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8 de jul. de 2025

LINHA MORTAL

 


Por Clayton Alexandre Zocarato 

Linha Mortal – Uma Análise Filosófica, Gótica e Psicológica sobre a Culpa, Deus e o Limite da Razão – 35 anos depois

 

Linha Mortal de Joel Schumacher (1939 – 2020), de 1990, prova uma vertigem de mistura psicológica entre o que pode ser considerada “como irreal e real”.

Todavia a discussão “do real” encontra caminhos de uma liberdade individual que venha produzir psicologias de equívocos intelectuais, quanto a procedimentos de como a mente possa estar esgarçada dentro de parâmetros de se trabalhar uma intelectualidade, perante a medicina e a salvação do corpo, possa oferecer respostas para os mais variados tipos de dilemas humanos.

Julia Roberts (1967),  Kevin Bacon (1958),  Kiefer Sutherland (1966), William Baldwin (1963), Oliver Platt (1960)  esgarçam comportamentos de jovens estudantes, que confundem a busca da consagração do sucesso com seus traumas e segredos pessoais.

E se a mente humana tiver uma vontade própria que esteja além da aquiescência do livre arbítrio, e que também chega a um ponto de estruturas mentais perante o que pode ser entendido como sendo “algo ou alguém real”?

Um real que entra em um contato com a ideia de “deserto do real” de Slavoj Zizek (1949), que venha ocupar diâmetros para se trabalhar uma tipologia de cinema que possa tanto conter a esfera da memória dialética, contendo o “reflexivo como também repressivo”.

Schumacher faz uma análise em torno de como o princípio de memoria pode ao mesmo tempo trazer as lembranças para o crescimento individual de cada pessoa, como também se caminhar para uma ontologia, que passe para uma desconfiança da racionalidade.

Nesse ponto o personagem Nelson (Sutherland), é um desafio intrépido nos limites entre a vida e a morte, que dentro dos seus traumas do passado, deseja (in)conscientemente, tentar um tipo de redenção perante sua culpa.

Uma “culpa”, que segundo Freud (1856 – 1939), passa por um cotidiano, aos quais venha trazerem novos alvoreceres, de um esclarecimento metafísico em que todas as pessoas estão sujeitas para um tipo de “rizoma”, de que a “culpa”, é um sentimento lúdico que tenha a inconsistência de lembrar para o homo sapiens sua limitação perante a natureza.

Usando de David Hume (1711 – 1776), a inconsistência as natureza, faz com que cada “entendimento seja dialético, tanto no caminho material como mental”.

Em Linha Mortal transcorre um jogo frenético de sentimentos, que venham misturar, lamentos, com a formação de uma tipologia de mentalidade que não fique encarcerado no passado.

Dentro de um universo historiográfico o “passado de cada personagem, é um drama dos principais problemas da dita pós-modernidade, como a pornografia, o uso de drogas, a delinquência juvenil, o racismo”.

São elementos que realizam um drama psicossocial que ultrapassa o gênero cinematográfico do suspense, e se chega para uma análise em que o sombrio pode vim a revelar a face de problemáticas lacunas de uma integração mundialista que possa fazer da arte algo que seja sublime quanto ao esclarecimento de uma ética, que não esteja dentro de uma polímata interpretativa escancarada somente no visual.

Um visual, que eleva um laconismo, de nuanças quanto à interpretação contra um pragmatismo em se classificar a neurose ou a loucura como sendo exemplos de uma mesma tipologia humana. Tipologia, que passa por uma teoria do cinema, perante os sentimentos e segredos mais profundos da mente.

“A mente”, por si só já mente, o que deixa um caminho de liberdade, em que ser livre, é uma interrogação entre o quinteto do elenco principal, dividido, entre cumprirem com os procedimentos abjurados por Hipócrates (460  a.C - 370 a.C)  , “como também estão dentro da Caverna de Platão, quanto a ousar ir além do que suas premissas burocráticas e legais permitem”.

Brincar com os liames da morte, ou formar uma diacronia de enredos intelectuais que possa sedimentar uma engenhosidade de que para vida, a morte se faz como uma companheira inevitável que leva as pessoas para uma espiritualidade, que em certos momentos deseja está ainda no carnal?

A carne em meio às imagens do sacrifico do filho de Deus, que deu sua vida pela humanidade, dentro da doutrina cristã, mas que passa a ser desafiado pelo ceticismo da medicina.

De forma não explicita a medicina, é uma grande incógnita para a sua “mise em scéne”, pois é um tipo de saudosismo dos personagens, aos quais não há farmacologia que possa curar.

A solidão dos estudos, em meio ao erro de ter que abdicar da diversão em meio a uma humanidade que adoece precocemente.

A ansiedade de Rachel (Roberts), em tentar se livrar da memória do pai suicida e viciado, levanta temas como a sociedade do efêmero, como também a sociedade cansada, que está enlutada a não procurar maiores desafios.

Ou as atitudes racistas de Labraccio (Bacon), que se arrepende, mas deixa um gosto amargo de quem somente sofreu com a discriminação racial pode saber, o quanto é difícil lidar, com um “labor”, de exclusão que em determinados momentos tem um gosto pior do que a morte.

A morte, que docilmente caminha por entre as pessoas, procurando no momento correto revelar sua verdadeira face, aos quais engrandecem que desprezar a vida, seria uma carência em não se produzir reflexões, que viesse a combater uma massificação de que todas as pessoas vivem iguais, sem conter uma elevação de amadurecimento filosófico, que chegue a uma “microanálise”, perante que  cada ser-humano é um universo em especial a  vim ser explorado, perante uma ciência se  que confunde com  a arte, e que as vezes brinca com os sentimentos alheios mais profundos.

