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27 de jul. de 2021

ESTELA


Por Giulia Moon

 

            Estela lambeu os lábios. Ainda estava claro, mas uma lua cheia afogueada já surgia no céu. Estava tensa. Queria uivar. Queria agir como uma loba. Como uma das tantas lobas que vagavam nas ruas, nos campos, na imensidão do mundo. Todas assim, resfolegando de ansiedade antes do anoitecer.

            Tudo começara depois da primeira transa após os trinta anos. Era um cara lindo, bem mais novo que ela, tinha 0% de gordura no corpo e o mesmo percentual de QI. Na época ela não ligava pra esses detalhes, só sabia que dava gosto apalpar aquele corpinho rijo, firme, viçoso... Aquele fedor de suor, dos hormônios e do relaxo da juventude, que Estela aspirava com vontade, cheia de tesão.

            Se dependesse dela, desfilaria todo dia como uma verdadeira alfa no covil dos shoppings, dos restaurantes, das praias, do agito, com o seu tenro amante a tiracolo. As outras lobas salivavam, esticando e inflando os peitos dentro de suas blusas, camisetas e vestidinhos, todas de olho no garotão da Estela... Que as vigiava com o canto dos olhos, sem perder nenhum movimento das rivais. Ah, nas lobas, não dá pra confiar! Mulheres de todo o tipo, fêmeas chiques dos Jardins, teens sardentas e bronzeadas, intelectuais de cabelinho preso, garçonetes sexualmente contidas em seus uniformes sóbrios. Todas morrendo de inveja de Estela. Bem, se isso também não era um tesão, o que era?

            Isso foi há tempos atrás. As coisas mudam, sabem como é. No caso, o que mudou foi a disposição física de Estela, agora um dínamo de energia e excitação. O problema era a vontade quase incontrolável de uivar, pular e correr por aí, de preferência nua, num local selvagem. Ok, na falta de uma paisagem mais exuberante, podia ser ali mesmo, no asfalto estreito das ruinhas da Vila Madalena. Mas agora era hora de esperar, ter paciência, ficar ali, sentada no barzinho com as pernas musculosas cruzadas, mal-acomodadas sob uma mesinha pequena demais pro seu corpão moldado em academia. Pois é. Paciência...

            Estela franziu o nariz aquilino, farejando o ar. Nada. Contrariada, bebericou o chope. Soprou a fumaça da última tragada do cigarro e livrou-se do toco politicamente incorreto, que descreveu um semicírculo gracioso no ar, diretamente dos seus dedos para a sarjeta.

            Lá do fundo do bar, da área de não fumantes, veio um olhar de reprovação. Um sujeito de gravata olhava feio pra Estela e pro cinzeiro próximo, onde os restos de cigarros malcriados deveriam ser depositados. Ela rosnou baixinho. O homem tinha uns trinta anos, era posudo, com cara de bem-sucedido. A loba mordiscou os dedos de unhas longas pintadas de bege, mais claras que a sua pele. Sim, sim.

          Afinal as coisas estavam acontecendo. Abriu a boca, mostrando os dentes alvos e deixando a boca carnuda falar sem palavras. Leitura labial que o estranho soube fazer muito bem.

            Descruzou as pernas. O vestido solto, cor de chocolate, era quase continuação da sua pele morena. O homem engoliu o último gole do seu uísque e seus olhos percorreram as pernas da loba, indo e vindo, indo e vindo...

            Estela quase podia vê-lo arfando com a língua de fora, examinando a situação como um macho desconfiado. Perdera aquele ar certinho e arrogante em algum ponto entre a boca, o peito, as coxas e o cano das botas de camurça de salto altíssimo de Estela. Ficaram assim, num diálogo silencioso e cheio de malícia, durante alguns minutos.

