21 de abr. de 2023

A ESTRADA QUE NÃO LEVA A LUGAR NENHUM

 

Por André Bozzetto Jr

 

            É um caminho que jamais esteve em qualquer mapa. Surgiu em uma longínqua era passada, já encoberta pelas inexoráveis poeiras do tempo. Teve origem na mente do primeiro homem que entendeu como uma ilusão a frágil estrutura que considerava ser a realidade e, uma vez desperto, quis partir para além dos limites que o aprisionavam. Desde então, todo aquele que um dia desejou fugir, sonhou em ir embora, ou fantasiou com novos rumos, acabou por acrescentar alguns quilômetros a mais nessa via arquetípica. No passado era composta por terra ou areia, porque não havia nada diferente para servir de pavimento. Com o tempo, vieram as pedras, as pontes, os túneis, o asfalto e os viadutos. Hoje ela pode ter qualquer formato – todas as formas que a mente humana já concebeu. Quem faz a paisagem é olho do viajante.

            É uma via idílica, fomentada pelas esperanças de quem botou a mochila nas costas e partiu ao amanhecer, tendo o sol nascente como guia. Mas também é uma rota assombrada pelos fantasmas daqueles que se perderam, vindos não se sabe de onde, com destinos aos quais nunca chegaram.

            A estrada não leva a lugar nenhum por que ela não tem ponto de chegada. Nunca termina. Tal qual ouroboros, é uma serpente que morde a própria cauda. Um caminho que se desdobra sobre si próprio. Um simulacro de viagem, que quando parece estar se aproximando da conclusão, se reconfigura em um novo começo. Ela não é um fim em si mesma, mas apenas um subterfúgio para a jornada do viajante. Não é intrinsecamente real até que o viajante a torne real e, por isso mesmo, é uma rota que não pode ser concluída, apenas transcendida.     

10 de abr. de 2023

O RELATOR DA NOITE - A VERDADE NÃO ESTÁ LÁ FORA

 

 

            A série estadunidense de ficção científica Arquivo X (The X-Files, no original em inglês) foi um dos maiores sucessos televisivos da década de 1990, conquistando uma legião de fãs ao redor do mundo e construindo um status de cult que se mantém até  os dias de hoje. Era na abertura do programa – em meio à inesquecível música-tema – que aparecia a frase “A verdade está lá fora”, verdadeiro lema norteador da premissa dos roteiros e que se consolidou como um bordão tão marcante na cultura pop da época a ponto de se tornar conhecido mesmo entre aqueles não costumavam assistir aos episódios. Essa inferência estava diretamente relacionada às crenças do personagem Fox Mulder (David Duchovny), um agente do FBI que tentava, a todo custo, provar que o Governo dos EUA era responsável por uma conspiração que visava manter oculto o fato de que não apenas existiam civilizações extraterrestres, mas também que elas interagiam de diversas formas com a população de nosso planeta. A representação iconográfica destas crenças estava no igualmente clássico poster afixado na parede do escritório de Mulder, onde constava um OVNI sobrevoando algumas árvores e a frase “I WANT TO BELIEVE” (“eu quero acreditar”) estampada em letras garrafais.