Segundo o escritor André Gide (1869 – 1951) “a volúpia em sentir o corpo ao limite, se mistura com a limitação em reduzir o poder da razão perante os piores dilemas humanos”, no caso de Linha Mortal tanto a razão como a emoção caminha lado a lado, fazendo da arte uma expressão de consolo perante a fragilidade do ser-humano, no mundo criado por Deus.

 E no caso a ciência só ocorrer pela vontade divina, e isso fica latente na cena final quando Labraccio  se desespera e questiona as vontades do criador mor, perante suposta morte de Nelson, o que leva a indagar acerca da sua posição, ateísta, que é uma mistura de sado-desejo em tentar acreditar plenamente na ciência, como também buscar uma consciência, que venha a conter uma inteligência que não venha julgar os erros da humanidade, mas sim,  possibilitar um caminho de redenção e afastamento da paixão da ignorância em nome do crescimento do saber claro e sucinto, contendo empatia e veracidade filosófica e empírica.

 “A mente, por si só, já mente.”

Essa frase — que poderia ser dita por Nietzsche (1844 – 1900), Lacan (1901 – 1981) ou por um dos cinco protagonistas de Linha Mortal.

Ambientado em um universo frio, entre mármores clínicos e sombras carregadas, o longa propõe uma pergunta perturbadora: e se a vida após a morte não for o fim, mas uma extensão do inconsciente?

Inspirado por vertentes góticas, filosóficas e com um subtexto teológico e psicanalítico denso, o filme ultrapassa o suspense científico e se insere num campo híbrido entre o existencialismo, o terror psicológico e a crítica, ao ideal de racionalidade médica.

O grupo de jovens médicos realiza experiências de quase morte, interrompendo suas funções vitais para acessar aquilo que o racionalismo científico se recusa a reconhecer: o além, ou ao menos o “inconsciente absoluto”.

Nelson, o líder da empreitada, flerta com a morte não por curiosidade médica, mas por culpa. Ele carrega o trauma de ter provocado o suicídio de um colega de infância, e vê na experiência limítrofe uma forma de expiação. Aqui, há um eco direto com Freud e o conceito de retorno do recalcado: os fantasmas que assombram Nelson não vêm de fora, mas de dentro.

A culpa assume forma corpórea, revelando a materialização do inconsciente. “A culpa é um lúdico existencial. Um lembrete da nossa limitação frente à natureza.”

Linha Mortal se aproxima da noção de “deserto do real”, explorada por Slavoj Žižek: os personagens retornam da morte, mas trazem consigo não verdades cósmicas, e espectros de suas repressões mais íntimas.

A morte não revela Deus; revela a si mesmo. Isso é radicalmente anti-cartesiano. Não se trata do “penso, logo existo”, mas do “sofro, logo sou culpado”. Essa experiência remete ao mito da Caverna de Platão (428/427 - 348/347 a.C.): os médicos saem da sombra, tocam o fogo da verdade e não suportam o que veem. Ao invés de iluminação, há cegueira.

À volta à vida não os purifica — os perturba. A luz não salva: queima. Linha Mortal pode ser com parada com Outras Obras cinematográficas como: "Solaris" (Tarkovsky (1932 – 1986), 1972): Tal como Linha Mortal, Solaris apresenta um espaço onde as memórias se corporificam e desafiam os limites do real. Ambas as obras tratam do inconsciente como campo de embate ético.

"O Iluminado" (Kubrick (1928 – 1999), 1980): O hotel de O Iluminado funciona como a mente de Jack Torrance. Em Linha Mortal, o hospital é a mente dos médicos. Nos dois filmes, a arquitetura abriga demônios interiores.

"A Origem" (Inception, 2010 de Christopher Nolan (1970): A viagem ao inconsciente, os múltiplos níveis de percepção e a ideia de culpa como motor narrativo também se fazem presentes, mas Linha Mortal é mais trágica: não há redenção sem dor. 

Conflito entre Ciência, Fé e Culpa.

Rachel, em busca de compreensão do suicídio do pai, simboliza a tensão entre fé e ciência. A Medicina, vista como novo sacerdócio moderno é incapaz de oferecer consolo diante da dor da perda.

 Não há remédio para a culpa, nem técnica para o luto. A cena em que Nelson "morre" e vê seus erros diante de si, enquanto o grupo tenta reanimá-lo, é uma paixão crística secular. Ele “desce ao inferno” de sua própria psique e retorna transformado. Mas a ressurreição aqui não é espiritual, é ética: ele precisa pedir perdão. Eis aqui uma releitura contemporânea do sacrifício redentor, mas sem transcendência: não há Deus intervindo, só a consciência pesando.

O Gótico Médico e a Solidão do Saber

A estética do filme, sombria, abafada, com luzes artificiais e corredores opressivos, evoca o gótico urbano. A Medicina — ciência da vida — se torna, ironicamente, um campo de necromancia moderna. Os estudantes de medicina não buscam salvar vidas, mas violar o sagrado: o limite entre morte e a consciência.

Oliver Platt, o único que não participa das experiências, representa a razão cínica, mas impotente. Ele observa, comenta, mas é incapaz de deter o avanço do delírio. A ciência assiste calada ao triunfo do desejo metafísico.

