24 de fev. de 2021

UM ESTRANHO PRISIONEIRO

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Todos os prisioneiros sabiam o que lhes aguardava ao serem capturados por aquela corja de piratas: serem vendidos como escravos para algum magnata do leste ou serem executados e jogados ao mar. Por isso, era compreensível que enquanto estivessem no calabouço passassem todo o tempo especulando sobre possibilidades de fuga ou chorando em desespero pela ausência delas. A imensa maioria agia dessa forma, com exceção de um único detento: aquele sujeito esquisito que foi capturado por último. Desde que ele chegara à prisão, passou todas as suas horas mergulhado em um silêncio impassível e indiferente, que em nada combinava com a postura histérica e agressiva dos demais cativos.

            Porém, tudo mudou cerca de duas semanas após a sua chegada. Tão logo anoiteceu, ele levantou-se do canto onde geralmente permanecia sentado e começou a chamar pelos carcereiros. Assim que um deles apareceu, o estranho enfiou sua mão por entre as grades e o atingiu com um soco, soltando uma gargalhada logo em seguida.

            Furioso, o pirata agredido pediu a ajuda de um companheiro e arrastou o prisioneiro rebelde para fora da cela. Era evidente que os carcereiros pretendiam espancá-lo com toda a brutalidade que sua petulância merecia. Contudo, ali mesmo, no corredor da prisão, algo inacreditável aconteceu. Com um urro enregelante, o estranho se desvencilhou de seus agressores e deu vazão a uma metamorfose que o transformou em um monstro enorme e horrendo.

            Sem dificuldades, a criatura destroçou a dupla de piratas antes mesmo que eles pudessem desembainhar suas espadas, para em seguida tomar as escadas e partir para o andar superior da antiga fortaleza.

            Ouvindo os gritos de dor e desespero que vinham lá de cima, pela primeira vez os demais prisioneiros sentiram-se gratos por estarem trancafiados e protegidos por detrás das grades de suas celas imundas.     

20 de fev. de 2021

REFLEXÕES DE GUERRA


 

Por Renato Rosatti

 

                   A noite estava fria, escura e chuvosa. Perdido na floresta, no meio de mais uma guerra insana, eu estava ferido e à beira de um colapso emocional. Eu me perdera do pelotão numa batalha e vagava agora sozinho em meio à mata, carregando a dor de um projétil que se alojara em meu ombro e questionava incessantemente o horror real à minha volta, e a barbárie insensata da guerra.

                Solitário, com frio, dor, cansaço, e com a escuridão me engolindo em suas entranhas e ocultando medos e pavores no desconhecido. Quanto à guerra, eu pensava com indignação qual o seu propósito, e consegui concluir, envergonhado de minha própria humanidade, que qualquer diferença entre os povos não deveria ser negociada com tanta violência e irracionalidade. Matar para não morrer. Destruir a natureza. Combater a vida trilhando marchas fúnebres e saudando a soberana morte, vencedora triunfal de todas as batalhas. Ferir, mutilar, proporcionar o sofrimento e a dor em meus semelhantes, matar e se congratular de minha superioridade frente ao inimigo. Tudo é insano e sem sentido.

              Ali, na escuridão, ferido, perdido num inferno criado pela minha própria espécie, eu continuava meus pensamentos e começava agora a delirar ao tentar entender a guerra. E visões também começavam a surgir à minha volta. Explosões, disparos de projéteis, gritos de dor, cheiro de sangue coagulado no ar, morte. Cenas de horror real em estado puro e absoluto. Delírios, visões... Sozinho, no escuro, dor, frio, o inferno... a guerra...

                Foi quando eu ouvi uma voz gutural, rouca, pavorosa, ecoar em meus ouvidos em meio às visões e ruídos do caos de meus delírios. Parecia um som sobrenatural, vindo da podridão do além, do desconhecido, como um lamento grotesco de uma legião de criaturas agonizantes e desesperadas. As palavras traduziam a dor profunda da guerra e me incitavam a obter a minha paz eterna. Sons guturais e distorcidos que gritavam pelo fim da loucura e sofrimento. Delírios, visões, mensagens...

                Eu, esgotado física e psicologicamente, esforcei-me em minhas poucas energias, peguei minha metralhadora, apontei para a própria cabeça, e sem hesitação disparei explodindo meu cérebro, cujos pedaços misturaram-se com a mata, agora vermelha de meu sangue, o sangue de outra vítima.

