicos, atualmente mais conhecidos pela sua versão digital sob o nome de “Google”.

            No site da Universidade Federal do Espírito Santo há um texto intitulado “Consumo de álcool no Brasil é superior à média mundial, diz OMS” onde, citando como fonte uma matéria publicada no Jornal Estadão em 2014, menciona que em 1985, o consumo anual per capita de álcool do brasileiro não chegava a 4 litros. Em contrapartida, o Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo publicou no seu portal na internet em 21/02/2022 um artigo com o título “Pandemia eleva consumo de bebida alcoólica no mundo; Brasileiro supera marca mundial” onde apresenta dados recém-divulgados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) dando que atualmente o consumo anual per capita de álcool no Brasil é de 8 litros, enquanto a média mundial é de 6,4 litros. O texto também informa que nas Américas morrem anualmente cerca de 300 mil pessoas por razões ligadas ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas.

            E não para por aí. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro do Fígado (Ibrafig), e divulgada em diversos veículos midiáticos em dezembro de 2021, mostra que 55% da população brasileira tem o hábito de consumir bebidas alcoólicas, sendo que 17,2% delas declararam aumento do consumo durante a pandemia de Covid-19, associado a quadros de ansiedade graves por conta do isolamento social. De acordo com o levantamento, uma em cada três pessoas no país consome álcool pelo menos uma vez na semana. O consumo abusivo de bebidas alcoólicas foi relatado por 18,8% dos brasileiros ouvidos na pesquisa. O resultado nos mostra que a população tem um consumo importante de álcool, com frequência e numa quantidade significativa a cada ocasião.  Outra manchete alarmante: “Consumo de bebidas alcoólicas cresce 93,9% na quarentena”, publicada no Portal PebMed, referente à matéria que aborda dados da OMS divulgados em fevereiro de 2021. As fontes são muitas e bem fáceis de encontrar.

            Veja só, caro leitor, eu espero que você não tome esta abordagem como mero moralismo gratuito. Eu realmente acredito na lógica do livre-arbítrio e, quer a gente goste disso ou não, a Natureza [o Cosmos, Deus, ou como queira chamar a estrutura causal da realidade] se encarrega de fazer com que cada ação tenha a sua reação proporcional. Só que, quanto mais informações tivermos, [pelo menos em tese] maior será a nossa capacidade de analisar e refletir sobre nossas atitudes e, quiçá, fazermos delas fontes de consequências que nos sejam mais favoráveis. Se você bebe excessivamente e prejudica apenas a si próprio, eu não tenho mais nada a dizer. Apesar de lamentar, entendo que você está exercendo seu livre-arbítrio e o problema é seu. Agora, se depois de encher a cara você prejudica outras pessoas, então o problema não é apenas seu. Esse é o ponto. O problema não é beber, mas sim o que você faz depois de estar bêbado. No Evangelho Apócrifo de Tomé, Jesus diz: “o que entra pela boca não o torna um homem impuro, mas sim o que sai da boca, isto vos tornará impuros”. Poucos versículos depois, o Cristo adverte: “Agora estão bêbados, e só se converterão se abandonarem o seu vinho”. Perceba que a repreensão é contra a embriaguez, o excesso.

            No capítulo destinado às Qliphoth, em A Cabala Mística, Dion Fortune bate muito nessa tecla, de que os excessos nas atitudes humanas é que constituem “o Mal positivo e dinâmico” que fortalece os demônios. Migene González-Wippler reforça esse entendimento em Jesus e a Cabala Mística, ao propor que a influência das Qliphoth e seus respectivos demônios “está diretamente relacionada com excessos de qualquer espécie”, e exemplifica afirmando que “assim, um excesso de amor gera ciúmes e possessividade, um excesso de desejo sexual produz luxúria, um excesso de ambição material dá origem à avareza, até que toda a variedade de qualidades e inspirações humanas é degradada e aviltada”.