            A lembrança da saudosa série de TV me veio à mente como um devaneio, durante meus estudos sobre Gnosticismo. Stephan Hoeller – uma das mais proeminentes autoridades no assunto – afirma em seu livro Jung e os Evangelhos Perdidos que a civilização ocidental está “perdida” por ter se enredado em uma estrutura sociocultural – e até cognitiva – que desaprendeu a olhar para os aspectos subjetivos da realidade interior e passou a focar com todo o interesse apenas no panorama externo, naquela pequena fatia da realidade que constitui a dimensão meramente física. Para o autor, a humanidade pode vivenciar um verdadeiro salto evolutivo – uma melhoria nas mais diversas áreas de nossa existência – quando um número suficientemente grande de pessoas tiver desenvolvido uma expansão de sua própria consciência. “Como o falecido J. Krishnamurti apropriadamente afirmava: ‘O problema mundial é o problema individual’, e nós podemos acrescentar que o problema individual deve ser encarado dentro do indivíduo”, pois, “agora como outrora, nenhum deus ex machina, nenhuma divindade salvadora, externamente projetada, vai nos libertar da nossa condição”. Para Hoeller, assim como para tantos outros pensadores gnósticos, o idealizado equilíbrio geral, tão necessário para a evolução da nossa sociedade, está condicionado a um processo relativamente simples, ainda que isso não signifique que seja fácil: o indivíduo trabalha na expansão da sua consciência e nas potencialidades intrínsecas a ela e, como consequência natural dessa realização, promove a melhoria da realidade coletiva ao seu redor. Como isso pode ser feito? Através do desenvolvimento das faculdades subjetivas que compõe as facetas psicológica, emocional e espiritual de nossa existência, tão negligenciadas por uma parcela significativa de nossos contemporâneos. Esse processo de busca pelo conhecimento interior é muitas vezes chamado genericamente de gnose e só pode ser obtido quando se restringe o foco nas distrações do mundo exterior e se olha para dentro, por meio do autoconhecimento. Ou seja, para o Gnosticismo, a verdade não está lá fora, mas sim lá dentro.

            Trocadilhos infames e devaneios de fã à parte, o fato é que muito do conteúdo da série criada por Chris Carter permite reflexões acerca da dubiedade daquilo que chamamos de “realidade consensual”. Sob uma ótica gnóstica, a verdade não está lá fora porque, em última instância a realidade exterior é uma ilusão. Em Arquivo X essa natureza ilusória do mundo em que vivemos é sustentada por conspirações governamentais e até mesmo cósmicas, mas, insistindo no paralelo com a ficção, algo assim seria apenas um entre diversos níveis concêntricos de semelhante teor, como uma cebola composta por várias camadas de ilusões de diferentes profundidades. Richard Smoley, em sua obra Inner Christianity (que aqui no Brasil foi lançada com o espalhafatoso título Gnosticismo, Esoterismo e Magia) diz que os antigos gnósticos foram os precursores do que ele chama de “hermenêutica da suspeita”, que consiste em uma desconfiança intuitiva para com aquilo que se convencionou chamar de realidade. “Sabemos que o mundo não é o que pretende ser e existe algo melhor a que cada um de nós instintivamente aspira. Também sentimos que existe algo que se coloca entre nós e essa felicidade”. Para o autor, o século XX foi particularmente propício a instigar esse sentimento de suspeita, em função dos vários tipos de controle social que acabaram se tornando evidentes – como, por exemplo, o totalitarismo – mas também em razão da desconfiança de formas mais sutis e penetrantes de manipulação das massas e imposição do engano, ainda que, como se sabe, algumas delas sejam tão antigas quanto a própria civilização humana.

            Não obstante, para os antigos gnósticos a ilusão e o erro estavam impregnados nos mais diversos níveis da realidade exterior porque, em síntese, isso seria decorrente de forças que constituem o mundo e atuam sobre a vida humana buscando o aprisionamento da consciência e o consequente impedimento do despertar para a verdade superior. Na mitologia gnóstica, essas energias contrárias ao desenvolvimento da humanidade são personificadas sob a designação de arcontes, emanações do deus inferior responsável pela criação do nosso plano material, comumente referido como Demiurgo.

            Obviamente, deve-se estar atento para não incorrermos no equívoco da generalização, mas é fácil perceber como uma parcela significativa de nossa sociedade contemporânea está profundamente enredada nas ilusões exteriores. Vidas inteiras dedicadas ao trabalho em tempo integral, não apenas em busca do óbvio e necessário sustento, mas do status e dos engodos supérfluos proporcionados pelo dinheiro; apego insano à aparência física, que extrapola os limites do saudável e incorre no arquétipo dos “ratos de academia”, abuso de substâncias químicas, dietas degradantes, e os cada vez mais comuns procedimentos estéticos de natureza cirúrgica, que muitas vezes desencadeiam graves efeitos colaterais, de consequências físicas e psicológicas. E o que dizer da necessidade psicótica de aparecer, de ser visto, de ser notado, mesmo que seja pelos motivos mais torpes e absurdos? A busca desenfreada pela ilusão-mor de nossa época – a aprovação on-line – manifestada em números de likes e views não apenas cria, mas também “empodera” tecnodemônios com capacidade de escravização e destruição sem precedentes. E isso apenas arranha a superfície do grande lago negro da contemporaneidade. Todos sabemos que, quanto mais submergirmos, mais pútrido será o lodo que encontraremos lá embaixo.

