31 de mai. de 2023

O MAL QUE LIBERTA

 

Por André Bozzetto Jr

 

            A melancolia está impressa como uma tatuagem arcaica no entardecer da pequena cidade. Há lixo espalhado por todos  os lados. Carros batidos, incendiados, abandonados. Nenhum em movimento. Cadáveres de metal que não transportam mais ninguém. As casas têm as portas e janelas abertas ou quebradas. Desolação escancarada, para dentro e para fora. No fim da rua, dois prédios estão pegando fogo. Duas tochas gigantes esperando para saudar a escuridão vindoura.

            Há mortos na calçada por onde Alan vem passando. Na sarjeta, o corpo de uma mulher com os pulsos cortados. Ela já fora bonita um dia, mas, com o sangue que escorreu pelo asfalto foi-se embora também sua beleza. Na velha árvore, balança o corpo de um idoso enforcado. Humano e vegetal, duas antigas testemunhas de um mundo que não existe mais. Lá na varanda daquela casa está o corpo de um homem grande e gordo em uma cadeira de balanço. A têmpora direita está arrebentada e há um revolver em sua mão. Alan observa a tudo de forma impassível. Em uma realidade em que a morte se tornou mais presente do que a vida, não há mais lugar para o espanto e o choque. O funeral do mundo já transpôs a fase do choro e do ranger de dentes.

            Em sua caminhada, Alan olha através da janela de uma casa. Lá dentro há uma poltrona de onde pendem os braços ensanguentados de alguém. Está morto, obviamente, mas a TV continua ligada. Nela se vê a imagem de um jornalista de terno e gravata segurando uma folha de papel em mãos enquanto lê uma mensagem: “... manchas vermelhas que podem ou não vir acompanhadas de prurido, febre, que pode atingir a marca de 39º, derrame ocular severo, dissociações cognitivas ocasionadas por alterações neurológicas que induzem à alucinação e...”.

            Alan volta a caminhar pela rua imunda. O resto do texto ele sabe de cor.

            “Já são dois dias repetindo essa mensagem o tempo todo. Merda de linguagem técnica. Deviam dizer: ‘você vai desenvolver feridas nojentas, dor de cabeça, olhos vermelhos e daí vai começar a alucinar até ficar completamente louco e se matar’. Fim do drama”.

            No seu caminho há um bar com mesas montadas na calçada. Em uma delas está um cara morto, sentado em uma cadeira escorada na parede. A garganta está dilacerada. Em sua mão, um pedaço de vidro quebrado e ensanguentado. Há muitas garrafas de cerveja em cima da mesa. Do outro lado, um cara musculoso, usando camiseta da seleção brasileira de futebol, fala de forma exasperada com o cadáver diante de si: “Ninguém sabe a origem?! Que nada! Foram aqueles filhos da puta que envenenaram o vento!”. Está febril, alucinando. Alan sabe o que vai acontecer com ele em breve.

            Logo adiante, sentado de pernas cruzadas na calçada, está um garoto, olhando fixamente para uma pedra que tem em mãos. Ele levanta a cabeça, olhando para Alan. Está suando, com os olhos vermelhos. “Meu celular ficou sem bateria...”, diz, de forma aborrecida. Medo e delírio, só que não em Las Vegas. Nada de glamour nestes recônditos apocalípticos.

            Na amargura de sua jornada, Alan vê diante do pátio de uma casa a desconcertante cena de uma adolescente despejando o líquido de um galão de gasolina sobre si. Ela lhe encara com olhos insanos, vermelhos como brasas.“Vou fazer como aquela youtuber explicou...”, diz ela, um segundo antes de acender o isqueiro e atear fogo em si mesma.

            Ainda que pesaroso, Alan se afasta, deixando a garota em chamas para trás. Diante do excesso de horror, a sombria impassibilidade se tornou o verniz de sua fachada decadente. Ele entendia a loucura de cada uma daquelas mentes.

            “Eles me enxergam, mas não no mundo real. Me veem apenas como coadjuvante no mundo de suas próprias ilusões”.

            Sob as nuvens escuras do fúnebre anoitecer, Alan percebe flocos esbranquiçados caindo do céu. Ele manuseia a substância.

            “Neve? Não. São cinzas. Símbolos que vêm do céu. A derrocada de nosso tempo”.

            Descobre a origem do fenômeno ao passar diante do hospital pegando fogo. Diante do prédio há vários carros batidos e abandonados. Há também cadáveres. Nenhum sinal de vida.