Deus, Culpa e Redenção 

O questionamento da existência de Deus permeia toda a narrativa, mas nunca de forma explícita. Quando um dos personagens diz “não sei se acredito em Deus, mas tenho medo dele”, o filme atinge seu ápice existencial: Deus é menos que uma crença, do que uma presença traumática.

A culpa é o rastro da ideia divina. Mesmo que Deus esteja ausente, o peso da Lei moral permanece. Como em Dostoiévsk (1821 – 1881): “se Deus não existe, tudo é permitido” — mas Linha Mortal responde: mesmo sem Deus, a culpa não perdoa.

A Morte como Espelho da Vida

Linha Mortal propõe que a experiência de quase morte não revela o além, mas aprofunda o aquém. A morte é o espelho daquilo que escondemos. A Medicina, enquanto ferramenta de verdade, colapsa diante da vastidão do desejo humano de transcendência. “Sentir o corpo no limite”, voltando a  André Gide, “é também sentir o limite da razão.”.

Joel Schumacher, longe de fazer apenas um suspense sobrenatural, entrega uma obra que desafia a racionalidade, interroga a fé e mergulha nos labirintos da mente como Dante Alighieri (1265 -  1321) desceu ao Inferno.

A redenção, aqui, não é um milagre — é um trabalho.

 E talvez o maior horror seja justamente esse: saber que ninguém escapará de si mesmo.

Outras Comparações Cinematográficas Possíveis:

“O Sexto Sentido” (1999) – de Manoj Nelliattu Shyamalan (1970) relata o contato com mortos como forma de expiação do passado.

“Donnie Darko” (2001) – de Richard Kelly (1975) mistura   física, metafísica e crise existencial adolescente.

“Stalker” (Tarkovsky, 1979) – o “soviético”, novamente, faz o desejo de conhecer o que está além da realidade revela apenas o vazio do próprio desejo.

Schumacher, realiza uma das mais intrigantes incursões cinematográficas sobre os limites da consciência humana e os abismos entre ciência culpam e espiritualidade.

Muito além de um simples suspense médico, o filme apresenta uma alegoria sombria e filosófica sobre a mente como um teatro de assombros, onde o passado retorna não como memória, mas como presença, como um Real pulsante e irredutível.

O seu enredo,  desafia os limites da vida ao induzir  a própria morte temporária, propondo  uma inversão radical da lógica científica,  não se tratando  de salvar vidas, mas de sondar o que existe além da existência física.

A morte deixa de ser um evento terminal e passa a ser, paradoxalmente, uma ferramenta de autoconhecimento — embora o que se descobre, na maioria das vezes, não seja sabedoria, mas trauma.

 Essa busca, impulsionada por um desejo narcisista de consagração — próprio da juventude médica, embriagada pelo poder de "tocar Deus" —, rapidamente se transforma em um processo regressivo, onde a mente revela sua face mais perversa: a culpa.

 Nelson é a síntese desse movimento: arrogante, messiânico e perturbado, conduzindo o grupo à transgressão,  com o mesmo fervor de um profeta herético.

 No entanto, seu impulso não é científico, é expiatório. A experiência de quase-morte não serve para investigar a verdade objetiva, mas para confrontar o trauma infantil de ter sido responsável, ainda que indiretamente, pela morte de um colega de infância.

O freudismo ecoa com força: o retorno do recalcado não é simbólico — é encarnado, alucinado. O inconsciente encontra, na experiência de quase-morte, a brecha perfeita para invadir a consciência com toda a carga de culpa, vergonha e desejo de redenção. A mente se torna campo de batalha entre razão e lembrança.

Essa dinâmica aproxima o filme da ideia lacaniana de que a verdade do sujeito está no ponto em que a linguagem falha — e onde o gozo do inconsciente emerge como real inassimilável. Linha Mortal dá forma a esse gozo. A morte, nesse contexto, não é transcendência, mas o colapso do eu.

Não há paz após o batimento final — há julgamento, revisitação, fragmentação.

A experiência de cada personagem pós-morte é marcada por um retorno de cenas traumáticas: Rachel confronta o suicídio do pai viciado, David revive o bullying cruel contra uma colega negra, Joe se depara com as mulheres que filmou secretamente em momentos íntimos.

 A “experiência científica” revela-se uma armadilha ética e emocional: o além não é um paraíso ou inferno, mas um espelho distorcido de tudo aquilo que os personagens se recusaram a confrontar em vida. A mente, como diz o próprio Nelson em certo momento, mente. Essa mentira não é moral — é estrutural.

O desejo humano de controle, de racionalização da existência, é posto à prova nesse filme. A medicina, com toda sua arrogância iluminista, mostram-se incapaz de curar os sintomas da alma. E aqui o filme revela sua verdadeira crítica: o saber técnico, por si só, é insuficiente. Não existe bisturi que corte a dor da culpa, nem anestesia para o peso dos erros cometidos.

Essa impotência da ciência frente ao espiritual ecoa o pensamento de David Hume, que, em sua crítica à causalidade, já sugeria que não há segurança absoluta nos processos mentais. O entendimento é uma ilusão da continuidade.

Linha Mortal propõe que o conhecimento adquirido através da morte é instável, não confiável, emocionalmente tóxico. Os jovens futuros médicos voltam do limiar da existência não como sábios, mas como fragmentos. Ao invés de revelações divinas, são confrontados com terrores internos.

É nesse ponto que o filme se aproxima mais ainda do conceito de “deserto do real”, proposto por Slavoj Žižek. A realidade, desnuda de suas ficções reconfortantes, revela-se desértica, árida, insuportável. O que vemos no filme não é o mundo dos mortos, mas o mundo nu da consciência humana em ruína. A linha entre vida e morte torna-se, portanto, uma metáfora para a própria linha entre o sujeito e o outro, entre a memória e o delírio, entre a fé e a ciência.