            De repente, ele dobrou o jornal americano que fingia ler. Olhou a conta e jogou o dinheiro, displicente, sobre a mesa. Sinalizou para o garçom, apanhou o paletó, o jornal, e veio andando na direção de Estela. Uau, era um ataque frontal? Mas o sujeito passou por ela. Ao passar, abaixou-se para pegar o toco do cigarro no chão. Ah, era esse o plano? Ia jogar a guimba no lixo pra dar uma lição sutil na perua maleducada...

            Mas lobas não gostam de sutilezas. Não esta loba. Com um movimento rápido, Estela fincou o salto da bota no meio da mão larga e bem manicurada do homem. Ele não falou. Apenas olhou, atônito, lá debaixo de sua pose vexatória, para a loba de um metro e oitenta que o fitava, a boca enorme aberta num sorriso malvado, a língua vermelha e sem-vergonha passeando pra lá e pra cá nos lábios de caramelo.

            Ela não falou também. Apenas continuou a afundar ainda mais o salto cruel na maciez da mão espalmada. Com vontade. Com volúpia. Era sangue o que queria. E o olhar do macho, mesmo na dor, mesmo com vontade de meter a mão naquela mulher, insistia em percorrer os caminhos meio obscuros, meio reveladores, por debaixo da saia cor de chocolate, dando maior bandeira do seu tesão.

            Então, sob os olhares curiosos, ainda com a mão sob o jugo do salto agulha torturante, o homem ajoelhado aproximou os lábios da bota. E a beijou.

        A bota se afastou e deixou livre a mão vencida. Ele pegou no braço dela. E, juntos, deixaram o bar. O jornal ficou lá, esquecido, um montão de lixo na sarjeta, junto à pequena guimba manchada de batom.

 

            Lua cheia plena, no alto. Estela escovava os cabelos molhados depois do banho relaxante. Olhou-se no espelho do quarto, nua, a pele reluzindo de frescor. Sentia-se gostosa. Grande. Poderosa. Era sempre assim, depois de uma boa caçada. Fora depois dos trinta que começara a caçar. Lembrava-se muito bem. O garotão bonito viera com o papo de dar um tempo, enquanto armava pra cima dela com uma adolescente cheia de celulite. Pra cima dela, vejam só... Não gostava tanto assim dele, mas uma mulher desprezada sempre quer sangue. E às vezes vira loba. Naquela noite, sob a luz da lua cheia, transara com o jovem amante infiel.

            Uma transa cheia de raiva, de tesão e de veneno. E, quer saber? Foi a melhor transa que tiveram em toda a relação. Mas isso não fora nada, comparado com o que se seguiu. Só podia ser feitiço. E poderoso. Nunca soube por que e nem como, mas o desejo que gritara em silêncio durante o sexo se concretizou.

            O garotão esqueceu a outra, escolheu ficar com Estela. O mesmo se deu com todos os demais, que se transformavam de imediato em fiéis companheiros. Um a cada mês, sempre na lua cheia. Doze por ano. Sessenta e quatro até agora. Amantes belos, fogosos, insaciáveis, com os quais só podia fazer sexo uma única noite. Todos aqueles machos deliciosos! O problema era o dia seguinte. Estela tinha que enxotá-los. Eles uivavam e ganiam, mas, no final, iam embora, os rabos entre as pernas, o olhar magoado. Ah, o que podia fazer? Não tinha espaço em casa para um canil. E nem dinheiro para comprar tanta ração...

            Mas o garotão, ela fez questão de manter. Caminha todos os dias com ele. Leva-o ao veterinário, mantém todas as vacinas em dia. Comprara até umas roupinhas de frio no petshop pra ele, que, por sinal, parece bem feliz com a sua nova vida.

            Pois é, hoje era lua cheia mais uma vez. E havia mais um macho no seu quintal. Um tipo arrogante, cheio de pose. O garotão não gostou muito da concorrência, mas acabou se conformando. Afinal, mesmo com o seu QI pequenininho, sabia, pela experiência, que logo o novato seria enxotado como os outros. Pelo menos ele achava que sim. Ela achava que talvez.