            “O colapso do último socorro. Esperanças ardendo como a febre”.

            Após mais alguns minutos de soturna caminhada, Alan avista um bosque obscuro, de árvores grandes a antigas, já no final da cidade.

            “Lá está a floresta, nos observando enquanto a civilização queima. As árvores poderiam rir de nós? Acho que não. Só os humanos seriam tão mesquinhos”.

            Em gesto quase teatral, ele retira da mochila um calhamaço de papéis. A reflexão sobre eles tem o efeito de uma unha indelicada que arranha as cicatrizes de feridas antigas e profundas.

            “Foi lá que tive pela primeira vez essa pretensão de ser escritor. Quase quarenta anos depois e nenhum livro concluído. Apenas uma coletânea de bobagens pretensiosas e mentiras mal contadas. A sina de nossos dias”.

            Encenando seu derradeiro drama – ainda que sem qualquer plateia – Alan segue caminhando e espalhando pelos ares as folhas do manuscrito, que voam detrás de si.

            “Mas, como réquiem de uma era, a verdade finalmente vem bem a calhar”.

            Na entrada do bosque, à meia distância, Alan avista a menina olhando para ele. É como ele se lembrava: loira, com os longos cabelos presos em duas tranças, uma de cada lado da cabeça. O vestido imaculado adornando a pureza de seus treze anos. Ela tem um sorriso nos lábios.

            “Lá está ela. Com a beleza preservada pelas décadas passadas. Nada das máculas do nosso tempo. Livre do peso do agora”.

            A menina se embrenha na floresta escura e Alan a segue.

            “O vento está mais forte. Talvez sejam nossas próprias vozes, ecoando desde o passado”.

            Eles passam por um casal de idosos enforcados um ao lado do outro, no galho de uma grande árvore.

            “Quem morre aqui fica em paz? Prefiro acreditar que sim. Cheiro de terra molhado ao invés de esgoto. A leveza da relva ao invés do peso do concreto”.

            Logo adiante, caído abraçado em um galão de agrotóxico, está o corpo de um homem gordo com roupas de caipira. Alan não destina qualquer atenção ao cadáver. Está compenetrado em observar a menina andando à sua frente, entre as árvores.

            “Ela está me levando ao local exato. Há lugares que se tornam verdadeiras cápsulas do tempo. Palcos para cenas marcantes de alguma vida. Tragédias? Por que não?”.

            A menina para ao lado de uma árvore específica. Imóvel, olha para Alan com expressão série.

            “Ali está. Estranhamente, cresceu uma acácia no local”.

            Então, Alan sente sua mente sendo invadida por uma torrente de imagens. Um fluxo contínuo que jorra de algum lugar do passado e lhe mostra os tons sombrios daquela tarde em que menina está sentada em um tronco com um garotos ao seu lado. Ele tem a mesma idade que ela, mas parece mais novo. Ambos estão sorrindo e cochichando, em clima de romance. É como uma cena de flashback com a menina e ele, quando jovens. E o problema é justamente esse. Não importa quantas vezes você assista o mesmo filme, o final é sempre o mesmo.

            “Naquela época havia apenas um tronco de árvore podre aqui...”.

            O rosto do garoto está bem perto da orelha da menina, confidenciando algo.

            “... onde abri meu coração...”.

            A menina dá uma gargalhada, empurra o jovem Alan com uma mão e com a outra faz sinal de negativo, balançando o dedo indicador.

            “... e ela me rejeitou!”.

            A menina se distrai, de joelhos, colhendo algumas flores. Ingênua, desconhecedora do ódio e do ressentimento, não vê quando o garoto se aproxima dela por trás, com olhar transtornado e um galho de árvore em mãos.

            “O fim da inocência. A ascensão de um coração negro e mau. Que sentimento é esse que macula para sempre toda uma existência?”.

            O rosto dele está encrespado de fúria quando seus braços baixam, desferindo o golpe.

            “Quando o sangue inocente é derramado, não há mais chance de redenção. Nunca mais”.

            Com o porrete improvisado e ensanguentado em mãos, o jovem Alan olha para cima. Começa a chover. O corpo da menina morta jazendo aos seus pés, em meio às flores que colheu, agora pisoteadas e esmagadas.

            “Talvez a chuva fosse a tentativa da floresta de limpar a mancha que deixei na história de suas eras... ”.

            O garoto cava a terra com as próprias mãos, debaixo de chuva.

            “... ou fosse apenas o choro das árvores, em luto por causa dela”.