            Naturalmente, o quadro que pintamos aqui – e que pode parecer um tanto pessimista aos olhos de alguns – decorre do desequilíbrio. Desde sempre as mais diversas tradições esotéricas abordaram a vital necessidade de se dedicar igual atenção aos quatro níveis fundamentais da nossa existência [físico, intelectual, emocional e espiritual] muito bem representados nos quatro elementos alquímicos – respectivamente: Terra, Ar, Água e Fogo. Quando se foca apenas nos aspectos exteriores, buscando-se majoritariamente os resultados concernentes ao nível físico, inevitavelmente, consequências sobrevêm. Para os adeptos do gnosticismo, a profunda introspecção, que transcende os limites da percepção física e intelectual, atingindo os níveis emocional e – principalmente – espiritual é o caminho para se chegar ao equilíbrio.

            Hoeller afirma que, para os junguianos e o pensamento da psicologia profunda, os interesses espirituais e religiosos são, em última análise, baseados em um impulso humano universal para a totalidade, uma vez que os diferentes componentes da nossa natureza tendem a buscar um processo de progressiva unificação (chamado por Jung de "individuação") que tem como meta a totalidade. O olhar interior que visa equilibrar os aspectos espiritual e emocional ao intelectual e físico em busca de uma integração é – ainda que em uma de suas facetas mais simplistas – a gnose.

            Smoley argumenta que quando a alma é iluminada pela gnose – depois que o espírito é estimulado em um ser humano, seja pela experiência de conversão ou simplesmente pelo movimento silencioso de um desejo interior – ele deve então proceder ao confronto com as forças do mundo [os arcontes, da mitologia]. Nesse nível, o indivíduo já dominou seus desejos carnais e as oscilações da psique no que tange à realidade exterior, de tal forma que “isso dá acesso a um tremendo poder, e é um estágio em que o miraculoso começa a se manifestar” mesmo nas situações cotidianas. O autor afirma, contudo, que são poucos o que atingem esse nível. “Talvez ninguém nesta Terra seja capaz de manter um estado de iluminação perfeita em todos os momentos. Até os praticantes mais avançados provavelmente têm um vislumbre da gnose e depois voltam às preocupações do mundo”. “Quando alguém percebe que isso aconteceu,” pondera ele, “levanta-se e começa de novo”, acrescentando ainda que para a maioria, entretanto, essa iluminação deve ser nutrida por um programa de prece, meditação e estudo por toda a vida, “aliado aos inevitáveis rigores da tentativa de viver uma vida decente e ética”. Como diz Cristo, “portanto, orai e vigiai sempre” (Lucas 21:36).   

            Em tempo, ainda que a gnose só possa ser obtida de maneira individual, a iluminação interior não é o fim do caminho. Talvez o grande ponto de virada para o indivíduo em busca da expansão da consciência seja o entendimento de que, à medida em que se aperfeiçoa, sua presença deve aperfeiçoar também a realidade ao seu redor. Smoley diz que “o melhor caminho para o progresso é tornar-se útil para o trabalho”, para o bem-estar da coletividade, uma vez que “conforme a percepção espiritual se aprofunda, fica cada vez mais claro que o progresso é impossível, a não ser que se esteja trabalhando para os outros e para a humanidade como um todo”, pois, em última instância, “não podemos nos desenvolver sozinhos, porque não existimos sozinhos”. Ainda que, sob muitos aspectos, isso pareça uma utopia, é possível que quando o equilíbrio interior da maioria se refletir no equilíbrio exterior da coletividade possamos então concluir que a verdade está, ao mesmo tempo, lá dentro e também lá fora.

3 de abr. de 2023

BOA NOITE, MEU AMIGO.