A estética do filme reforça esse aspecto: corredores escuros, luzes frias, arquitetura taciturna, e atmosferas carregadas de simbolismo religioso. As imagens evocam a culpa cristã, o sofrimento como via de salvação, a cruz carregada pela modernidade. Nelson é um Cristo torturado não por pecados alheios, mas pelos seus. Rachel é uma Maria que não perdoa o pai nem a si mesma.

Cada personagem carrega sua cruz particular, e todos eles encaram a morte como um batismo invertido, um retorno às trevas. Há, também, uma leitura possível a partir da teologia negativa: Deus, aqui, está ausente, mas a ausência não é vazia — é insuportável. A fé é substituída por um niilismo clínico. Quando Labraccio questiona a existência divina ao ver Nelson entre a vida e a morte, o faz não como crente, mas como alguém à beira do colapso.

A ciência é sua bengala — mas essa bengala quebra sob o peso da dúvida. Não há conforto metafísico, apenas a possibilidade de perdão humano. O filme, nesse sentido, aposta numa ética da responsabilidade: só se encontra redenção ao pedir perdão ao outro, não a Deus.

No entanto, Linha Mortal se diferencia por seu pessimismo radical: não há transcendência. A vida após a morte não liberta — aprisiona ainda mais. O filme termina com uma tentativa de resgate de Nelson. Ele precisa “morrer de novo” para renascer. Esse renascimento não é um retorno triunfal, mas um gesto mínimo de reconciliação consigo mesmo.

 A medicina, por fim, serve apenas como instrumento da ética: ela revive o corpo, mas cabe ao sujeito resgatar sua própria alma — se for capaz. O que Schumacher realiza é uma crítica da razão clínica em tempos de pós-modernidade. Seus personagens são ícones de uma geração cindida entre saber técnico e vazio existencial, entre arrogância científica e necessidade de consolo espiritual. Não há cura possível para os males da alma sem o confronto radical com o passado, com o outro, com a culpa.

Nesse sentido, é também um filme sobre a adolescência estendida, sobre a recusa em amadurecer emocionalmente, sobre a ilusão de que se pode controlar o que não se conhece. É um drama da pós-modernidade, onde o sujeito não encontra mais consolo na religião, na ciência, nem na arte — mas apenas na coragem de pedir perdão. E isso, no fundo, talvez seja o que nos torna verdadeiramente humanos.

Joel Schumacher, criou mais que um suspense sobre experiências de quase-morte — construiu uma alegoria sombria, filosófica e visceral sobre os abismos da mente humana. Aparentemente circunscrito à trama de cinco estudantes de medicina que decidem provocar paradas cardíacas em si mesmos, para investigar o que existe após a morte, o filme mergulha, na verdade, numa região muito mais complexa: a da culpa, da memória, da falência da razão moderna e da tensão entre fé e ciência.

O que se anuncia como experiência científica logo se revela como um ritual quase metafísico, onde os personagens, ao “viajar” além da vida, são obrigados a confrontar com o que deixaram mal resolvidos nela — seus pecados, traumas, vergonhas, silêncios. O resultado é uma obra que opera entre o gótico e o psicanalítico, o clínico e o espiritual, colocando em suspensão qualquer noção confortável de realidade. Nelson é o arquétipo do médico moderno tomado por um narcisismo de vocação messiânica. Sua busca por experimentar a morte parte menos de uma inquietação científica do que de um desejo de expiação inconsciente: ele carrega a culpa da “caveira com capuz preto e foice”, e se vê no contato com o além uma forma de redenção. Ele não deseja saber, deseja ser perdoado.

 Essa cisão entre o discurso da ciência e a demanda subjetiva que o sustenta revela, já no início, o campo de contradições onde o filme se instala. A medicina aqui não é neutra: é veículo de angústia, pretexto para a culpa vir à tona.  E se a mente humana, como ele mesmo afirma em certo ponto, mente por si só, a racionalidade não é bastião, mas campo minado. Cada um dos jovens médicos que participa da experiência carrega seu próprio fantasma.

O que se vê, então, é que a morte, longe de ser transcendência, revela o retorno do recalcado — conceito freudiano que ganha contornos físicos e alucinatórios no filme. O inconsciente, em vez de ser apenas linguagem, ganha carne, rosto, voz.

Linha Mortal é um planeta solo, revivendo as memórias traumáticas dos protagonistas como forma de confrontá-los com seus próprios limites emocionais. A diferença é que aqui, a medicina substitui a tecnologia como linguagem do sagrado: um saber técnico que se transforma, aos poucos, em necromancia racionalizada. E, ainda que nunca se fale diretamente em Deus, a estrutura narrativa do filme é essencialmente cristã: há culpa, há sofrimento, há confissão, e há um desejo profundo de redenção.

Só que a redenção aqui não se dá por graça divina, mas por confronto ético e pessoal. Nelson precisa morrer de verdade para finalmente assumir a responsabilidade pelos seus atos e pedir perdão — não a uma entidade superior, mas ao outro, ao humano, ao que foi ferido.

Nesse ponto, começa a dialogar com um existencialismo sombrio, onde a liberdade humana é, ao mesmo tempo, uma dádiva e um fardo insuportável. Como diria Sartre, estamos condenados à liberdade. O filme sugere que, ao tocarmos a morte, não encontramos Deus nem paraíso, mas apenas a face obscura de nossas próprias decisões.