            E as consequências desse processo? Algumas são bem diretas e claras, como a violência no trânsito. Um levantamento realizado pelo Laboratório de Toxicologia Forense, da Polícia Civil do Espírito Santo, revelou que 48% das vítimas fatais de acidentes de trânsito no estado em 2020 estavam sob o efeito de drogas, majoritariamente, álcool. Estou citando o exemplo do Espírito Santo porque os dados estão aqui, mais ao alcance da mão, mas, uma rápida pesquisa revela que na maioria dos demais Estados brasileiros as estatísticas são semelhantes ou ainda piores. Poderíamos também falar sobre violência doméstica. Um estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), realizado com sete mil famílias em 108 cidades do Brasil, comprova que o álcool funciona como "combustível" da violência doméstica. E a violência impulsionada pela bebida alcoólica persiste, na maioria das vezes, por mais de dez anos. O estudo aponta que a gravidade das agressões é maior quando há ingestão de bebida. O uso de armas e o abuso sexual, tanto ameaça quanto consumação, ocorreram, respectivamente, numa proporção dez e quatro vezes maior, quando comparados aos domicílios nos quais o agressor não estava sob efeito do álcool.

            Se a situação piorou com a pandemia de COVID-19, é fato que a relação entre álcool e violência em geral não se configura em novidade no Brasil. Ainda em 2005 os pesquisadores Ronaldo Laranjeira, Sérgio Marfiglia Duailibi e Ilana Pinsky da Unidade de Pesquisa em Álcool e outras Drogas (UNIAD) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) publicaram um artigo onde consta que “estatísticas internacionais apontam que em cerca de 15% a 66% de todos os homicídios e agressões sérias, o agressor, vítima, ou ambos tinham ingerido bebidas alcoólicas; da mesma maneira, o consumo de álcool está presente em cerca de 13% a 50% dos casos de estupro e atentados ao pudor. No Brasil, dados do Cebrid apontam que 52% dos casos de violência doméstica estavam ligados ao álcool”. Eu convivi por um bom tempo quase que diariamente com policiais militares e eles me disseram, por diversas vezes, que aqui na nossa cidade, de cada cinco chamadas emergenciais recebidas, quatro eram “casos de Maria da Penha” e que, na quase totalidade das circunstâncias, uma ou ambas as partes envolvidas estavam alcoolizadas. Infelizmente, penso que na maioria das cidades brasileiras a realidade não deva ser muito diferente. 

         

        Acredito que as consequências no Plano Físico estão bem ilustradas. Mas, e no metafísico? Conforme já mencionamos anteriormente neste ensaio e no anterior, quanto mais pessoas vivenciando sentimentos, pensamentos e atitudes negativas, mais energia emanam para nutrir os demônios correspondentes àquelas vibrações. Com isso, essas entidades maléficas se fortalecem e mais difícil fica para o ser humano médio se manter imune às suas influências. São os momentos em que a balança fica desequilibrada e os riscos aumentam. Contudo, ainda mais perturbadora me parece aquela lógica, também já mencionada, de que, por afinidade, pela simples relação causal de que “semelhante atrai semelhante” um indivíduo que venha a desencarnar vivenciando tal realidade, tende a ser tragado pela Qliphah demoníaca afim tão logo adentre ao Plano Astral. Não sei quanto a você, prezado leitor, mas a mim é desconcertante a hipótese de viver consumido pelos vícios na dimensão material e, depois de morto, se tornar escravo de entidades diabólicas, quiçá por qual imensidão de tempo, e sendo sujeitado a sabe-se lá que horrores inerentes às esferas demoníacas. 