            Ele tapa o buraco manualmente.

            “Ninguém nunca a encontrou...”.

            Em pé, ele observa a cova recém-concluída. Poças já se formam ao redor, por causa da chuva.

            “... e nem seria possível. Esse era um lugar que existia só para nós”.

            Com sua mente vacilante e doentia já de volta ao tempo presente, Alan – o fosso negro de ressentimento e amargura que aquele garoto se tornou – retira da mochila uma pá de jardinagem.

            “Chegou a hora. Enquanto ainda tenho tempo...”.

            Ele escava aos pés da acácia.

            “... de buscar uma apoteose para essa tragédia dos anos perdidos...”.

            A ossada da menina, com partes decompostas do vestido, aparece em meio à terra.

            “... e encontrar você. Pela última vez”.

            De joelhos diante do buraco aberto, Alan – muito suado, trêmulo e com os olhos sendo progressivamente tingidos por um grotesco tom de vermelho –  retira da mochila uma faca de caça.

            “Não tenho medo de ir para o inferno”.

            Apesar de trêmula, a mão de Alan não hesita. Ele corta a própria garganta com a grande faca. O sangue jorra.

            “Vivi no inferno até hoje. Ele sempre esteve dentro de mim”.

            Ele cai no interior da cova.

            “Rejeição, desprezo, medo, remorso, solidão, dor, loucura... Cicatrizes eternas tatuadas na minha alma”.

            Recosta a sua cabeça junto ao crânio descarnado da menina.

            “Mas agora sinto que isso está acabando. Talvez seja tudo uma ilusão, e quando eu reabrir os olhos estaremos de novo naquele dia, sentados no velho tronco, antes de você descobrir que o mal existia”.

            Coloca a mão sobre os ossos da clavícula, como se estive tentando abraçar a morta de forma afetuosa.

            “Ou talvez você não esteja mais lá... talvez eu não te veja nunca mais... talvez a escuridão desse céu sem estrelas... as sombras dessa floresta secular... me tomem por completo...”

            O sangue que escorre de sua garganta cortada é abundante. Seus olhos vermelhos já estão vidrados... se apagando...

            “... e eu fique aqui para sempre... chorando e sangrando... sozinho... no escuro”.

 

 

 

 

P.S:
Uma versão em quadrinhos deste conto foi publicada na clássica revista CALAFRIO, edição de Nº 76, com desenhos de João Ferreira. Para quem tiver interesse em adquirir essa ou outras edições da revista, é possível requisitar diretamente com o editor Daniel Saks através do e-mail: revistacalafrio@gmail.com

 


   


 

14 de mai. de 2023

EM ALGUM LUGAR DA RS-332

 

Por André Bozzetto Jr

 

            As luzes estroboscópicas que animam a festa fazem às vezes de portal dimensional e eu estou de novo lá. Só mais uma vez – como das outras – que nunca é a última de verdade. Dançando com a ginga de um bloco de mármore e a desenvoltura de uma montanha de granito. Bebendo cerveja morna e azeda, mas que depois das 03 da manhã parece um elixir dos deuses. Observando em meio às luzes coloridas os rostos que, no ar etílico da noite, parecem sempre mais bonitos, sempre mais jovens. Não é curioso, que no fim de um baile de interior tanta gente feia se torne bonita, e que muitos rejuvenesçam como se por mágica? Apenas em relação ao cheiro é que não cabe muita poesia. Perfume é joia rara. O comum é o trinômio: cerveja, cigarro e sovaco. Será que ainda está dando briga lá fora?

            Embarcamos no Chevette vermelho daquele amigo engraçado e partimos. A madrugada já vai adiantada e seguimos felizes pela RS-332, a rodovia da parte alta do vale, por onde transitaram tantos sonhos e agora, para mim, emergem lembranças a cada curva. Naquele ginásio teve uma festa de carnaval com banho de espuma. Ali na frente uma vez pifou o Opala no qual voltávamos de outra festa tipo essa. Naquela curva quatro amigos capotaram em outro Chevette – um branco, dessa vez.

            O motorista ligou o rádio e estava tocando The Killing Moon, da banda Echo and The Bunnymen. Bem, essa parte não é verdade. Essa música é a que estou ouvindo agora, enquanto escrevo essas linhas. Naquela noite o rádio devia estar tocando axé, pagode romântico ou, na melhor das hipóteses, dance music, pois estávamos em meados da década de 90 e era isso que infestava as rádios. Mas quem está fazendo o relato sou eu e muitas vezes a ficção é bem mais divertida do que aquilo que chamamos de realidade, não é mesmo?