 

                                                                           Por André Bozzetto Jr

  

        São duas horas da madrugada. Momento em que até o Zolpidem para de fazer efeito. O telefone toca e eu sei que é você. Como sempre, penso em atender e perguntar por que você fez isso consigo mesmo. Mas, nunca pergunto. Tenho certeza que a resposta iria doer. Ao invés disso, como de costume, pergunto por que você está me ligando. “Porque você é o único que ainda se lembra... que ainda se importa”, ouço sua voz dizer. No fundo, os gritos, o choro e os pedidos de socorro parecem mais vívidos do que dá ultima vez nos falamos. Arrisco pedir onde você está. “Ora, o que eu fiz foi terrível. Você sabe onde estou. No único lugar onde eu poderia estar”. Para disfarçar o nervosismo, tento ser engraçado e digo que não sabia ter telefone no inferno. “Não tem mesmo. Você sabe que não estamos falando ao telefone”. É apenas na minha mente, né? “E por acaso existe algo fora da sua mente?”. Sinto o coração acelerar. Minhas mãos estão suadas e tremendo. Lhe explico que a minha próxima consulta ao psiquiatra e só no mês que vem e que não estou a fim de aumentar a dose dos remédios por conta própria. Então pergunto por que você não colabora e para de me ligar, de uma vez por todas. “Eu quero parar. Mas para isso você deve me esquecer. Já devia ter esquecido. Todos já esqueceram”. Eu não estava preparado para essa resposta. Esquecer?! Sempre fomos os melhores amigos um do outro, desde a infância. Vivemos tantas coisas juntos... “Sim, e foi lindo, mas agora acabou. Siga em frente.” Eu percebo que você vai desligar, então começo a falar o mais rápido que consigo. Conto que encontrei uma foto do nosso time de futebol da adolescência, que deve ter sido tirada naquele torneio que jogamos e ganhamos, lá em São Valentim. Digo que, estranhamente, não consigo lembrar qual de nós marcou o gol do título, na final. “Foi você. É claro que foi você. Foi um golaço. Uma bomba da entrada da área, lembra?” E então eu lembro. Vejo a bola estufando as redes. Ouço os gritos da galera. Todo mundo correndo e me abraçando. Sorrisos, vibração. Na comemoração, me jogaram para o alto e eu olhei para o sol, lá em cima. Parecia que eu flutuava, em câmera lenta, e o sol nos abençoava, satisfeito por sermos ainda todos inocentes. Voltamos na caçamba de um caminhão, exibindo as medalhas e o troféu, tomando Coca-Cola e gritando para quem passava por nós. Quando cheguei em casa, todo mundo me deu parabéns. A medalha deve estar até hoje pendurada no meu antigo quarto, na casa dos meus pais. Foi um dia feliz. E, com esse sentimento de felicidade, desligo o telefone que nunca cheguei a atender, volto para a cama, da qual nunca levantei, e contemplo a esposa dormindo tranquilamente o sono dos justos. Ela nada sabe dos meus dramas noturnos. Não tem como saber que não fui eu quem marcou aquele gol. Eu jogava de zagueiro e era proibido pelos demais de passar do meio-campo. Quem marcou o gol foi você, o camisa 10. E então volta a ficar claro o porquê de eu continuar atendendo suas ligações. Com os olhos fechados, vislumbro de novo aquele sol brilhando lá em cima e, mesmo que seja apenas na minha mente, ele ainda me lembra que éramos inocentes, e mais do que isso, éramos companheiros, éramos colegas, éramos amigos. E alimentávamos esperanças e tínhamos sonhos. E fomos felizes. Lágrimas umedecem meus olhos, mas eu não as seco. De repente, o sono volta com tudo e decido não resistir a essa dádiva. “Boa noite, meu amigo.”

29 de mar. de 2023

CORAÇÕES DO MAL

 

Por André Bozzetto Jr

 

“A alma que concebeu uma maldade não pode nutrir nada de bom depois disso.”  (Sófocles)

 

            O dinheiro ela conseguiu vendendo o smartphone que ganhou no Natal para uma garota mais velha, na escola.