       Para mim, a guerra finalmente acabava...

      E o pesadelo também, acordando desesperado, mergulhado em suor...

16 de fev. de 2021

O ÚLTIMO TREM PARA O SUL

 

 

Por André Bozzetto Junior

            Marcelo e Juliana estavam sentados no teto de um dos últimos vagões de um antigo trem de carga que seguia na direção do extremo sul do Brasil. A prática de se embarcar clandestinamente nesse tipo de veículo era muito antiga e vinha sendo utilizada recorrentemente por todo o tipo de gente, de fugitivos passando por andarilhos sem dinheiro até simples aventureiros, que se lançavam em uma viagem deste tipo com o único objetivo de vivenciar uma experiência diferente. E era nessa última categoria que se encaixava o jovem casal do qual estamos falando. Eles já haviam voado de asa delta no Rio de Janeiro, saltado de bungee jump em São Paulo, praticado rafting no Rio das Antas, no Rio Grande do Sul e escalado o Pico da Neblina, no Amazonas. Naquele momento, acampar em um local ermo e isolado em uma região de matas, no interior de Santa Catarina, parecia uma boa pedida para as pretensões íntimas do casal. Ainda mais se este acampamento estivesse entremeio a uma excitante viagem clandestina em um trem antigo e barulhento.

            – Veja! Lá na frente há uma grande curva. – disse Marcelo – O trem vai diminuir bastante a velocidade e é nesse momento que vamos saltar.

            Juliana consentiu com um aceno de cabeça. Rapidamente, os dois desceram por uma minúscula escada de metal que ficava entre dois vagões e ficaram no aguardo do momento ideal para saltar. Quando iniciou a curva, o trem diminuiu drasticamente a velocidade, de forma que o casal entendeu que era a hora certa. Jogaram as mochilas nos arbustos que ficavam na margem da ferrovia e, depois de uma otimista troca de olhares, pularam quase ao mesmo tempo. Rolaram brevemente pela relva de um pequeno declive e, poucos instantes depois, já estavam se levantando, sorridentes.

        – Nossa! Seu plano deu certinho! – disse Juliana, empolgadamente.

            – Com certeza! – respondeu Marcelo – Como eu lhe disse, era só fazermos a mesma coisa que fiz em companhia do meu irmão e dos meus primos, há mais de dez anos atrás.

            – Ok. E agora? – perguntou a moça.

          – Agora vamos descer por ali e procurar um bom lugar para acampar, pois logo vai anoitecer. Esse foi o último trem para o sul. Amanhã, pouco depois das 14:00 horas, devemos estar a postos naquela mesmo curva para embarcarmos na lata velha que nos levará para casa.

          – Mas será que conseguiremos subir com o trem andando? – questionou Juliana.

           – Claro! – respondeu Marcelo, confiante – Você não viu como ele fica bem lento enquanto faz a curva? Conseguiremos embarcar sem problemas.

            Em seguida, o casal ajuntou as mochilas e seguiu por dentro da mata na direção leste por pouco mais de um quilômetro, onde encontraram uma pequena clareira e montaram acampamento. Rapidamente, as sombras da noite tomaram conta da paisagem.

         – A que distância estamos da cidade mais próxima? – perguntou Juliana, enquanto colocava mais alguns galhos secos na fogueira.

            – Creio que há uns trinta quilômetros. – respondeu Marcelo, enquanto aprontava a linguiça para o churrasco – Mas acho que a cinco ou seis quilômetros no sentido leste deve haver algumas pequenas fazendas. Pelo menos foi isso que os meus primos disseram da outra vez em que estive por aqui.

            – Ah, então isso significa que nesta noite estarei totalmente a sua mercê... – disse a moça, de forma maliciosa.

            – Com certeza! – respondeu Marcelo, em tom semelhante – Mas esse era um risco do qual você já tinha conhecimento, não é mesmo?

            Antes que o casal pudesse dar prosseguimento ao diálogo provocante, um grande barulho se fez ouvir em meio à mata, nas proximidades do acampamento. Era como se alguém, ou alguma coisa, estivesse se aproximando rapidamente, esmagando os galhos e folhas secas que havia no caminho.

          – Marcelo, o que será isso?! – questionou Juliana, visivelmente amedrontada.

                – Calma! – respondeu o rapaz, pegando a sua faca de caça – provavelmente seja apenas uma lebre.

              – Parece ser algo bem maior do que uma lebre... – retrucou a moça.

