3 de abr. de 2021

NOITE DE VERÃO

 

Na escuridão fico a procurar 
O vento vai guiar meus passos a você
(Barbarella)

 

            Se você perguntar para qualquer pessoa de Pinhalzinho quando foi que tudo isso começou, ninguém vai saber responder. Mas eu sim. Sei dizer o dia e até a hora. Foi em 30 de dezembro de 1991, feriado de emancipação do Município. Naquela noite a nossa comunidade de Três Cachoeiras promoveu a maior festa de sua história e uma das maiores que a região já tinha visto. Para animar o baile, decidiram contratar ninguém menos do que a banda Barbarella, que estava fazendo um sucesso enorme na época, com comerciais dos seus discos aparecendo no canal da RBS TV e músicas como Só uma canção, Aldeia, Sedução e Noite de Verão, do disco novo, tocando toda hora nas rádios.

            No fim da tarde, ajudei o pai a tratar os porcos, tirar o leite das vacas, depois tomei um bom banho e vesti a camiseta gola polo novinha que tinha comprado na Casa Baratinha e fui logo para o salão da comunidade. Era certo que viria gente de tudo que era lado para ver a banda, e com certeza muitas garotas também. Talvez até alguma que desse bola para mim, né...

            Realmente, o salão lotou. Nunca tinha visto tanta gente. Quando o Barbarella começou a tocar foi uma loucura. Veio gente de Chapecó e Xanxerê, Erechim e Nonoai. Mas, meninas dando bola para mim, tinha? Nenhuma. Bem que eu tentei chegar de mansinho perto de uma ou outra, mas sempre que eu fazia isso apareciam os abostados do Ricardo e do Juliano para avacalharem com tudo. Já chegavam gritando “Julinho Porquinho!” e fazendo “óinc, óinc!”, até espantar as garotas ou, o que era pior, fazer todo mundo cair na gargalhada, me deixando envergonhado e com cara de idiota. Viviam me perseguindo e debochando de mim, aqueles putos!

            Desanimado, peguei uma Coca-Cola e sentei num canto. Parecia que ainda não seria dessa vez que eu finalmente ficaria com alguma menina. Lembro de ter olhado o relógio acima da parede da bodega e mal passava da meia-noite quando ela apareceu. Apesar de o salão estar empilhado de gente, parece que todo mundo notou a chegada dela. Aparentava ter vinte e poucos anos, tinha a pele muito clara e cabelos bem pretos e compridos. Usava um vestido preto que destacava muito bem o seu lindo corpo. Era, com certeza, a mulher mais gostosa que eu já tinha visto assim, na minha frente.

            Ela deu uma volta no salão, observando as pessoas com atenção, mas ao mesmo tempo parecendo estar insatisfeita. Até que passou na minha frente. Não tem como descrever o que senti quando ela olhou nos meus olhos. Um calafrio de chacoalhar a espinha, seguido de um calorão e a sensação de que o meu coração iria parar. A música parecia ter sumido e a minha mente ficado vazia. Ela foi saindo – parecia em câmera lenta – ainda me encarando, olhando no fundo dos meus olhos por sobre o ombro, e então se foi, saiu porta afora. Na minha cabeça surgiu como uma voz – um eco, na verdade – sussurrando um nome: Ayara! Me sentia como se o mundo ao meu redor tivesse parado e a única coisa que me interessava era ela. Eu precisava ir atrás dela! Precisava de qualquer maneira!

         Saí do salão meio alucinado, passei pelas luzes do estacionamento e mergulhei na escuridão da estrada. Não enxergava quase nada, mas sabia exatamente onde devia ir, como se ela estivesse me guiando por telepatia. Caminhei um pouco – na verdade dava a impressão eu flutuava, sem tocar o chão – e logo cheguei ao meu destino: a parte de trás do cemitério da comunidade. Ela estava lá, no escuro. Me olhava com aqueles olhos que pareciam hipnotizar. Chegou lentamente perto de mim – bem perto! – e eu entendi o que iria acontecer. Meu coração estava disparado, parecia que iria sair para fora do peito. Sua pele era tão... gelada!

            De repente, barulho de passos às minhas costas. Saí – pelo menos por um momento – daquele estado de transe e olhei para trás. Juliano e Ricardo nos observavam com cara de apavorados. “Porquinho...” chegou a dizer Juliano. Não sei o que mais ele iria dizer, porque não teve tempo. Como uma pantera, a moça saltou sobre ele, agarrou sua cabeça e torceu para trás, como se estivesse torcendo uma boneca de pano. O barulho que o pescoço dele fez quando quebrou foi terrível. Ricardo saiu correndo imediatamente, gritando e chorando feito uma criança. Ela nem tentou impedir. Apenas segurou o corpo morto de Juliano – com a mesma facilidade com que alguém segura uma toalha de banho – e o aproximou do próprio rosto, como se estivesse cheirando. Em seguida, o atirou no chão, com cara de nojo.

            “O sangue desse verme aí fede a álcool, cigarro e gonorreia...” disse ela, falando diretamente na minha mente, “Por isso gostei de você... seu sangue é puro... e você tem cheiro de virgindade...”.

            De forma lenta e sensual, ela tirou o vestindo e encostou seus lábios no minha orelha. Sentia minhas pernas tremendo como vara verde. “Você pode ter a força para fazer isso...”, disse ela, apontando para o cadáver de Juliano, “Pode fazer todos eles pagarem pelos deboches e gozações... pode pegar para você as mulheres que quiser... e pode ter a mim, aqui e agora... você quer?”

            Ela estendeu a mão e apalpou algo duro feito rocha pulsando em minhas calças. Eu entendi tudo, sabia que teria consequências, mas naquele momento, era impossível qualquer outra resposta. Eu precisava dizer “sim”. Precisava... sim... SIM!

            Como descrever aquele momento? Calor, desejo, prazer, uma pontada de medo, dor... um mergulho – ou seria um voo? – para dentro dela, e dela para dentro de mim... sangue! Depois a escuridão e o silêncio, como de um sono do qual nunca mais se desperta. Pelo menos não do mesmo jeito. Porque, na verdade, eu despertei. Estava no meio da mata. Pela cor do céu, havia acabado de anoitecer. Percebi que tinha ficado o dia inteiro apagado. Ela não estava ali, mas havia deixado algo em mim. Eu ainda estava deitado, imóvel – tinha apenas aberto os olhos – mas mesmo assim senti uma força tremenda vibrando através do meu corpo. Eu sentia – tinha certeza – que poderia partir uma árvore ao meio com apenas um soco, e estava adorando isso. Mas havia mais alguma coisa, uma sensação. Sede! Uma sede que crescia segundo após segundo. Eu assistia a novela Vamp da Rede Globo. Já tinha lido o livro do Drácula quando retirei na biblioteca do Colégio Marcolino. Eu sabia de que os vampiros têm sede. Lembrei daquele bosta do Ricardo. O que será que ele acharia desse novo “Julinho Porquinho”? Será que ainda teria coragem para rir, ou iria chorar de medo, feito uma menininha? Era o que iríamos descobrir!

 

 

Por André Bozzetto Junior  


 
 
   

Nenhum comentário:

Postar um comentário