8 de jul. de 2025

LINHA MORTAL

 


Por Clayton Alexandre Zocarato 

Linha Mortal – Uma Análise Filosófica, Gótica e Psicológica sobre a Culpa, Deus e o Limite da Razão – 25 anos depois

 

Linha Mortal de Joel Schumacher (1939 – 2020), de 1990, prova uma vertigem de mistura psicológica entre o que pode ser considerada “como irreal e real”.

Todavia a discussão “do real” encontra caminhos de uma liberdade individual que venha produzir psicologias de equívocos intelectuais, quanto a procedimentos de como a mente possa estar esgarçada dentro de parâmetros de se trabalhar uma intelectualidade, perante a medicina e a salvação do corpo, possa oferecer respostas para os mais variados tipos de dilemas humanos.

Julia Roberts (1967),  Kevin Bacon (1958),  Kiefer Sutherland (1966), William Baldwin (1963), Oliver Platt (1960)  esgarçam comportamentos de jovens estudantes, que confundem a busca da consagração do sucesso com seus traumas e segredos pessoais.

E se a mente humana tiver uma vontade própria que esteja além da aquiescência do livre arbítrio, e que também chega a um ponto de estruturas mentais perante o que pode ser entendido como sendo “algo ou alguém real”?

Um real que entra em um contato com a ideia de “deserto do real” de Slavoj Zizek (1949), que venha ocupar diâmetros para se trabalhar uma tipologia de cinema que possa tanto conter a esfera da memória dialética, contendo o “reflexivo como também repressivo”.

Schumacher faz uma análise em torno de como o princípio de memoria pode ao mesmo tempo trazer as lembranças para o crescimento individual de cada pessoa, como também se caminhar para uma ontologia, que passe para uma desconfiança da racionalidade.

Nesse ponto o personagem Nelson (Sutherland), é um desafio intrépido nos limites entre a vida e a morte, que dentro dos seus traumas do passado, deseja (in)conscientemente, tentar um tipo de redenção perante sua culpa.

Uma “culpa”, que segundo Freud (1856 – 1939), passa por um cotidiano, aos quais venha trazerem novos alvoreceres, de um esclarecimento metafísico em que todas as pessoas estão sujeitas para um tipo de “rizoma”, de que a “culpa”, é um sentimento lúdico que tenha a inconsistência de lembrar para o homo sapiens sua limitação perante a natureza.

Usando de David Hume (1711 – 1776), a inconsistência as natureza, faz com que cada “entendimento seja dialético, tanto no caminho material como mental”.

Em Linha Mortal transcorre um jogo frenético de sentimentos, que venham misturar, lamentos, com a formação de uma tipologia de mentalidade que não fique encarcerado no passado.

Dentro de um universo historiográfico o “passado de cada personagem, é um drama dos principais problemas da dita pós-modernidade, como a pornografia, o uso de drogas, a delinquência juvenil, o racismo”.

São elementos que realizam um drama psicossocial que ultrapassa o gênero cinematográfico do suspense, e se chega para uma análise em que o sombrio pode vim a revelar a face de problemáticas lacunas de uma integração mundialista que possa fazer da arte algo que seja sublime quanto ao esclarecimento de uma ética, que não esteja dentro de uma polímata interpretativa escancarada somente no visual.

Um visual, que eleva um laconismo, de nuanças quanto à interpretação contra um pragmatismo em se classificar a neurose ou a loucura como sendo exemplos de uma mesma tipologia humana. Tipologia, que passa por uma teoria do cinema, perante os sentimentos e segredos mais profundos da mente.

“A mente”, por si só já mente, o que deixa um caminho de liberdade, em que ser livre, é uma interrogação entre o quinteto do elenco principal, dividido, entre cumprirem com os procedimentos abjurados por Hipócrates (460  a.C - 370 a.C)  , “como também estão dentro da Caverna de Platão, quanto a ousar ir além do que suas premissas burocráticas e legais permitem”.

Brincar com os liames da morte, ou formar uma diacronia de enredos intelectuais que possa sedimentar uma engenhosidade de que para vida, a morte se faz como uma companheira inevitável que leva as pessoas para uma espiritualidade, que em certos momentos deseja está ainda no carnal?

A carne em meio às imagens do sacrifico do filho de Deus, que deu sua vida pela humanidade, dentro da doutrina cristã, mas que passa a ser desafiado pelo ceticismo da medicina.