        

         Tudo isso é mero exemplo, motivado pelo que me vem à mente cada vez que dirijo pela cidade à noite e vejo bares lotados, gente bebendo nas calçadas, diante de lojas de conveniência e distribuidoras ou recantos escuros de praças e parques – muitas vezes adolescentes e até crianças, com seus repulsivos “kits” compostos por energéticos de quinta categoria e destilados vagabundos. E as outras drogas? Sobre essas nem vamos nos ater, pois seria preciso escrever um livro ao invés de um mero ensaio. Você, que leu até aqui, com certeza entende a lógica disso. Estamos apenas arranhando a superfície do problema. Poderíamos expandir os questionamentos similares sem esforço: o que dizer sobre essa necessidade paranoica de se obter likes e visualizações em redes sociais, muitas vezes para isso ultrapassando qualquer limite do bom-senso? E a epidemia de procedimentos estéticos, que não raramente resultam em consequências irremediáveis? E a “ditadura da magreza”, apontada por inúmeros profissionais da área da saúde como causa direta de graves distúrbios, como depressão, ansiedade, anorexia e bulimia? Os demônios da Vaidade se refestelam. E não podemos deixar de mencionar ainda este ódio, que aparentemente irrompe de uma deformação consciencial pseudopolítica e que hoje infesta a psicosfera como uma praga nauseabunda de radicalismo e intolerância, levanto incautos a colecionarem atritos e desarmonias [que, por vezes, nitidamente beiram a psicopatia] nas relações sociais, profissionais e familiares ao ponto de, não raro, descambar para a violência. Acredito que as chamas de Golachab devem estar crepitando com muita intensidade no Plano Astral. 

        

        E de nada ajuda adentrar ambientes, que aparentariam aos desavisados serem menos propícios à infestação demoníaca, e perceber todo mundo [às vezes famílias inteiras] ignorando a presença uns dos outros por estarem grudados nas telas de seus celulares. Já vi, por diversas vezes, adultos entregando celulares nas mãos de crianças pequenas [algumas, pouco mais do que bebês] simplesmente para que parassem de chorar e lhes deixassem em paz. Eu convivo regularmente com professores, profissionais da área da saúde e simplesmente pais de adolescentes e tenho ouvido o tempo todo que nunca houve tantos de casos de depressão, ansiedade [e outros problemas psiquiátricos] como agora, além de um aumento absurdo no número de suicídios e tentativas de suicídio. Já há estudos confirmando essa triste realidade, tanto no Brasil como em outros países e alguns deles já estão publicados na internet, basta pesquisar. E qual é a queixa que mais acompanha a grande maioria das manifestações de preocupação com jovens e crianças, quase como se fosse um anexo? Isso mesmo, o apego desmedido e abusivo dos celulares [e, por consequência, da internet]. O que há por trás dessas telas? Para alguns, decerto, nada de mais, porém, para outros tantos, deve haver frequentemente a sombra tentadora de algum demônio impregnada entre megabytes de informação, procurando uma oportunidade para transcender a barreira do digital e impregnar a alma humana. 

         

          Para concluir, não devemos nos esquecer do que foi mencionado anteriormente sobre as Qliphoth: o que lhes dá sustentação e alimenta os demônios que nelas habitam são os nossos excessos. O Estoicismo nos diz que os excessos constituem os vícios e os vícios são as doenças da alma. Como nem tudo está perdido, essa vertente filosófica também nos indica o remédio [ou, mais adequadamente, a profilaxia] para esses males: a virtude cardinal da Temperança [alguns preferem termos como “moderação”, “comedimento”, “equilíbrio”, “ponderação”, entre outros]. Se tivéssemos mais em conta esse predicado, tão abordado, sob diferentes formas, em inúmeras correntes místicas, filosóficas e ocultistas em geral, e magistralmente representado na carta XIV dos Arcanos Maiores do Tarot, certamente teríamos muito menos problemas com as forças negativas do Plano Astral. Felizmente, para contrapor estas forças negativas, há também as positivas, comumente chamadas de “anjos” [mas que possuem muitas outras designações] a quem podemos recorrer em nosso auxílio. 

         

        Como este texto já ficou mais extenso do que o previsto, trataremos mais detalhadamente das formas de proteção contra os demônios e a subsequente interação com as energias benéficas do Plano Astral no próximo ensaio. Em breve.