Por André Bozzetto Jr
“A alma que concebeu uma maldade não pode nutrir nada de bom depois disso.” (Sófocles)
O dinheiro ela conseguiu vendendo o smartphone que ganhou no Natal para uma garota mais velha, na escola.
Apesar de ter sido advertida de que “jamais deveria mexer naquilo”, ela desobedeceu e pegou o estojo de plástico que ficava escondido no fundo do guarda-roupas do papai. Ele não iria perceber. Nunca estava em casa mesmo.
O resto ela comprou pela internet. Essa geração descobre cedo que, tendo dinheiro e sabendo onde procurar, se consegue qualquer coisa on-line. Papai e mamãe ficariam bravos se soubessem que ela andou conversando com adultos pela web, mas não iriam saber. Eles não sabiam praticamente nada sobre ela.
Uma semana se passou do mesmo jeito de sempre. De casa para escola e da escola para casa. Lá, uma estranha entre tantos estranhos. Sim, estranhos por dentro e por fora. Mentes estranhas por trás de olhos estranhos. Aqui, uma sombra entre tantas sombras. Sombras pesadas, com cheiro de remédios e gosto de lágrimas.
Então, na quarta-feira o pequeno pacote chegou. Agora ela tinha tudo que precisava. Era só esperar até sexta para colocar o plano em prática.
Na quinta de madrugada mamãe teve outra crise nervosa e, dessa vez, precisou ser internada. Papai disse para o vovô ao telefone que “nem os faixa-preta estavam fazendo mais efeito”. Ele iria passar a noite no hospital, acompanhando a mamãe. Ela gostou dessa inesperada vantagem, pois, como ficaria em casa sozinha, não precisaria se desdobrar para sair às escondidas depois que anoitecesse.
A manhã na escola transcorreu como uma sucessão de cenas em tons desbotados de branco e cinza, como em um filme monótono e chato, daqueles que todos que assistem torcem para que chegue logo o final. A tarde, nublada e melancólica, passou lenta, como se a ausência do brilho solar fosse um prenúncio da escuridão fria e opressiva que chegaria com a noite. Nesse meio tempo, ela repassou o plano mil vezes em sua mente. Esmiuçou detalhes, fantasiou possíveis desdobramentos, e isso a encheu de excitação, de tal forma como até então nunca havia sentido.
Finalmente, o último resquício do dia se foi, levando junto todo um fluxo de pessoas que saía de seus trabalhos e partia para seus respectivos lares de forma apressada, estressada e, ultimamente, também amedrontada. Houve um rápido vai e vem de carros que, não raro, buzinavam e aceleravam de modo acintoso ao menor sinal de lentidão em meio ao tráfego, e um transitar de incautos pedestres retardatários, que caminhavam afobadamente para lá e para cá com os semblantes tomados de preocupação. Quiçá almejavam, o quanto antes, adentrar à segurança de quatro paredes e deixar para trás o manto negro de sombras que começava a delimitar as fachadas malcuidadas dos edifícios e as marquises das lojas vazias.
O momento havia chegado. A pequena mochila da Barbie já estava pronta desde o início da tarde e tinha sido revisada inúmeras vezes, conforme o grau de ansiedade exigia. De última hora, ela ainda teve uma ideia que poderia ser utilizada para incrementar o plano. Foi até a área de serviço e retornou com o frasco cheio de um líquido transparente, que também foi cuidadosamente colocado na mochila. E então saiu.
O vento frio parecia contribuir para deixar a rua mal-iluminada e deserta tomada por um clima ainda mais opressivo. Ela colocou o capuz do moletom e seguiu caminhando sem titubear por entre os prédios cada vez mais degradados em direção ao ponto onde a sujeira e o abandono serviam perfeitamente como lar para o mal que circulava por entre a decadência urbana, espreitando na escuridão dos becos fétidos.
Após poucos minutos da caminhada, ela avistou as ruínas do grande hotel abandonado – um símbolo de progresso e esperanças futuras que ruíram ainda em décadas passadas – há tempos já convertido em um antro de degeneração que irradiava lixo e atraía escória em um raio que englobava todos os depauperados quarteirões circundantes.