De forma não explicita a medicina, é uma grande incógnita para a sua “mise em scéne”, pois é um tipo de saudosismo dos personagens, aos quais não há farmacologia que possa curar.

A solidão dos estudos, em meio ao erro de ter que abdicar da diversão em meio a uma humanidade que adoece precocemente.

A ansiedade de Rachel (Roberts), em tentar se livrar da memória do pai suicida e viciado, levanta temas como a sociedade do efêmero, como também a sociedade cansada, que está enlutada a não procurar maiores desafios.

Ou as atitudes racistas de Labraccio (Bacon), que se arrepende, mas deixa um gosto amargo de quem somente sofreu com a discriminação racial pode saber, o quanto é difícil lidar, com um “labor”, de exclusão que em determinados momentos tem um gosto pior do que a morte.

A morte, que docilmente caminha por entre as pessoas, procurando no momento correto revelar sua verdadeira face, aos quais engrandecem que desprezar a vida, seria uma carência em não se produzir reflexões, que viesse a combater uma massificação de que todas as pessoas vivem iguais, sem conter uma elevação de amadurecimento filosófico, que chegue a uma “microanálise”, perante que  cada ser-humano é um universo em especial a  vim ser explorado, perante uma ciência se  que confunde com  a arte, e que as vezes brinca com os sentimentos alheios mais profundos.

Segundo o escritor André Gide (1869 – 1951) “a volúpia em sentir o corpo ao limite, se mistura com a limitação em reduzir o poder da razão perante os piores dilemas humanos”, no caso de Linha Mortal tanto a razão como a emoção caminha lado a lado, fazendo da arte uma expressão de consolo perante a fragilidade do ser-humano, no mundo criado por Deus.

 E no caso a ciência só ocorrer pela vontade divina, e isso fica latente na cena final quando Labraccio  se desespera e questiona as vontades do criador mor, perante suposta morte de Nelson, o que leva a indagar acerca da sua posição, ateísta, que é uma mistura de sado-desejo em tentar acreditar plenamente na ciência, como também buscar uma consciência, que venha a conter uma inteligência que não venha julgar os erros da humanidade, mas sim,  possibilitar um caminho de redenção e afastamento da paixão da ignorância em nome do crescimento do saber claro e sucinto, contendo empatia e veracidade filosófica e empírica.

 “A mente, por si só, já mente.”

Essa frase — que poderia ser dita por Nietzsche (1844 – 1900), Lacan (1901 – 1981) ou por um dos cinco protagonistas de Linha Mortal.

Ambientado em um universo frio, entre mármores clínicos e sombras carregadas, o longa propõe uma pergunta perturbadora: e se a vida após a morte não for o fim, mas uma extensão do inconsciente?

Inspirado por vertentes góticas, filosóficas e com um subtexto teológico e psicanalítico denso, o filme ultrapassa o suspense científico e se insere num campo híbrido entre o existencialismo, o terror psicológico e a crítica, ao ideal de racionalidade médica.

O grupo de jovens médicos realiza experiências de quase morte, interrompendo suas funções vitais para acessar aquilo que o racionalismo científico se recusa a reconhecer: o além, ou ao menos o “inconsciente absoluto”.

Nelson, o líder da empreitada, flerta com a morte não por curiosidade médica, mas por culpa. Ele carrega o trauma de ter provocado o suicídio de um colega de infância, e vê na experiência limítrofe uma forma de expiação. Aqui, há um eco direto com Freud e o conceito de retorno do recalcado: os fantasmas que assombram Nelson não vêm de fora, mas de dentro.

A culpa assume forma corpórea, revelando a materialização do inconsciente. “A culpa é um lúdico existencial. Um lembrete da nossa limitação frente à natureza.”

Linha Mortal se aproxima da noção de “deserto do real”, explorada por Slavoj Žižek: os personagens retornam da morte, mas trazem consigo não verdades cósmicas, e espectros de suas repressões mais íntimas.

A morte não revela Deus; revela a si mesmo. Isso é radicalmente anti-cartesiano. Não se trata do “penso, logo existo”, mas do “sofro, logo sou culpado”. Essa experiência remete ao mito da Caverna de Platão (428/427 - 348/347 a.C.): os médicos saem da sombra, tocam o fogo da verdade e não suportam o que veem. Ao invés de iluminação, há cegueira.