 A culpa, é um sentimento lúdico-existencial que não apenas marca o erro, mas denuncia a consciência da finitude. A culpa nos humaniza, e talvez seja por isso que todos os personagens só passam a se tornar verdadeiramente humanos depois de morrer. Ao cruzar a fronteira da vida, perdem o orgulho, a arrogância e a negação — e voltam não como heróis, mas como sujeitos destroçados pela lucidez. O que há é um excesso do real — o trauma, o erro, o que não se apaga com bisturi.

 Nesse sentido, a estrutura clínica da narrativa se desfaz, e o filme se transforma em uma fábula psicanalítica e teológica onde o hospital é catedral, a cirurgia é confissão, e a reanimação é batismo invertido. Não é por acaso que toda a direção de arte se ancora em elementos góticos: corredores escuros, mármores pesados, luzes frias que parecem mais saídas de uma cripta do que de um hospital.

A medicina, em Linha Mortal, é um saber cercado de morte por todos os lados — e incapaz de responder às grandes questões que provoca.

A estética do filme, aliás, revela essa tensão entre racionalismo e transcendência de maneira precisa. Os personagens circulam por espaços apertados, sempre à noite, com reflexos metálicos e sombras engolindo os corpos. É como se a luz — símbolo da razão — estivesse permanentemente em crise, em suspensão.

 Os protagonistas estão presos entre dois mundos: o da ciência objetiva, que falha ao explicar a subjetividade; e o da fé, que não se manifesta. E é nesse vácuo que a experiência da quase-morte acontece: não como revelação mística, mas como catarse psíquica. A religião está ausente, mas o desejo por redenção permanece. Como se, mesmo num mundo pós-moderno e cético, o ser humano ainda desejasse ser perdoado por algo, mesmo que não saiba mais por quem. Por isso, a medicina é mostrada não como resposta, mas como tentativa frustrada de domesticar o insólito. Os cinco jovens médicos não têm domínio sobre a morte — apenas arrogância. E ao desafiar o que há de mais sagrado, pagam o preço com a própria sanidade.

Joe Hurley (Baldwin), ao ver seu mundo ruir sob a acusação das mulheres que enganou, clama por Deus não em fé, mas em desespero. Sua racionalidade não dá conta do vazio que o confronta. O ateísmo pragmático dos personagens, ao ser confrontado com as consequências emocionais de seus atos, se mostra frágil. É como se todos eles percebessem que a culpa exige um horizonte ético maior do que a técnica permite. E, no final, o que resta não é um manual científico, mas um gesto humano: pedir perdão, encarar a dor, aceitar a falha.

Linha Mortal afirma que não existe conhecimento verdadeiro sem dor. A única forma de seguir adiante é olhar para trás, reconhecer o erro, e transitar entre as sombras.  Não se trata de descobrir o que há depois da morte, mas de aprender a viver com o que a vida deixa mal resolvida.

 A morte, aqui, não encerra:  se revela. Expõe. Obriga. Por isso, o filme não busca solucionar o mistério — ele o aprofunda. E ao fazê-lo, nos obriga a reconhecer que não há ciência capaz de extinguir o peso das escolhas malfeitas, nem fé que absolva sem verdadeiramente reconhecer a culpa. Talvez seja por isso que Linha Mortal continua sendo uma obra relevante, apesar do tempo. Porque fala de algo que atravessa todas as épocas: a tensão entre razão e sentimento, ciência e fé, erro e perdão. E porque nos lembra, com sua estética gótica e sua psicanálise implícita, que o maior horror não está na morte em si, mas na impossibilidade de fugir de quem somos — mesmo depois dela.


10 de jan. de 2024

SANATÓRIOS

 

Por Clayton Alexandre Zocarato

 

Por aqueles corredores sinistros, muitas vidas foram mitigadas a ser somente um resquício de dignidade, sendo os barulhos e gritos de eletrochoques algo de muito costumeiro.

Muitos dos seus internos foram classificados como a vergonha da família, e para não manchar a ilibação de suas tradicionais e hipócritas posturas eugênicas dentro da sociedade civil enviavam todos os "seus filhos imperfeitos", para aquele confinamento  humano miserável e execrável.

Não havia nenhuma  piedade ou clemência, somente uma sensação de que a loucura ali permaneceria para sempre, sem nenhum tipo de misericórdia, e pelo qual também não caberia qualquer tipo de misericórdia ou compaixão.

Muitos experimentos foram feitos, ressuscitando alcunhas monstruosas  do Doutor Josef  Mengele, e que em nome da ciência vieram a trazerem muitos infortúnios perante uma ética da ciência, que pudesse tratar todas aquelas pessoas com alguma ternura.

Ética pela qual, muitos de seus “pseudo-doutores”, tratavam a maioria dos pacientes  com uma irracionalidade beirando o animalesco.

Os Sanatórios recebiam (e ainda recebem!)  de tudo.

Bastardos, Filhos e Filhas com vícios em entorpecentes, dementes, esquizofrênicos, grávidas em tenra idade, velhos caducos e debilitados que as famílias  desejam  se livrarem  a todo custo, desfigurados corporais, bandidos de todas as estirpes, psicóticos, esquizofrênicos, intelectuais subversivos, presos políticos...

O cardápio de aberrações e injustiças  são e eram  diversificados.

Ficavam aquartelados por entre seus terrores reais e fabricados por psico-fármacos, estando solitariamente  mercê de algum tipo de piedade, mas que com a brevidade o longevidade de suas vidas,  em muitos casos a revelia  da vontade dos “seus cuidadores e tratores”,  sendo a morte   um alento, perante tanto desalento e abandono.