            Fiz todas essas digressões apenas para contar que naquela ocasião, assim como em várias outras, eu vi aquele cara. Ele apenas observava. Na época eu ainda não sabia quem era, e como ele não fazia nada além de observar de forma discreta e até sorrateira, eu o apelidei de “O Espião”. O sujeito tinha uma aparência estranhamente familiar e sempre que eu o via sentia uma sensação esquisita, como um déjà-vu ao contrário. Não era como vivenciar uma cena com a impressão de já ter vivido essa mesma cena anteriormente, mas sim como se o fato ainda fosse ser vivenciado de novo, no futuro. 

           Como alguém se sentiria se conseguisse perceber que não está revivendo suas próprias memórias, mas sim participando das memórias de um outro alguém? Talvez tenha sido a primeira vez em que fiquei intrigado com essa espécie de paradoxo.

            Mas, as reflexões tiveram que ser interrompidas. Alguém me sacudiu no banco de trás e eu acordei. Desci do Chevette meio cambaleante e percebi que o domingo já estava raiando. Passaríamos o dia curando a ressaca e na segunda-feira seríamos adultos de novo.       

21 de abr. de 2023

A ESTRADA QUE NÃO LEVA A LUGAR NENHUM

 

Por André Bozzetto Jr

 

            É um caminho que jamais esteve em qualquer mapa. Surgiu em uma longínqua era passada, já encoberta pelas inexoráveis poeiras do tempo. Teve origem na mente do primeiro homem que entendeu como uma ilusão a frágil estrutura que considerava ser a realidade e, uma vez desperto, quis partir para além dos limites que o aprisionavam. Desde então, todo aquele que um dia desejou fugir, sonhou em ir embora, ou fantasiou com novos rumos, acabou por acrescentar alguns quilômetros a mais nessa via arquetípica. No passado era composta por terra ou areia, porque não havia nada diferente para servir de pavimento. Com o tempo, vieram as pedras, as pontes, os túneis, o asfalto e os viadutos. Hoje ela pode ter qualquer formato – todas as formas que a mente humana já concebeu. Quem faz a paisagem é olho do viajante.

            É uma via idílica, fomentada pelas esperanças de quem botou a mochila nas costas e partiu ao amanhecer, tendo o sol nascente como guia. Mas também é uma rota assombrada pelos fantasmas daqueles que se perderam, vindos não se sabe de onde, com destinos aos quais nunca chegaram.

            A estrada não leva a lugar nenhum por que ela não tem ponto de chegada. Nunca termina. Tal qual ouroboros, é uma serpente que morde a própria cauda. Um caminho que se desdobra sobre si próprio. Um simulacro de viagem, que quando parece estar se aproximando da conclusão, se reconfigura em um novo começo. Ela não é um fim em si mesma, mas apenas um subterfúgio para a jornada do viajante. Não é intrinsecamente real até que o viajante a torne real e, por isso mesmo, é uma rota que não pode ser concluída, apenas transcendida.     

10 de abr. de 2023

O RELATOR DA NOITE - A VERDADE NÃO ESTÁ LÁ FORA

 

 

            A série estadunidense de ficção científica Arquivo X (The X-Files, no original em inglês) foi um dos maiores sucessos televisivos da década de 1990, conquistando uma legião de fãs ao redor do mundo e construindo um status de cult que se mantém até  os dias de hoje. Era na abertura do programa – em meio à inesquecível música-tema – que aparecia a frase “A verdade está lá fora”, verdadeiro lema norteador da premissa dos roteiros e que se consolidou como um bordão tão marcante na cultura pop da época a ponto de se tornar conhecido mesmo entre aqueles não costumavam assistir aos episódios. Essa inferência estava diretamente relacionada às crenças do personagem Fox Mulder (David Duchovny), um agente do FBI que tentava, a todo custo, provar que o Governo dos EUA era responsável por uma conspiração que visava manter oculto o fato de que não apenas existiam civilizações extraterrestres, mas também que elas interagiam de diversas formas com a população de nosso planeta. A representação iconográfica destas crenças estava no igualmente clássico poster afixado na parede do escritório de Mulder, onde constava um OVNI sobrevoando algumas árvores e a frase “I WANT TO BELIEVE” (“eu quero acreditar”) estampada em letras garrafais.