À volta à vida não os purifica — os perturba. A luz não salva: queima. Linha Mortal pode ser com parada com Outras Obras cinematográficas como: "Solaris" (Tarkovsky (1932 – 1986), 1972): Tal como Linha Mortal, Solaris apresenta um espaço onde as memórias se corporificam e desafiam os limites do real. Ambas as obras tratam do inconsciente como campo de embate ético.

"O Iluminado" (Kubrick (1928 – 1999), 1980): O hotel de O Iluminado funciona como a mente de Jack Torrance. Em Linha Mortal, o hospital é a mente dos médicos. Nos dois filmes, a arquitetura abriga demônios interiores.

"A Origem" (Inception, 2010 de Christopher Nolan (1970): A viagem ao inconsciente, os múltiplos níveis de percepção e a ideia de culpa como motor narrativo também se fazem presentes, mas Linha Mortal é mais trágica: não há redenção sem dor. 

Conflito entre Ciência, Fé e Culpa.

Rachel, em busca de compreensão do suicídio do pai, simboliza a tensão entre fé e ciência. A Medicina, vista como novo sacerdócio moderno é incapaz de oferecer consolo diante da dor da perda.

 Não há remédio para a culpa, nem técnica para o luto. A cena em que Nelson "morre" e vê seus erros diante de si, enquanto o grupo tenta reanimá-lo, é uma paixão crística secular. Ele “desce ao inferno” de sua própria psique e retorna transformado. Mas a ressurreição aqui não é espiritual, é ética: ele precisa pedir perdão. Eis aqui uma releitura contemporânea do sacrifício redentor, mas sem transcendência: não há Deus intervindo, só a consciência pesando.

O Gótico Médico e a Solidão do Saber

A estética do filme, sombria, abafada, com luzes artificiais e corredores opressivos, evoca o gótico urbano. A Medicina — ciência da vida — se torna, ironicamente, um campo de necromancia moderna. Os estudantes de medicina não buscam salvar vidas, mas violar o sagrado: o limite entre morte e a consciência.

Oliver Platt, o único que não participa das experiências, representa a razão cínica, mas impotente. Ele observa, comenta, mas é incapaz de deter o avanço do delírio. A ciência assiste calada ao triunfo do desejo metafísico.

Deus, Culpa e Redenção 

O questionamento da existência de Deus permeia toda a narrativa, mas nunca de forma explícita. Quando um dos personagens diz “não sei se acredito em Deus, mas tenho medo dele”, o filme atinge seu ápice existencial: Deus é menos que uma crença, do que uma presença traumática.

A culpa é o rastro da ideia divina. Mesmo que Deus esteja ausente, o peso da Lei moral permanece. Como em Dostoiévsk (1821 – 1881): “se Deus não existe, tudo é permitido” — mas Linha Mortal responde: mesmo sem Deus, a culpa não perdoa.

A Morte como Espelho da Vida

Linha Mortal propõe que a experiência de quase morte não revela o além, mas aprofunda o aquém. A morte é o espelho daquilo que escondemos. A Medicina, enquanto ferramenta de verdade, colapsa diante da vastidão do desejo humano de transcendência. “Sentir o corpo no limite”, voltando a  André Gide, “é também sentir o limite da razão.”.

Joel Schumacher, longe de fazer apenas um suspense sobrenatural, entrega uma obra que desafia a racionalidade, interroga a fé e mergulha nos labirintos da mente como Dante Alighieri (1265 -  1321) desceu ao Inferno.

A redenção, aqui, não é um milagre — é um trabalho.

 E talvez o maior horror seja justamente esse: saber que ninguém escapará de si mesmo.

Outras Comparações Cinematográficas Possíveis:

“O Sexto Sentido” (1999) – de Manoj Nelliattu Shyamalan (1970) relata o contato com mortos como forma de expiação do passado.

“Donnie Darko” (2001) – de Richard Kelly (1975) mistura   física, metafísica e crise existencial adolescente.

“Stalker” (Tarkovsky, 1979) – o “soviético”, novamente, faz o desejo de conhecer o que está além da realidade revela apenas o vazio do próprio desejo.

Schumacher, realiza uma das mais intrigantes incursões cinematográficas sobre os limites da consciência humana e os abismos entre ciência culpam e espiritualidade.