            Apesar de ter sido advertida de que “jamais deveria mexer naquilo”, ela desobedeceu e pegou o estojo de plástico que ficava escondido no fundo do guarda-roupas do papai. Ele não iria perceber. Nunca estava em casa mesmo.

            O resto ela comprou pela internet. Essa geração descobre cedo que, tendo dinheiro e sabendo onde procurar, se consegue qualquer coisa on-line. Papai e mamãe ficariam bravos se soubessem que ela andou conversando com adultos pela web, mas não iriam saber. Eles não sabiam praticamente nada sobre ela.

            Uma semana se passou do mesmo jeito de sempre. De casa para escola e da escola para casa. Lá, uma estranha entre tantos estranhos. Sim, estranhos por dentro e por fora. Mentes estranhas por trás de olhos estranhos. Aqui, uma sombra entre tantas sombras. Sombras pesadas, com cheiro de remédios e gosto de lágrimas.

            Então, na quarta-feira o pequeno pacote chegou. Agora ela tinha tudo que precisava. Era só esperar até sexta para colocar o plano em prática.

            Na quinta de madrugada mamãe teve outra crise nervosa e, dessa vez, precisou ser internada. Papai disse para o vovô ao telefone que “nem os faixa-preta estavam fazendo mais efeito”. Ele iria passar a noite no hospital, acompanhando a mamãe. Ela gostou dessa inesperada vantagem, pois, como ficaria em casa sozinha, não precisaria se desdobrar para sair às escondidas depois que anoitecesse.

            A manhã na escola transcorreu como uma sucessão de cenas em tons desbotados de branco e cinza, como em um filme monótono e chato, daqueles que todos que assistem torcem para que chegue logo o final. A tarde, nublada e melancólica, passou lenta, como se a ausência do brilho solar fosse um prenúncio da escuridão fria e opressiva que chegaria com a noite. Nesse meio tempo, ela repassou o plano mil vezes em sua mente. Esmiuçou detalhes, fantasiou possíveis desdobramentos, e isso a encheu de excitação, de tal forma como até então nunca havia sentido.

            Finalmente, o último resquício do dia se foi, levando junto todo um fluxo de pessoas que saía de seus trabalhos e partia para seus respectivos lares de forma apressada, estressada e, ultimamente, também amedrontada. Houve um rápido vai e vem de carros que, não raro, buzinavam e aceleravam de modo acintoso ao menor sinal de lentidão em meio ao tráfego, e um transitar de incautos pedestres retardatários, que caminhavam afobadamente para lá e para cá com os semblantes tomados de preocupação. Quiçá almejavam, o quanto antes, adentrar à segurança de quatro paredes e deixar para trás o manto negro de sombras que começava a delimitar as fachadas malcuidadas dos edifícios e as marquises das lojas vazias.

            O momento havia chegado. A pequena mochila da Barbie já estava pronta desde o início da tarde e tinha sido revisada inúmeras vezes, conforme o grau de ansiedade exigia. De última hora, ela ainda teve uma ideia que poderia ser utilizada para incrementar o plano. Foi até a área de serviço e retornou com o frasco cheio de um líquido transparente, que também foi cuidadosamente colocado na mochila. E então saiu.

            O vento frio parecia contribuir para deixar a rua mal-iluminada e deserta tomada por um clima ainda mais opressivo. Ela colocou o capuz do moletom e seguiu caminhando sem titubear por entre os prédios cada vez mais degradados em direção ao ponto onde a sujeira e o abandono serviam perfeitamente como lar para o mal que circulava por entre a decadência urbana, espreitando na escuridão dos becos fétidos.

            Após poucos minutos da caminhada, ela avistou as ruínas do grande hotel abandonado – um símbolo de progresso e esperanças futuras que ruíram ainda em décadas passadas – há tempos já convertido em um antro de degeneração que irradiava lixo e atraía escória em um raio que englobava todos os depauperados quarteirões circundantes.