            Então, seguiram-se alguns instantes que pareciam intermináveis, até que finalmente, uma mulher surgiu correndo de dentro da mata. Estava seminua, suja e com diversas escoriações pelo corpo.

            – Me ajudem! Me ajudem! – gritava a desconhecida – Eles estão vindo e querem me matar! Vocês precisam me ajudar!

            Marcelo e Juliana bem que tentaram reter a mulher e lhe fazer algumas perguntas, mas ela se desvencilhou apavoradamente e seguiu correndo para dentro da floresta, na direção oposta de onde tinha vindo. Nesse instante, o casal ouviu novos barulhos de passos se aproximando.

            – Não saia daqui! – ordenou Marcelo para Juliana, ao mesmo tempo em que pegou um grosso galho que seria usado na fogueira e se escondeu em meio aos arbustos.

            No instante seguinte, um homem adentrou na clareira portando uma espingarda em mãos. A moça gritou assustada, no exato momento em que Marcelo surgiu detrás dos arbustos e desferiu uma violenta paulada na cabeça do desconhecido, fazendo-o cair ao chão desacordado.

            – Vamos logo, Juliana! Tire aquela corda da barraca e traga até aqui! Vamos amarrá-lo! – exclamou Marcelo, pegando a espingarda do misterioso sujeito.

            Assustada, a moça tratou de seguir rapidamente a orientação do namorado. Porém, mal eles haviam amarrado o estranho, e mais uma vez os barulhos vindos da mata indicavam que alguém estava se aproximando. Marcelo pegou a espingarda do desconhecido e ficou a postos. Logo depois, um segundo homem apareceu no acampamento e, a exemplo do primeiro, também estava armado.

                – Largue a arma! – ordenou Marcelo.

            – Mas espere, deixe eu explicar... – tentou argumentar o estranho.

               – Largue a arma ou eu estouro a sua cabeça agora mesmo! – insistiu Marcelo.

            Sem opção, o estranho soltou a espingarda e ergueu as mãos para o alto.

            – Juliana, pegue aquela espingarda e traga para cá! – ordenou Marcelo.

            Mesmo receosa, a moça se aproximou lentamente, ajuntou a arma e correu de volta para o lado do namorado. Nesse instante, o homem que estava amarrado no chão despertou desorientadamente.

            – Seus merdas! O que pretendiam fazer com aquela moça? Sequestrá-la? Estuprá-la? Ou algo mais criativo? – indagou Marcelo.

            – Você não sabe de nada, rapazinho! – respondeu o homem que chegara por último – Ela estraçalhou dois empregados da minha fazenda!

            – Ah, com certeza! – retrucou Marcelo, de forma irônica – Uma garota de pouco mais de um metro e meio de altura tem mesmo condições de estraçalhar dois homens.

            – Você não a conhece, garoto! Ela não é uma mulher normal. – disse o sujeito que estava amarrado.

            – Anormais são vocês! – exclamou Marcelo – Não me admira que aquela pobre moça tenha corrido daqui como se fosse o diabo fugindo da cruz!

            – Mas ela vai voltar, com certeza. – afirmou um dos estranhos – Por aqui ela não vai encontrar uma refeição mais apetitosa do que nós.

            – Escute, meu jovem: que tal você me devolver a espingarda e soltar o meu amigo? – disse o outro desconhecido – É o melhor a fazer se pretendem sair vivos dessas matas.

            Marcelo já se preparava para rebater as palavras do sujeito, quando ouviu um grito arrepiante às suas costas. Ao se virar, só teve tempo de ver o homem que estava amarrado no chão sendo arrastado para dentro da mata fechada enquanto gritava e esperneava desesperadamente.

              – O que foi aquilo?! – indagou Marcelo.

            – Alguém o pegou, mas foi muito rápido! Não consegui ver quem era! – disse Juliana, com voz trêmula.

            – É ela! – exclamou o desconhecido – Se não fizermos algo ela vai matar a todos! Me devolva uma das espingardas, rápido! Elas estão carregadas com balas de prata!

            Em dúvida sobre o que fazer, Marcelo permaneceu imóvel por um instante, e esse momento de hesitação foi decisivo. Com espantosa rapidez, uma enorme criatura saiu de dentro da mata, no lado oposto da clareira, e saltou sobre o desconhecido. Surpreso e indefeso, o homem só teve tempo de vislumbrar os olhos avermelhados e reluzentes da criatura, instantes antes dela cravar as afiadas presas em sua garganta e dilacerá-la com uma vigorosa mordida.