Todavia, a fidelidade  de seus algozes eram pontuais.

Para aperfeiçoar suas experiências a burocracia dos seus cotidianos,  criavam todo o tipo de tortura, desde o uso de ratos a serem transportados para minúsculas salas com pacientes tendo que dividir seus espaços com moribundos, que desejavam mesmo dentro de sua demência,  saírem daquele estado humanos  paupérrimo pelos quais ainda se olhavam dentro de si mesmo como sendo um dia retrato de um ser humano, como uso de jatos d’água em noites frias, e depois serem alojados em espaços taciturnos contendo o frio como uma companhia constante.

Os sanatórios são  um peremptório de distúrbios, em acusarem,  que algumas parcelas dos homens falharam na sua condição dialética, de auferir algum tipo de conhecimento que assim viesse a respeitar todas as nossas  diferenças.

Diferenças essas que eram revertidas,  para um mar de indiferenças, que viessem assim a rastejarem,  alguma tipologia de compaixão, para os esquecidos, os banidos, os vadios, os feios, os patéticos, os sonhadores, os delirantes, os utopistas, os idealistas.

Tudo junto e misturado, mas que de certa maneira estavam configurados para uma ontologia de esquecimentos, que assim pudessem trazerem,  algum tipo de juramento sem nenhum lamento, mas que aos poucos eram revestidos de excrementos de discórdias para assim salientarem  uma paixão pelo prazer de alcançar o que possa de sentenciar como sendo  proibido.

Esse proibido é um fato, tentar convencer dos “ditos loucos sãos” que a humanidade pousa de sanidade, mas no fundo se envergonha dentro de suas mentalidades doentes, almejando a procura de vantajosos procedimentos de esfacelarem a bondade, que em determinados momentos, está subvertida por um nefasto sentimento de moralismo mecânico.

Moralismo, permutado em ativismos, que suplantam um amor universal, que se perde pelas alcunhas de um tempo, que se conflua em personagens que na maioria das vezes canta lúdicos sentimentos de uma compaixão, que está somente atrevida aos desejos egoístas mais profundos.

Os Sanatórios silenciosos, seriam  oratórios falaciosos?

No final, tudo  se torna ocioso...

E mentiroso...

Entre confissões burocráticas recheadas, na admissão de uma sujeição que se possa de fato se  colocar no lugar do próximo, seus funcionários pensam mais em se livrarem de suas “meta-obrigações”, que assim possam perpassarem  sentimentos de uma ética de respeito pelas pessoas enjauladas  e esquecidas, onde sua dignidade é testada cada momento.

Os Sanatórios ...

Oráculos diabólicos, para testarem, uma humanidade que veste a armadura dos bons hábitos, mas que no fundo dos seus sentimentos mais profundos, fantasiam,  uma demência sucinta na docilidade  aceitar o que seja taxado como  diferente.

No cotidiano de sua  hipocrisia, em realizar discursos ao ar livre, que venham contemplar a aceitação de todos os seus membros, está um vaticínio implacável, em não querer incomodar as pessoas “normais”, mas que deixa um marasmo egoísta  de boas maneiras, pelas quais vão se  abrindo passagens filosóficas  em que  “tudo deve ser aceito”, gerando um grande pleito de hipocrisias, que assim são sublimes, em não externalizar,  seus sentimentos mais egoístas, em nome de uma paz social, que apenas vem reproduzir momentos de uma falsa empatia.

Os Medos, dentro dos Sanatórios, sejam eles  em qualquer região que estejam localizados,  esgarçam mágoas , em balbuciam  que “ainda não estamos acostumados com o diferente”.

Um diferente, que precisa a cada instante ser reinventado, para uma compensação de sensatez, onde os doidos varridos são sacudidos por uma culpabilidade, em não terem sidos banhados com uma normalidade banal, que tem  seu espiritual  esquecido, em nome de algum bem material qualquer.

A loucura com o terror, geram cárceres mentais aos quais a sua  libertação para realidade somente se torna um caminho,  para amenizarem  suas dores mais profundas  dentro de sua  alma, que venham  assim realizarem metafísicas para um comprometimento, entre o que seja estar na sanidade, como na infantilidade egoísta de construírem  amarras de benfeitorias disfarçadas, em desgraças, que são comiseradas com falsas promessas de bem comum.

Sanatórios são recheados de falatórios de igualdades  baratas, que subvertem a humanidade a procurar uma sanidade, que em meio ao seu caos comportamental, produz esquizofrenias coléricas, disseminadas por entre um passado de proteção a civilidade humanística, estando  submetida  há um  conluio, com os mais dantescos  arquétipos de exclusões entre culturas de polivalentes naipes.

Não existe um local específico para o terror...

Toda a sua flâmula, transcorre para uma alienação constante, onde os subterrâneos de interpretações  da mente,  ficam atrelados para um falsificacionismo, quanto à importância a se propiciar, que  para cada tempo e acontecimento histórico, se possa organizar um esclarecimento para diferentes  figuras de lamentos do ser – humano.

O Sanatório mais cruel...

A escravidão de si mesmo...

As pessoas vivem, querendo ser, o que não direito de ser, mas que julgam problematizar o que deveria ser simples...

Bem, a mente humana não é simples, mas está  prontificada para alimentar os mais polivalentes e pragmáticos tipos de ilusões.