Muito além de um simples suspense médico, o filme apresenta uma alegoria sombria e filosófica sobre a mente como um teatro de assombros, onde o passado retorna não como memória, mas como presença, como um Real pulsante e irredutível.

O seu enredo,  desafia os limites da vida ao induzir  a própria morte temporária, propondo  uma inversão radical da lógica científica,  não se tratando  de salvar vidas, mas de sondar o que existe além da existência física.

A morte deixa de ser um evento terminal e passa a ser, paradoxalmente, uma ferramenta de autoconhecimento — embora o que se descobre, na maioria das vezes, não seja sabedoria, mas trauma.

 Essa busca, impulsionada por um desejo narcisista de consagração — próprio da juventude médica, embriagada pelo poder de "tocar Deus" —, rapidamente se transforma em um processo regressivo, onde a mente revela sua face mais perversa: a culpa.

 Nelson é a síntese desse movimento: arrogante, messiânico e perturbado, conduzindo o grupo à transgressão,  com o mesmo fervor de um profeta herético.

 No entanto, seu impulso não é científico, é expiatório. A experiência de quase-morte não serve para investigar a verdade objetiva, mas para confrontar o trauma infantil de ter sido responsável, ainda que indiretamente, pela morte de um colega de infância.

O freudismo ecoa com força: o retorno do recalcado não é simbólico — é encarnado, alucinado. O inconsciente encontra, na experiência de quase-morte, a brecha perfeita para invadir a consciência com toda a carga de culpa, vergonha e desejo de redenção. A mente se torna campo de batalha entre razão e lembrança.

Essa dinâmica aproxima o filme da ideia lacaniana de que a verdade do sujeito está no ponto em que a linguagem falha — e onde o gozo do inconsciente emerge como real inassimilável. Linha Mortal dá forma a esse gozo. A morte, nesse contexto, não é transcendência, mas o colapso do eu.

Não há paz após o batimento final — há julgamento, revisitação, fragmentação.

A experiência de cada personagem pós-morte é marcada por um retorno de cenas traumáticas: Rachel confronta o suicídio do pai viciado, David revive o bullying cruel contra uma colega negra, Joe se depara com as mulheres que filmou secretamente em momentos íntimos.

 A “experiência científica” revela-se uma armadilha ética e emocional: o além não é um paraíso ou inferno, mas um espelho distorcido de tudo aquilo que os personagens se recusaram a confrontar em vida. A mente, como diz o próprio Nelson em certo momento, mente. Essa mentira não é moral — é estrutural.

O desejo humano de controle, de racionalização da existência, é posto à prova nesse filme. A medicina, com toda sua arrogância iluminista, mostram-se incapaz de curar os sintomas da alma. E aqui o filme revela sua verdadeira crítica: o saber técnico, por si só, é insuficiente. Não existe bisturi que corte a dor da culpa, nem anestesia para o peso dos erros cometidos.

Essa impotência da ciência frente ao espiritual ecoa o pensamento de David Hume, que, em sua crítica à causalidade, já sugeria que não há segurança absoluta nos processos mentais. O entendimento é uma ilusão da continuidade.

Linha Mortal propõe que o conhecimento adquirido através da morte é instável, não confiável, emocionalmente tóxico. Os jovens futuros médicos voltam do limiar da existência não como sábios, mas como fragmentos. Ao invés de revelações divinas, são confrontados com terrores internos.

É nesse ponto que o filme se aproxima mais ainda do conceito de “deserto do real”, proposto por Slavoj Žižek. A realidade, desnuda de suas ficções reconfortantes, revela-se desértica, árida, insuportável. O que vemos no filme não é o mundo dos mortos, mas o mundo nu da consciência humana em ruína. A linha entre vida e morte torna-se, portanto, uma metáfora para a própria linha entre o sujeito e o outro, entre a memória e o delírio, entre a fé e a ciência.

A estética do filme reforça esse aspecto: corredores escuros, luzes frias, arquitetura taciturna, e atmosferas carregadas de simbolismo religioso. As imagens evocam a culpa cristã, o sofrimento como via de salvação, a cruz carregada pela modernidade. Nelson é um Cristo torturado não por pecados alheios, mas pelos seus. Rachel é uma Maria que não perdoa o pai nem a si mesma.