Ela não tinha avistado uma única pessoa desde que saíra de casa. Nem mesmo os pedintes e os usuários de drogas que cotidianamente circulavam pelos arredores. Deviam estar escondidos, fustigados pelo mesmo medo que afastava da região todo e qualquer indivíduo que sequer cogitasse transitar por ali depois de escurecer. Se uma noite corriqueira naquela área já se configuraria em um convite a assaltos, abusos e sabe-se lá que outros tipos de violência contra os incautos que por lá transitassem, naquela época em especial, era quase uma sentença de morte. Algo de muito ruim pairava por entre a imundice e os escombros.
Então ele apareceu diante dela, surgido de algum recanto encoberto pelas trevas. Um mendigo maltrapilho, cujas longas barbas e cabelos desgrenhados dificultavam mensurar sua idade. Fedia a urina, fezes, cachaça e mais alguma coisa que ela não sabia identificar. Apesar do corpo aparentemente esquálido, seus olhos claros eram vívidos, ágeis e, em alguma medida, perturbadores.
– Boa noite, mocinha! – disse ele, em um tom forçadamente gentil que acabava por soar patético – Onde uma menininha linda como você está indo, a uma hora dessas?
– Estou só dando uma volta. – respondeu ela, com naturalidade.
– Mas é muito perigoso andar por aqui. – retrucou ele – Onde estão seus pais?
– A minha mãe está no hospital. Ela tem depressão profunda. E o meu pai está lá com ela.
– E deixaram você sozinha?! – exclamou ele, de forma quase teatral – Pobrezinha! Quer uma balinha?
O mendigo retira do bolso da calça esfarrapada um saco com meia dúzia de balas amassadas e melequentas e oferece à menina.
– Obrigada. – disse ela, pegando uma.
– Você gosta de pirulitos também? – insistiu ele – Eu tenho da vários sabores.
– Tem de morango? – perguntou a menina.
– Tem sim! – respondeu ele, empolgado – Está lá dentro do hotel velho. Vamos lá pegar?
– Está bem. – concordou ela, de forma meiga, a que o mendigo retribuiu com um enorme sorriso desdentado e malicioso.
– Como é o seu nome? – perguntou ele, enquanto tomava a dianteira para o interior do grande prédio abandonado.
– Bianca. – respondeu ela. – E o seu?
– O meu é Brédipiti.
– Como o daquele ator?
– Isso mesmo! – respondeu o mendigo, escancarando mais uma vez aquele sorriso asqueroso – Igualzinho ao daquele ator!
Rapidamente, os dois atravessaram alguns corredores escuros, repletos de sujeira e impregnados pelo fedor de excrementos, fumaça e outros odores desconhecidos, mas igualmente repulsivos. Logo chegaram a um cômodo mais amplo, iluminado por uma lamparina à querosene.
– É aqui que eu moro. – disse o mendigo, fazendo um gesto com a mão, como se estivesse apresentando uma suíte de luxo ao invés de um antro tomado pelo lixo e pela poeira.
Enquanto ele revirava algumas sacolas plásticas, ela retirou a mochila das costas, abriu e a soltou no chão imundo, aos seus pés.
– Acho que não tem mais de morango. – disse o mendigo, emulando um tom triste – Mas tem de uva. Pode ser?
– Sim. Eu gosto de uva também. – respondeu a menina, de forma simpática, pegando o pirulito da mão do sujeito.
Enquanto ela desembrulhava o doce, o mendigo começou a andar lentamente ao seu redor.
– O seu cheiro é muito bom... – disse ele, enquanto aproximava sorrateiramente o seu rosto do pescoço da menina – Me parece conhecido...
– Esse pirulito é muito bom. – disse a menina, desviando o assunto.
– Você gosta de chupar? – perguntou o mendigo e, de repente, sua voz soou mais encorpada e grave, quase como o ribombar distante de um trovão.
– Sim. – respondeu ela, aparentando indiferença.
– Ah, eu também! – vociferou o mendigo, parando diante da menina em uma pose quase teatral, enquanto um volume ainda maior de pelos cobria o seu corpo, garras afiadas tomavam o lugar de seus dedos, presas pontiagudas brotavam em sua boca e a sua espinha se distendia, aumentando enormemente sua estatura – Eu adoro chupar e lamber! E vou lamber você todinha antes de te comer!