            Estela pingou duas gotas de perfume no seu pescoço. Às vezes sentia falta de um macho fixo. Alguém diferente, com quem atravessaria a noite e alcançaria o dia sem se perder nesse labirinto confuso de desejos e instintos desenfreados. Não para desfilar entre as outras lobas, mas para compartilhar algo maior. Mais profundo. Mas lobas não entendem de coisas profundas. Quem, afinal, entende?

            Estela abriu a janela e olhou para o céu, deixando o vento pentear os seus cabelos. Viu as estrelas, ah, tantas estrelas! Um longo uivo começou a brotar de sua garganta. Do quintal, os uivos dos dois machos juntaram-se ao seu.

            E a noite, por um breve instante, foi deles. Só deles.

 

 

* Conto publicado anteriormente no FicZine nº 05, de dezembro de 2006.

3 de jan. de 2021

PERIGOSA ILUSÃO

 

 Por Giulia Moon

            Maya despertou com um sussurro nos seus ouvidos. Era música. China Roses de Enya, uma das suas favoritas. Ficou ouvindo a melodia durante alguns minutos, sem abrir os olhos vermelhos. Esticou-se sob as cobertas como uma gata preguiçosa e deslizou do caixão, arrastando consigo os lençóis, que foram sendo esquecidos pelo caminho, descobrindo o seu corpo nu. Gostava de andar assim, sem nada sobre a pele fria, os cabelos negros soltos, a alma livre.

            Como desconfiava, o sol há muito se pusera sob o horizonte de Manhattan, visível pela sacada do apartamento de cobertura na 72th Street. Era engraçado imaginar a metrópole imensa, repleta de seres vivos alheios à sua existência, ignorantes da sua fome. Fome... sim, era esta a razão do caminhar dos vampiros pela noite: a saciedade da fome, indistinguível da satisfação de outros apetites, também intensos e excitantes...

            Voltou-se para o interior da sua sala de estar, onde a música ainda soava, suave. Farejou o ar. Rosas vermelhas, frescas e cheirosas. Sinais da presença de Stephen. Sorriu. Imaginou as mãos finas do mordomo ajeitando as flores no vaso. Um espinho fortuito rasgando-lhe a pele macia e drenando umas gotas do sangue quente, apetitoso... Huuuum... O pensamento a fez salivar. Ah, Stephen... Não aprovava a ausência prolongada do seu mordomo humano. Foram apenas alguns dias de folga, mas o suficiente para que ela ficasse bastante aborrecida. Nesse instante, ouviu leves passos atrás de si. Era ele, o seu Stephen...

            – Boa noite, ma'am. Sinto muito por não tê-la acordado, eu estava fazendo um rápido curativo no meu dedo.

            – Espinho de... rosa? – disse ela com o olhar fixo no local do machucado.

            – Oh, isso mesmo... Como soube?

            – Intuição de vampira, dear.

            Maya o observava, enquanto vestia o robe de seda que o mordomo lhe estendia. Como sempre, ele trajava um terno preto discreto e sem graça, mas com um caimento impecável graças ao corpo rijo e sem gordura. Os cabelos finos eram castanho-claros, quase louros, e prenunciavam uma futura calvície com duas entradas acentuadas na testa. Os olhos acinzentados tinham o seu charme, porém o rosto, apesar de ser bem proporcionado, mantinha-se quase sempre inexpressivo, o que deixava a vampira exasperada. Havia no ar um levíssimo odor de tabaco de cachimbo, que o mordomo costumava fumar todas as noites antes de se deitar. Sim, ela o espiava nessas horas. Maya era uma menina má.

            – Você deveria ter voltado ontem – ela disse com frieza – o que houve?

            – As passagens se esgotaram antes do previsto e só consegui pegar o trem desta manhã. Sinto muito, ma'am. Foi apenas uma noite de atraso...