            Ela não tinha avistado uma única pessoa desde que saíra de casa. Nem mesmo os pedintes e os usuários de drogas que cotidianamente circulavam pelos arredores. Deviam estar escondidos, fustigados pelo mesmo medo que afastava da região todo e qualquer indivíduo que sequer cogitasse transitar por ali depois de escurecer. Se uma noite corriqueira naquela área já se configuraria em um convite a assaltos, abusos e sabe-se lá que outros tipos de violência contra os incautos que por lá transitassem, naquela época em especial, era quase uma sentença de morte. Algo de muito ruim pairava por entre a imundice e os escombros.

            Então ele apareceu diante dela, surgido de algum recanto encoberto pelas trevas. Um mendigo maltrapilho, cujas longas barbas e cabelos desgrenhados dificultavam mensurar sua idade. Fedia a urina, fezes, cachaça e mais alguma coisa que ela não sabia identificar. Apesar do corpo aparentemente esquálido, seus olhos claros eram vívidos, ágeis e, em alguma medida, perturbadores.

            – Boa noite, mocinha! – disse ele, em um tom forçadamente gentil que acabava por soar patético – Onde uma menininha linda como você está indo, a uma hora dessas?

            – Estou só dando uma volta. – respondeu ela, com naturalidade.

            – Mas é muito perigoso andar por aqui. – retrucou ele – Onde estão seus pais?

            – A minha mãe está no hospital. Ela tem depressão profunda. E o meu pai está lá com ela.

            – E deixaram você sozinha?! – exclamou ele, de forma quase teatral – Pobrezinha! Quer uma balinha?

            O mendigo retira do bolso da calça esfarrapada um saco com meia dúzia de balas amassadas e melequentas e oferece à menina.

            – Obrigada. – disse ela, pegando uma.

            – Você gosta de pirulitos também? – insistiu ele – Eu tenho da vários sabores.

            – Tem de morango? – perguntou a menina.

            – Tem sim! – respondeu ele, empolgado – Está lá dentro do hotel velho. Vamos lá pegar?

            – Está bem. – concordou ela, de forma meiga, a que o mendigo retribuiu com um enorme sorriso desdentado e malicioso.

            – Como é o seu nome? – perguntou ele, enquanto tomava a dianteira para o interior do grande prédio abandonado.

            – Bianca. – respondeu ela. – E o seu?

            – O meu é Brédipiti.

            – Como o daquele ator?

            – Isso mesmo! – respondeu o mendigo, escancarando mais uma vez aquele sorriso asqueroso – Igualzinho ao daquele ator!

            Rapidamente, os dois atravessaram alguns corredores escuros, repletos de sujeira e impregnados pelo fedor de excrementos, fumaça e outros odores desconhecidos, mas igualmente repulsivos. Logo chegaram a um cômodo mais amplo, iluminado por uma lamparina à querosene.

            – É aqui que eu moro. – disse o mendigo, fazendo um gesto com a mão, como se estivesse apresentando uma suíte de luxo ao invés de um antro tomado pelo lixo e pela poeira.

            Enquanto ele revirava algumas sacolas plásticas, ela retirou a mochila das costas, abriu e a soltou no chão imundo, aos seus pés.

            – Acho que não tem mais de morango. – disse o mendigo, emulando um tom triste – Mas tem de uva. Pode ser?

            – Sim. Eu gosto de uva também. – respondeu a menina, de forma simpática, pegando o pirulito da mão do sujeito.

            Enquanto ela desembrulhava o doce, o mendigo começou a andar lentamente ao seu redor.

            – O seu cheiro é muito bom... – disse ele, enquanto aproximava sorrateiramente o seu rosto do pescoço da menina – Me parece conhecido...

            – Esse pirulito é muito bom. – disse a menina, desviando o assunto.

            – Você gosta de chupar? – perguntou o mendigo e, de repente, sua voz soou mais encorpada e grave, quase como o ribombar distante de um trovão.

            – Sim. – respondeu ela, aparentando indiferença.

            – Ah, eu também! – vociferou o mendigo, parando diante da menina em uma pose quase teatral, enquanto um volume ainda maior de pelos cobria o seu corpo, garras afiadas tomavam o lugar de seus dedos, presas pontiagudas brotavam em sua boca e a sua espinha se distendia, aumentando enormemente sua estatura – Eu adoro chupar e lamber! E vou lamber você todinha antes de te comer!