– Acho que não. – retrucou a menina com o pirulito na boca, em um tom que denotava espantosa frieza, enquanto retirava algo pesado e escuro da mochila aos seus pés.
Uma expressão de espanto e incredulidade passou pelo horrendo rosto da criatura quando viu a pistola nas mãos da menina, apontada em sua direção. Em um momento de dúvida sobre o que fazer, a coisa retrocedeu a metamorfose, até atingir um bizarro ponto entre o monstruoso e o humano.
– Isso não vai funcionar como você imagina... – resmungou o licantropo, com aquela cavernosa voz de trovão.
– Vai sim. – respondeu a menina – Eu assisti aquele filme do garoto na cadeira de rodas e comprei uma bala de prata pela internet.
O monstro arreganhou os dentes afiados e fez menção de se mover na direção da menina. Um estrondo então ecoou pelos corredores escuros do hotel abandonado, acompanhado de um urro de dor e o baque surdo de algo pesado desabando no assoalho empoeirado e carcomido pelo tempo. Ele era tão grande que não tinha como ela errar o tiro.
A menina deu um passo na direção da criatura caída logo adiante e percebeu que ela já tinha voltado quase que totalmente à aparência humana. O mendigo ofegava com as mãos no abdômen, por onde vertia um encorpado filete de sangue.
– Era da minha irmã. – disse Bianca.
Como o mendigo continuou a encarando com expressão de quem não estava entendendo, ela continuou:
– O cheiro que você sentiu... O meu deve ser parecido com o da minha irmã mais velha. A Patrícia, que você matou em abril.
– Ah, sim... agora eu me lembro... – se esforçou em dizer o mendigo, com voz fraca e ofegante – Ela era linda... até pensei em não matar ela... mas, matei sim... matei e comi ela todinha... roí até os ossos... dos dedinhos dos pés...
Dentro de alguns minutos – uns cinco ou seis, no máximo – ele estaria morto. Mas ela não pretendia esperar. Tinha algo mais empolgante em mente. Retirou da mochila o frasco de álcool que pegara antes de sair de casa e despejou seu conteúdo sobre o enfurecido mendigo, que reunia as poucas forças que lhe restavam para esbravejar.
– Sua filha... de uma cadela! O que pensa... que está... fazendo?!
Mas, a menina nada respondeu. Apenas riscou um fósforo e o jogou, dando um passo atrás quando o fogo irrompeu pelo corpo do mendigo.
Enquanto ele urrava, esperneava e tentava em vão se levantar, Bianca retirou o antigo celular da irmã mais velha de dentro da mochila e começou a filmar. Circulou em torno daquele corpo bizarro, tomado pelas chamas – e que parecia querer novamente se metamorfosear em sua forma monstruosa – buscando os melhores ângulos, e continuou gravando mesmo depois que ele cessou de gritar e se debater. Só parou de filmar quando o fogo se extinguiu completamente, deixando emanar do horrível cadáver apenas uma fumaça repulsiva e o cheiro nauseante de carne e pelos queimados.
Só então ela foi embora. No retorno para casa, a rua estava tão fria e deserta quanto antes, mas aquela sensação de iminente ameaça parecia ter se dissipado. Até mesmo as nuvens escuras cederam espaço para a lua cheia brilhar palidamente por sobre os prédios decrépitos da cidade.
Quando o papai voltou para casa, bem tarde da noite, já fazia horas que ela tinha tomado banho, vestido o pijama e se deitado, mas não estava dormindo de verdade. Não havia dormido um segundo sequer. Ficou assistindo e reassistindo o vídeo do mendigo monstruoso morrendo em meio às chamas, até a bateria do celular acabar. Depois ficou imaginando – fantasiando, cheia de excitação – todas as coisas semelhantes que ela pretendia fazer dali em diante. Algumas de suas ideias eram simplesmente terríveis e abomináveis, para se dizer o mínimo. A verdade era que, naquela noite, o seu coraçãozinho – já maculado pelo luto, pela solidão e pelo ressentimento – foi tocado também pela maldade, e gostou do que sentiu.