            Os olhos de Maya afinaram-se, devagar.

            – Muitas coisas podem mudar numa noite, dear... Você nem imagina o quanto.

            Stephen a fitou por um instante. Como a vampira ficou em silêncio, ele disse:

            – Gostaria de tomar o seu banho agora?

            – Um banho? Ah, sim... pode preparar.

            Maya observava, distraída, as próprias mãos. Havia sangue sob as unhas. Restos rubros também nos braços, no ventre... E nos lençóis de seda onde dormira na noite passada.

            – Muito bem, ma'am – respondeu o mordomo. – Não levará mais do que alguns minutos.

            Maya viu-o caminhar para o quarto de banho. Sabia o que ele iria encontrar: algum sangue no chão e na banheira. E o cadáver de um anônimo corretor da Bolsa de Valores, que ela apanhara ontem em Greenwich Village. Como se chamava mesmo o lugar? Ah, sim, Borgia Cafe, um nome muito inspirador.

            – Ahn...

            – Sim, Stephen?

            Ela mesma confundira o tal corretor com Stephen no início, pois a semelhança era incrível. O mesmo corpo, os mesmos cabelos finos e castanhos com entradas na testa, o mesmo tom claro da pele macia, os mesmos olhos acinzentados... Espantosa coincidência, numa noite em que ela estava mal-humorada como nunca.

            – Acho que demorarei mais do que previa para preparar o seu banho, ma’am. O banheiro está ... um pouco cheio.

            – Está bem, Stephen.

            Uma american girl loira e risonha acompanhava o corretor nova-iorquino, ontem à noite. No problems. Nada que uma badgirl experiente de olhos vermelhos não pudesse resolver. Foi o que fez. Arrancou o sorriso daquele rostinho de comercial de dentifrício...

            Ma'am?

            – Hum?

            O mordomo não diria nem uma palavra a respeito do cadáver e isso a aborrecia. Como ele pode manter-se indiferente, se, mais do que um corpo, aquele era um retrato mórbido de si próprio, morto?

            – Este terno no cadáver...

            – Oh, você notou, dear?

            – Sim, creio que é um dos meus ternos.

            – Ah, sim, peguei emprestado para ajudar a construir uma pequena... ilusão.

            Apenas uma noite... Uma eternidade. Ontem à noite, ela fizera tudo o que não era permitido. Tudo o que era condenável... Mergulhara por inteiro na fantasia de ter Stephen só para si. Uma linda ilusão. Mas o cadáver no banheiro era real. Uma prova do perigo que uma vampira representa para um ser humano. Ilusões não costumam resistir a algo concreto como a fome de um predador. O corretor nova-iorquino fora um teste. O que aconteceria quando quisesse ter o verdadeiro Stephen? Seria o fim das ilusões?

            – Parece que a sua ilusão não fez muito bem a este rapaz, ma'am.

            – É preciso cuidado com as ilusões, dear.

            – Yes, ma'am, eu concordo.

            Maya viu um meio-sorriso no rosto do mordomo. Não estava mais inexpressivo. Só não sabia o que aquele rosto lhe dizia. Uncertain smile. A vampira também sorriu, mostrando os caninos afiados entre os seus lábios. Espinhos entre pétalas de rosas vermelhas. A música recomeçara.

            Stephen parecia tranquilo, espalhando os sais na água quente da banheira. Ela precisava planejar um meio de evitar que o mordomo se ausentasse, no futuro.

            Oh, sim... Desejava Stephen. Mas não perto demais. Predadores não podem se deitar junto às suas presas... Ou podem?

            Não importava. Hoje, não tinha fome. Hoje, era uma outra Maya, preparada para sobreviver a qualquer ilusão...

            A vampira deixou o robe cair sobre os seus pés. Suspirou de prazer. A água tépida e perfumada recebeu-a como um amante silencioso.

 

* Conto publicado originalmente na edição nº 03 do Ficzine, em 2004.