Cada personagem carrega sua cruz particular, e todos eles encaram a morte como um batismo invertido, um retorno às trevas. Há, também, uma leitura possível a partir da teologia negativa: Deus, aqui, está ausente, mas a ausência não é vazia — é insuportável. A fé é substituída por um niilismo clínico. Quando Labraccio questiona a existência divina ao ver Nelson entre a vida e a morte, o faz não como crente, mas como alguém à beira do colapso.

A ciência é sua bengala — mas essa bengala quebra sob o peso da dúvida. Não há conforto metafísico, apenas a possibilidade de perdão humano. O filme, nesse sentido, aposta numa ética da responsabilidade: só se encontra redenção ao pedir perdão ao outro, não a Deus.

No entanto, Linha Mortal se diferencia por seu pessimismo radical: não há transcendência. A vida após a morte não liberta — aprisiona ainda mais. O filme termina com uma tentativa de resgate de Nelson. Ele precisa “morrer de novo” para renascer. Esse renascimento não é um retorno triunfal, mas um gesto mínimo de reconciliação consigo mesmo.

 A medicina, por fim, serve apenas como instrumento da ética: ela revive o corpo, mas cabe ao sujeito resgatar sua própria alma — se for capaz. O que Schumacher realiza é uma crítica da razão clínica em tempos de pós-modernidade. Seus personagens são ícones de uma geração cindida entre saber técnico e vazio existencial, entre arrogância científica e necessidade de consolo espiritual. Não há cura possível para os males da alma sem o confronto radical com o passado, com o outro, com a culpa.

Nesse sentido, é também um filme sobre a adolescência estendida, sobre a recusa em amadurecer emocionalmente, sobre a ilusão de que se pode controlar o que não se conhece. É um drama da pós-modernidade, onde o sujeito não encontra mais consolo na religião, na ciência, nem na arte — mas apenas na coragem de pedir perdão. E isso, no fundo, talvez seja o que nos torna verdadeiramente humanos.

Joel Schumacher, criou mais que um suspense sobre experiências de quase-morte — construiu uma alegoria sombria, filosófica e visceral sobre os abismos da mente humana. Aparentemente circunscrito à trama de cinco estudantes de medicina que decidem provocar paradas cardíacas em si mesmos, para investigar o que existe após a morte, o filme mergulha, na verdade, numa região muito mais complexa: a da culpa, da memória, da falência da razão moderna e da tensão entre fé e ciência.

O que se anuncia como experiência científica logo se revela como um ritual quase metafísico, onde os personagens, ao “viajar” além da vida, são obrigados a confrontar com o que deixaram mal resolvidos nela — seus pecados, traumas, vergonhas, silêncios. O resultado é uma obra que opera entre o gótico e o psicanalítico, o clínico e o espiritual, colocando em suspensão qualquer noção confortável de realidade. Nelson é o arquétipo do médico moderno tomado por um narcisismo de vocação messiânica. Sua busca por experimentar a morte parte menos de uma inquietação científica do que de um desejo de expiação inconsciente: ele carrega a culpa da “caveira com capuz preto e foice”, e se vê no contato com o além uma forma de redenção. Ele não deseja saber, deseja ser perdoado.

 Essa cisão entre o discurso da ciência e a demanda subjetiva que o sustenta revela, já no início, o campo de contradições onde o filme se instala. A medicina aqui não é neutra: é veículo de angústia, pretexto para a culpa vir à tona.  E se a mente humana, como ele mesmo afirma em certo ponto, mente por si só, a racionalidade não é bastião, mas campo minado. Cada um dos jovens médicos que participa da experiência carrega seu próprio fantasma.

O que se vê, então, é que a morte, longe de ser transcendência, revela o retorno do recalcado — conceito freudiano que ganha contornos físicos e alucinatórios no filme. O inconsciente, em vez de ser apenas linguagem, ganha carne, rosto, voz.

Linha Mortal é um planeta solo, revivendo as memórias traumáticas dos protagonistas como forma de confrontá-los com seus próprios limites emocionais. A diferença é que aqui, a medicina substitui a tecnologia como linguagem do sagrado: um saber técnico que se transforma, aos poucos, em necromancia racionalizada. E, ainda que nunca se fale diretamente em Deus, a estrutura narrativa do filme é essencialmente cristã: há culpa, há sofrimento, há confissão, e há um desejo profundo de redenção.