            A lembrança da saudosa série de TV me veio à mente como um devaneio, durante meus estudos sobre Gnosticismo. Stephan Hoeller – uma das mais proeminentes autoridades no assunto – afirma em seu livro Jung e os Evangelhos Perdidos que a civilização ocidental está “perdida” por ter se enredado em uma estrutura sociocultural – e até cognitiva – que desaprendeu a olhar para os aspectos subjetivos da realidade interior e passou a focar com todo o interesse apenas no panorama externo, naquela pequena fatia da realidade que constitui a dimensão meramente física. Para o autor, a humanidade pode vivenciar um verdadeiro salto evolutivo – uma melhoria nas mais diversas áreas de nossa existência – quando um número suficientemente grande de pessoas tiver desenvolvido uma expansão de sua própria consciência. “Como o falecido J. Krishnamurti apropriadamente afirmava: ‘O problema mundial é o problema individual’, e nós podemos acrescentar que o problema individual deve ser encarado dentro do indivíduo”, pois, “agora como outrora, nenhum deus ex machina, nenhuma divindade salvadora, externamente projetada, vai nos libertar da nossa condição”. Para Hoeller, assim como para tantos outros pensadores gnósticos, o idealizado equilíbrio geral, tão necessário para a evolução da nossa sociedade, está condicionado a um processo relativamente simples, ainda que isso não signifique que seja fácil: o indivíduo trabalha na expansão da sua consciência e nas potencialidades intrínsecas a ela e, como consequência natural dessa realização, promove a melhoria da realidade coletiva ao seu redor. Como isso pode ser feito? Através do desenvolvimento das faculdades subjetivas que compõe as facetas psicológica, emocional e espiritual de nossa existência, tão negligenciadas por uma parcela significativa de nossos contemporâneos. Esse processo de busca pelo conhecimento interior é muitas vezes chamado genericamente de gnose e só pode ser obtido quando se restringe o foco nas distrações do mundo exterior e se olha para dentro, por meio do autoconhecimento. Ou seja, para o Gnosticismo, a verdade não está lá fora, mas sim lá dentro.

            Trocadilhos infames e devaneios de fã à parte, o fato é que muito do conteúdo da série criada por Chris Carter permite reflexões acerca da dubiedade daquilo que chamamos de “realidade consensual”. Sob uma ótica gnóstica, a verdade não está lá fora porque, em última instância a realidade exterior é uma ilusão. Em Arquivo X essa natureza ilusória do mundo em que vivemos é sustentada por conspirações governamentais e até mesmo cósmicas, mas, insistindo no paralelo com a ficção, algo assim seria apenas um entre diversos níveis concêntricos de semelhante teor, como uma cebola composta por várias camadas de ilusões de diferentes profundidades. Richard Smoley, em sua obra Inner Christianity (que aqui no Brasil foi lançada com o espalhafatoso título Gnosticismo, Esoterismo e Magia) diz que os antigos gnósticos foram os precursores do que ele chama de “hermenêutica da suspeita”, que consiste em uma desconfiança intuitiva para com aquilo que se convencionou chamar de realidade. “Sabemos que o mundo não é o que pretende ser e existe algo melhor a que cada um de nós instintivamente aspira. Também sentimos que existe algo que se coloca entre nós e essa felicidade”. Para o autor, o século XX foi particularmente propício a instigar esse sentimento de suspeita, em função dos vários tipos de controle social que acabaram se tornando evidentes – como, por exemplo, o totalitarismo – mas também em razão da desconfiança de formas mais sutis e penetrantes de manipulação das massas e imposição do engano, ainda que, como se sabe, algumas delas sejam tão antigas quanto a própria civilização humana.

            Não obstante, para os antigos gnósticos a ilusão e o erro estavam impregnados nos mais diversos níveis da realidade exterior porque, em síntese, isso seria decorrente de forças que constituem o mundo e atuam sobre a vida humana buscando o aprisionamento da consciência e o consequente impedimento do despertar para a verdade superior. Na mitologia gnóstica, essas energias contrárias ao desenvolvimento da humanidade são personificadas sob a designação de arcontes, emanações do deus inferior responsável pela criação do nosso plano material, comumente referido como Demiurgo.