            Apavorado, Marcelo disparou dois tiros na direção do monstro, mas sem que nenhum deles atingisse o alvo. Contudo, tal atitude foi suficiente para chamar a atenção daquele horrendo ser que, de forma muito ágil, saltou na direção do rapaz e desferiu uma patada na espingarda que ele tinha em mãos, fazendo-a voar para longe. No instante seguinte, uma nova patada foi desferida pelo monstro, desta vez atingindo Marcelo no peito e derrubando-o ao chão.

            Atordoado pelo golpe, o rapaz tentou se afastar rastejando, mas seu avanço logo foi interrompido no momento em que ele sentiu as garras afiadas da besta agarrando a sua perna com violência e provocando uma dor tão alucinante que o fez crer que iria desmaiar. Porém, no instante em que estava prestes a perder os sentidos, Marcelo ouviu o estrondo de um tiro anteceder um urro ensurdecedor que foi emitido a centímetros de sua cabeça. Depois de um breve instante de silêncio, que lhe pareceu extremamente longo e angustiante, o rapaz ouviu a voz chorosa da namorada.

            – Marcelo! Marcelo, você está bem?! – gritava a moça.

             O rapaz reabriu os olhos lentamente, mas ainda teve tempo de ver Juliana se agachando ao seu lado portando em mãos uma das espingardas trazidas pelos estranhos. Um pouco mais a frente, estava o corpo nu e ensanguentado da moça desconhecida que havia passado pelo acampamento alguns minutos antes.

         – Meu Deus! A moça era mesmo aquela coisa! – exclamou Marcelo, pasmo.

            – Sim, mas esta morta! – disse Juliana, abraçando o namorado – Eu a matei.

            – Você atira melhor do que eu! – disse o rapaz, tentando soar descontraído.

            – É só mais uma das várias coisas que eu faço melhor do que você! – retrucou a moça, no mesmo tom – Como está a sua perna?

           – Doendo horrivelmente, mas vou sobreviver. – afirmou Marcelo, encarando mais uma vez os olhos mortos da garota estendida no chão, que a partir daquela noite seriam presença constante em seus mais horripilantes pesadelos.


10 de fev. de 2021

GARRA CINZENTA: O QUADRINHO NOIR BRASILEIRO QUE É UM MISTÉRIO


 Por Gian Danton

    Publicado no jornal A Gazeta, entre 1937 e 1939, Garra Cinzenta é um dos personagens mais clássicos e interessantes do quadrinho nacional. Com roteiros de Francisco Armond e desenhos de Renato Silva, a história mostrava um vilão que apavora a Nova York da década de 1930 com uma série de crimes. Inteligente, capaz de mil disfarces e dono de vários atributos científicos, entre eles Televisões de monitoramento, o Garra desdenha da polícia da cidade enviando cartões com uma garra informando os crimes que irá cometer.
 
    Os heróis são dois inspetores de polícia, Higgins e Miller, que apesar de tentarem de tudo, nunca conseguiam pegá-lo. Sempre que conseguiam uma testemunha que poderia incriminá-lo, ela era morta.
 
    Além dos capangas comuns, O Garra Cinzenta contava com um gorila com o cérebro transplantado de um cientista, uma antiga secretária, que após sofrer lavagem cerebral se torna a femme fatale a Dama de Negro  e um robô construído pelo próprio Garra, chamado Flag.
 
    A narrativa era fortemente influenciada pelo gênero policial noir e principalmente pelos pulp fictions. O escritor Francisco Armond imitava perfeitamente o estilo de tiras famosas da época, como O Fantasma e Agente Secreto X-9 e os desenhos de Renato Silva destacavam o ar sombrio das histórias.  
 
    Uma curiosidade é que a produção das HQs envolve também um mistério: ninguém sabe quem foi Francisco Armond. Especula-se que seja pseudônimo de algum escritor ou jornalista da época. O quadrinista Gedeone Malagola afirmava que Armond na verdade era a jornalista Helena Ferraz de Abreu, mas o filho da mesma nega. O desenhista Renato Silva morreu antes que o ressurgimento do interesse pelo personagem levasse alguém a perguntar-lhe quem escrevia as histórias. Enfim, a identidade do roteirista parece mais um dos mistérios do Garra Cinzenta.
 
 
Publicado originalmente no blog ivancarlo.blogspot.com em 2017.