Só que a redenção aqui não se dá por graça divina, mas por confronto ético e pessoal. Nelson precisa morrer de verdade para finalmente assumir a responsabilidade pelos seus atos e pedir perdão — não a uma entidade superior, mas ao outro, ao humano, ao que foi ferido.

Nesse ponto, começa a dialogar com um existencialismo sombrio, onde a liberdade humana é, ao mesmo tempo, uma dádiva e um fardo insuportável. Como diria Sartre, estamos condenados à liberdade. O filme sugere que, ao tocarmos a morte, não encontramos Deus nem paraíso, mas apenas a face obscura de nossas próprias decisões.

 A culpa, é um sentimento lúdico-existencial que não apenas marca o erro, mas denuncia a consciência da finitude. A culpa nos humaniza, e talvez seja por isso que todos os personagens só passam a se tornar verdadeiramente humanos depois de morrer. Ao cruzar a fronteira da vida, perdem o orgulho, a arrogância e a negação — e voltam não como heróis, mas como sujeitos destroçados pela lucidez. O que há é um excesso do real — o trauma, o erro, o que não se apaga com bisturi.

 Nesse sentido, a estrutura clínica da narrativa se desfaz, e o filme se transforma em uma fábula psicanalítica e teológica onde o hospital é catedral, a cirurgia é confissão, e a reanimação é batismo invertido. Não é por acaso que toda a direção de arte se ancora em elementos góticos: corredores escuros, mármores pesados, luzes frias que parecem mais saídas de uma cripta do que de um hospital.

A medicina, em Linha Mortal, é um saber cercado de morte por todos os lados — e incapaz de responder às grandes questões que provoca.

A estética do filme, aliás, revela essa tensão entre racionalismo e transcendência de maneira precisa. Os personagens circulam por espaços apertados, sempre à noite, com reflexos metálicos e sombras engolindo os corpos. É como se a luz — símbolo da razão — estivesse permanentemente em crise, em suspensão.

 Os protagonistas estão presos entre dois mundos: o da ciência objetiva, que falha ao explicar a subjetividade; e o da fé, que não se manifesta. E é nesse vácuo que a experiência da quase-morte acontece: não como revelação mística, mas como catarse psíquica. A religião está ausente, mas o desejo por redenção permanece. Como se, mesmo num mundo pós-moderno e cético, o ser humano ainda desejasse ser perdoado por algo, mesmo que não saiba mais por quem. Por isso, a medicina é mostrada não como resposta, mas como tentativa frustrada de domesticar o insólito. Os cinco jovens médicos não têm domínio sobre a morte — apenas arrogância. E ao desafiar o que há de mais sagrado, pagam o preço com a própria sanidade.

Joe Hurley (Baldwin), ao ver seu mundo ruir sob a acusação das mulheres que enganou, clama por Deus não em fé, mas em desespero. Sua racionalidade não dá conta do vazio que o confronta. O ateísmo pragmático dos personagens, ao ser confrontado com as consequências emocionais de seus atos, se mostra frágil. É como se todos eles percebessem que a culpa exige um horizonte ético maior do que a técnica permite. E, no final, o que resta não é um manual científico, mas um gesto humano: pedir perdão, encarar a dor, aceitar a falha.

Linha Mortal afirma que não existe conhecimento verdadeiro sem dor. A única forma de seguir adiante é olhar para trás, reconhecer o erro, e transitar entre as sombras.  Não se trata de descobrir o que há depois da morte, mas de aprender a viver com o que a vida deixa mal resolvida.

 A morte, aqui, não encerra:  se revela. Expõe. Obriga. Por isso, o filme não busca solucionar o mistério — ele o aprofunda. E ao fazê-lo, nos obriga a reconhecer que não há ciência capaz de extinguir o peso das escolhas malfeitas, nem fé que absolva sem verdadeiramente reconhecer a culpa. Talvez seja por isso que Linha Mortal continua sendo uma obra relevante, apesar do tempo. Porque fala de algo que atravessa todas as épocas: a tensão entre razão e sentimento, ciência e fé, erro e perdão. E porque nos lembra, com sua estética gótica e sua psicanálise implícita, que o maior horror não está na morte em si, mas na impossibilidade de fugir de quem somos — mesmo depois dela.


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