            Obviamente, deve-se estar atento para não incorrermos no equívoco da generalização, mas é fácil perceber como uma parcela significativa de nossa sociedade contemporânea está profundamente enredada nas ilusões exteriores. Vidas inteiras dedicadas ao trabalho em tempo integral, não apenas em busca do óbvio e necessário sustento, mas do status e dos engodos supérfluos proporcionados pelo dinheiro; apego insano à aparência física, que extrapola os limites do saudável e incorre no arquétipo dos “ratos de academia”, abuso de substâncias químicas, dietas degradantes, e os cada vez mais comuns procedimentos estéticos de natureza cirúrgica, que muitas vezes desencadeiam graves efeitos colaterais, de consequências físicas e psicológicas. E o que dizer da necessidade psicótica de aparecer, de ser visto, de ser notado, mesmo que seja pelos motivos mais torpes e absurdos? A busca desenfreada pela ilusão-mor de nossa época – a aprovação on-line – manifestada em números de likes e views não apenas cria, mas também “empodera” tecnodemônios com capacidade de escravização e destruição sem precedentes. E isso apenas arranha a superfície do grande lago negro da contemporaneidade. Todos sabemos que, quanto mais submergirmos, mais pútrido será o lodo que encontraremos lá embaixo.

            Naturalmente, o quadro que pintamos aqui – e que pode parecer um tanto pessimista aos olhos de alguns – decorre do desequilíbrio. Desde sempre as mais diversas tradições esotéricas abordaram a vital necessidade de se dedicar igual atenção aos quatro níveis fundamentais da nossa existência [físico, intelectual, emocional e espiritual] muito bem representados nos quatro elementos alquímicos – respectivamente: Terra, Ar, Água e Fogo. Quando se foca apenas nos aspectos exteriores, buscando-se majoritariamente os resultados concernentes ao nível físico, inevitavelmente, consequências sobrevêm. Para os adeptos do gnosticismo, a profunda introspecção, que transcende os limites da percepção física e intelectual, atingindo os níveis emocional e – principalmente – espiritual é o caminho para se chegar ao equilíbrio.

            Hoeller afirma que, para os junguianos e o pensamento da psicologia profunda, os interesses espirituais e religiosos são, em última análise, baseados em um impulso humano universal para a totalidade, uma vez que os diferentes componentes da nossa natureza tendem a buscar um processo de progressiva unificação (chamado por Jung de "individuação") que tem como meta a totalidade. O olhar interior que visa equilibrar os aspectos espiritual e emocional ao intelectual e físico em busca de uma integração é – ainda que em uma de suas facetas mais simplistas – a gnose.

            Smoley argumenta que quando a alma é iluminada pela gnose – depois que o espírito é estimulado em um ser humano, seja pela experiência de conversão ou simplesmente pelo movimento silencioso de um desejo interior – ele deve então proceder ao confronto com as forças do mundo [os arcontes, da mitologia]. Nesse nível, o indivíduo já dominou seus desejos carnais e as oscilações da psique no que tange à realidade exterior, de tal forma que “isso dá acesso a um tremendo poder, e é um estágio em que o miraculoso começa a se manifestar” mesmo nas situações cotidianas. O autor afirma, contudo, que são poucos o que atingem esse nível. “Talvez ninguém nesta Terra seja capaz de manter um estado de iluminação perfeita em todos os momentos. Até os praticantes mais avançados provavelmente têm um vislumbre da gnose e depois voltam às preocupações do mundo”. “Quando alguém percebe que isso aconteceu,” pondera ele, “levanta-se e começa de novo”, acrescentando ainda que para a maioria, entretanto, essa iluminação deve ser nutrida por um programa de prece, meditação e estudo por toda a vida, “aliado aos inevitáveis rigores da tentativa de viver uma vida decente e ética”. Como diz Cristo, “portanto, orai e vigiai sempre” (Lucas 21:36).   

            Em tempo, ainda que a gnose só possa ser obtida de maneira individual, a iluminação interior não é o fim do caminho. Talvez o grande ponto de virada para o indivíduo em busca da expansão da consciência seja o entendimento de que, à medida em que se aperfeiçoa, sua presença deve aperfeiçoar também a realidade ao seu redor. Smoley diz que “o melhor caminho para o progresso é tornar-se útil para o trabalho”, para o bem-estar da coletividade, uma vez que “conforme a percepção espiritual se aprofunda, fica cada vez mais claro que o progresso é impossível, a não ser que se esteja trabalhando para os outros e para a humanidade como um todo”, pois, em última instância, “não podemos nos desenvolver sozinhos, porque não existimos sozinhos”. Ainda que, sob muitos aspectos, isso pareça uma utopia, é possível que quando o equilíbrio interior da maioria se refletir no equilíbrio exterior da coletividade possamos então concluir que a verdade está, ao mesmo tempo, lá dentro e também lá fora.