Ser iludido não é nenhum pecado, porém produz muitos desagrados, em meio a preconceitos de que ser classificado “normal” é fundamental para  alimentar diretrizes de inteligências pulsantes  na elaboração de andrajos  em  alçar voos rumo ao desconhecido, que se vai fabricando diferentes maneiras de se interpretar a loucura.

Loucura com maluquice...

Amor com desafeto...

Desamor com rancor...

Normalidade com falsidade...

Crueldade com melancolia...

Afinal de contas, o que é  ser normal de fato? Enquanto tudo parece anormal?

A vida é uma experiência continua de adversidades, que consolidam verdades cambaleantes.

Talvez o maior sanatório, seja não saber o que fazer com a liberdade,  que alguns pensam estarem usufruindo.

Entre drogas e prazeres, uma boa parte das pessoas se perdem,  em enxergarem unicamente o próprio umbigo, bebericando o cálice ininterrupto de caluniar atos  de bondade pura e plena, que são diagramados para realizarem um peso de patéticos eufemismos de aceitação de um ser humano pelo outro...

Mas qual seria a natureza de toda a racionalidade?

Estaria ela camuflada, em uma loucura sem fim, em viver unicamente para se portar como sendo normal, perante múltiplas aberrações?

Os sanatórios escondem sentimentos que são alçados em determinados momentos a escancarar solidões, que são romantizadas como algo sendo normalizador?

E assim, vão usufruindo,   de suas  loucuras particulares, como alimentos para psicoses que são efervescentes e dementes, em monstruosidades congênitas feitas sobre encomenda,  para uma intromissão mental precária,  em se faça uma  esperança de  paz,  coletiva fraca, mas muito eloquente, em realizar novas conjecturas de psiques dormentes.

Entre os dentes sujos, se pronunciam ruídos de socorro, aos quais a humanidade finge que  está tudo  bem, cometendo suicídios de carinhos, aumentando uma exclusão, que não abrem brechas para nenhum ato paliativo.

Os cafés de seus funcionários esfriam.

A agonia dos pacientes só aumenta.

O esquecimento e o abandono são suas companhias diárias.

Já não há,  se quer,  raiva ou algum ressentimento.

Tudo já foi institucionalizado.

Sacralizado, amordaçado, medicado, encarcerado, humilhado, trancafiado, amedrontado, amaldiçoado, execrado, exilado, massificado, atomizado, dizimado, assassinado.

Existem sanatórios, para todos os tipos de emoções e desrazões.

Expressões faciais  amarelada s, corpos fracos, almas em cacos.

Sanatórios, Sanatorium,

“Fundamentum eius legalisticum, contrariis cum re sua própria”...

 

  

NOTA DO AUTOR: Dedico esse conto aos Professores Doutores Sidney Jorge Barbosa e Lúcia Maria de Assunção Barbosa da Universidade Nacional de Brasília, pela sua hospitalidade e afeto, não tenho palavras para descrever minha gratidão e admiração.

3 de dez. de 2023

REFRESCO MORTAL

 

Por Clayton Alexandre Zocarato

 

 

Mar Mediterrâneo – Próximo a Atenas – 146 a.C.

 

A galera romana navegava próxima ao Porto de Atenas.

Estava há dias no mar, e seus soldados, como seus  marinheiros estavam exaustos.

A força dos seus remos não era suficiente para empurrar a embarcação rústica, e já em  grau considerável  de decomposição.

Nemestrino era um comandante com vasta experiência dentro da marinha romana.

Já tinha participado de muitas campanhas e combates, mas sabia que aquele sinal de desdém perante o lar de Poseidon, em ficar praticamente à deriva por vários dias, semanas,  tinha algo de incomum.

A águas estavam furiosas, a tripulação faminta, e a alimentação estava escassa.

A cólera avançava de forma abrupta e impiedosa.

Olhava  para o horizonte, e tinha seu pensamento em encontrar alguma embarcação grega e assim fazer daquele marasmo, algo que pudesse lhe devolver a habilidade de  lutar com destreza,  e combater de forma violenta  os  “bárbaros”, e assim honrar sua terra e assim poder voltar para os portões de Roma como herói do império.

Sonhava com o dia ao qual seria conduzido por Pretores, como sendo o articulador de uma nova Armada, ao  poria fim de uma vez aos  helênicos.

Todavia sabia que por aquelas águas,  várias embarcações já haviam desaparecido de forma misteriosa.

Alguns diziam que aquela região era habitada por criaturas, metade humana e metade peixe, e que com seu canto infernal,  pudesse atrair, marinheiros para suas profundezas e assim alimentarem de seus fluidos, e conservar suas almas no mais remoto reduto de escuridão possível.

Nemestrino, com um odor apavorante, e tendo a companhia frenética de mosquitos, assim caminha para o centro de seu barco.

Fita todos com frieza.

Sabe bem que o risco de um motim é eminente.

Ordena a seu assistente que coloque todos em atenção, para ouvirem sua fala.

- Caros irmãos romanos. Gloria e Poder eterno a nossa querida Roma. Que assim, nossa missão possa ser cumprida em todo esplendor, e que nada e ninguém nos detenha de conquistar a terra de Zeus.

Navegando lentamente, o capitão comanda sua embarcação com mãos de ferro.

Tudo era uma contemplação para se chegar a conquistar o intuito de levar todo o lucro para o Império.

Porém ao horizonte, vozes vinham como uma frota de prontidão para lutar,   rompendo  todos os obstáculos, para assim saciar uma sede vingança inexpugnável.

Um canto atroz.

Um pouco feroz.

Repleto de vozes...

Procurando novos algozes.

Nemestrino sai da sua sala  de comando.