            – Acho que não. – retrucou a menina com o pirulito na boca, em um tom que denotava espantosa frieza, enquanto retirava algo pesado e escuro da mochila aos seus pés.

            Uma expressão de espanto e incredulidade passou pelo horrendo rosto da criatura quando viu a pistola nas mãos da menina, apontada em sua direção. Em um momento de dúvida sobre o que fazer, a coisa retrocedeu a metamorfose, até atingir um bizarro ponto entre o monstruoso e o humano.

            – Isso não vai funcionar como você imagina... – resmungou o licantropo, com aquela cavernosa voz de trovão.

            – Vai sim. – respondeu a menina – Eu assisti aquele filme do garoto na cadeira de rodas e comprei uma bala de prata pela internet.

            O monstro arreganhou os dentes afiados e fez menção de se mover na direção da menina. Um estrondo então ecoou pelos corredores escuros do hotel abandonado, acompanhado de um urro de dor e o baque surdo de algo pesado desabando no assoalho empoeirado e carcomido pelo tempo. Ele era tão grande que não tinha como ela errar o tiro.

            A menina deu um passo na direção da criatura caída logo adiante e percebeu que ela já tinha voltado quase que totalmente à aparência humana. O mendigo ofegava com as mãos no abdômen, por onde vertia um encorpado filete de sangue.

            – Era da minha irmã. – disse Bianca.

            Como o mendigo continuou a encarando com expressão de quem não estava entendendo, ela continuou:

            – O cheiro que você sentiu... O meu deve ser parecido com o da minha irmã mais velha. A Patrícia, que você matou em abril.

            – Ah, sim... agora eu me lembro... – se esforçou em dizer o mendigo, com voz fraca e ofegante – Ela era linda... até pensei em não matar ela... mas, matei sim... matei e comi ela todinha... roí até os ossos... dos dedinhos dos pés...

            Dentro de alguns minutos – uns cinco ou seis, no máximo – ele estaria morto. Mas ela não pretendia esperar. Tinha algo mais empolgante em mente. Retirou da mochila o frasco de álcool que pegara antes de sair de casa e despejou seu conteúdo sobre o enfurecido mendigo, que reunia as poucas forças que lhe restavam para esbravejar.

            – Sua filha... de uma cadela! O que pensa... que está... fazendo?!

            Mas, a menina nada respondeu. Apenas riscou um fósforo e o jogou, dando um passo atrás quando o fogo irrompeu pelo corpo do mendigo.

            Enquanto ele urrava, esperneava e tentava em vão se levantar, Bianca retirou o antigo celular da irmã mais velha de dentro da mochila e começou a filmar. Circulou em torno daquele corpo bizarro, tomado pelas chamas – e que parecia querer novamente se metamorfosear em sua forma monstruosa – buscando os melhores ângulos, e continuou gravando mesmo depois que ele cessou de gritar e se debater. Só parou de filmar quando o fogo se extinguiu completamente, deixando emanar do horrível cadáver apenas uma fumaça repulsiva e o cheiro nauseante de carne e pelos queimados.

            Só então ela foi embora. No retorno para casa, a rua estava tão fria e deserta quanto antes, mas aquela sensação de iminente ameaça parecia ter se dissipado. Até mesmo as nuvens escuras cederam espaço para a lua cheia brilhar palidamente por sobre os prédios decrépitos da cidade.

         Quando o papai voltou para casa, bem tarde da noite, já fazia horas que ela tinha tomado banho, vestido o pijama e se deitado, mas não estava dormindo de verdade. Não havia dormido um segundo sequer. Ficou assistindo e reassistindo o vídeo do mendigo monstruoso morrendo em meio às chamas, até a bateria do celular acabar. Depois ficou imaginando – fantasiando, cheia de excitação – todas as coisas semelhantes que ela pretendia fazer dali em diante. Algumas de suas ideias eram simplesmente terríveis e abomináveis, para se dizer o mínimo. A verdade era que, naquela noite, o seu coraçãozinho – já maculado pelo luto, pela solidão e pelo ressentimento – foi tocado também pela maldade, e gostou do que sentiu.