Caminha por entre seus remadores, e vê muitos rostos cheios de temores, mas não abaixa sua guarda.

Chama um de seus comandantes.

- Soldado. O que é essa cantoria? Tem alguma ideia do que seja isso? E quem está tirando a paz de meus homens?

- Senhor! Isso pode ser classificado como o poder das sereias. Não tenho muito esclarecimento sobre isso, mas ouvi algumas pessoas dizerem que no meio de seu mergulho, por essas águas,  ocorre muito sofrimento, e aqueles que são arrastados  por elas jamais regressam.

Nemestrino caminha de um lado para o outro.

Durante aquele dia todo, ficou em volta de seus pensamentos  , dançando freneticamente angústias a  horas afins, buscando na sua  razão, algum tipo de explicação para tudo aquilo.

- Sereias? Mais uma tola maldição lançada por esses malditos gregos, para assim conseguirem parar as chances do Imperador, de conquistar suas ricas terras.

No entardecer, colocou toda sua tripulação em alerta máximo.

Na madrugada se tornou o canto,  mais agudo.

Os vigilantes estavam com muito medo, e faziam suas funções de vigilância e suas  sanidades ficassem ainda mais comprometidos.

As águas estavam condenadas pelas brumas da escuridão, mas lentamente suas moléculas foram sendo atravessadas por diferentes tipos de seres, balançando suas caudas, e que estavam suculentas por ouvirem gritos de desespero e pavor.

Seus gingados traziam um ódio abissal, desejando se vingarem daqueles que estavam destruindo seus conterrâneos.

Por entre cantos de uma leveza e tonicidade alucinante, estava o desejo de destruição, e de levarem todos àqueles para as profundezas de suas águas sem nenhum tipo, de piedade ou clamor.

As sereias estavam enfurecidas.

Queriam muito mais que lhes dar um refresco.

Realizariam uma carnificina marítima, que levassem esses homens, para um gozo de dor, onde suas almas ficariam para sempre empaladas sem nenhum tipo de clemência, ouvindo gritos de sufocamento, com seus pulmões sendo revestidos de águas, até chegarem as suas bocas.

Isso seria uma forma de suplício para aqueles, que só pensam em cobiça, e que em torno da ambição de seus corações, postergam a igualdade perante os homens.

As donzelas da perdição começam a subirem por entre a galera, e com sua astúcia, vão lentamente abraçando os marujos de Reno e Rômulo, e os transportando para as profundezas.

O mergulho dessa noite, seria  mais do  que refrescante.

Vai passar a ser mais uma morada dos infiéis, aos quais irão fazer companhia para Hades, e estarão em um labirinto de medo sem fim, como o Minotauro.

Os alaridos de suas canções de destruição avançam sem precedentes, levando incertezas de salvação, para uma perdição sem fim.

As sereias não se conformaram com pouco.

A matança dessa noite foi significativa.

Seu coro de sangue foi enaltecido com agudos sentidos de uma inteligência buscando almejar, uma paz, não sendo  ela plenamente  verdadeira.

A única verdade sensitiva será a destruição.

Uma humilhação esplêndida, de que mitos podem vim a se tornarem verdades em alguns momentos.

Mergulhos de ódio,  em  fazer o ser humano pagar por sua ingratidão espiritual.

Uma ontologia de medo, lapidada na destruição da ética.

A beleza feminina, sendo austera perante um mundo de homens, que só detinham na força física, alguma existência que viesse despertar uma consciência que viesse a dar conta de suas miserabilidades, em deixar seu egocentrismo e  de que pelo poder das armas poderia se conseguir de tudo.

Depois, de terem levados todos os homens para as mais ignóbeis profundezas, Nemestrino saiu do seu diálogo, com Morfeu.

O teatro do horror, já havia composto toda a sua trama de perdição, e o comandante estava agora enfrentando sua Abjuração.

Olho para o vazio, as águas estavam calmas.

Remos, copos, pratos, todos espalhados, por entre a madeira contendo gosto de sal.

Fica perdido por entre seus pensamentos.

Suas memórias estão borbulhantes...

Com muito esforço, quebra o claustro noturno.

- Talassa apareça? Deixe de jogos? Sei que é você? Se quer, meu sangue venha me buscar logo?

Um splash, e uma sereia cor de esmeralda salta diante de si, contendo cabelos em tom ensolarado reluzente, com um tridente brilhoso, e olhos amedrontadores.

- Até que enfim, exaltou meu nome Nemestrino!

- Bem aqui estou não vou mais fugir.

- Sempre observei e sei bem o que é o orgulho de um velho desbravador das minhas águas. Você derramou muito sangue, por essas rotas, e agora terá que pagar por isso.

Nemestrino vendo que sua navegação pelo mar da vida terrena, estava se encerrando, alarde um suspiro tedioso e triste.

- Calou-me, por todo esse tempo, e agora ainda zomba de mim. Talvez eu,  mereça esse refresco de morte mesmo. Não vou pestanejar, me  leve consigo.

Talassa em uma voz de pouco caso responde.

- Não irás comigo, e também não te levarei para lugar algum. Só apareci para dizer, que o iludi, e que seu castigo será saber, que toda a sua dedicação para esse maldito Império de nada adiantou. Acreditou mesmo que és tão importante assim? Se quisesse,  já estaria morto há tempos.

        A galera continua seu viajar à deriva e Nemestrino seria para sempre, até o fim dos seus dias espectador privilegiado dos mais belos cantos diferidos pelas sereias mais cruéis e belas do Mediterrâneo.