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24 de jan. de 2024

O PARADOXO DAS RUÍNAS

 

Por André Bozzetto Jr

 

            A casa é antiga. Está em ruínas. A maioria das lembranças já virou pó, enegrecido e triste como a camada que recobre os velhos móveis que ninguém quis levar embora. O pouco que sobrou está como as tábuas do assoalho, podre e prestes a ruir para dentro de um buraco negro de abandono e esquecimento. Restos de risadas ecoam com o vento que sopra por entre os espaços vazios onde antes houvera janelas que se abriam para um mundo que já não existe mais. Sobras de lágrimas gotejam de encanamentos quebrados, como corações que também se partiram e nunca mais se recuperaram. Sonhos descascam das paredes como tinta velha e ressecada. Planos e projetos despencam aos pedaços, junto com fragmentos de um telhado do qual muito pouco sobrou. E por entre as telhas que não estão mais lá eu vejo o céu escuro, profundo, infinito. Às vezes gostaria de voar até lá, como um pássaro fugindo de um longo cativeiro. Mas dessa prisão não consigo sair. Estou aferrado aqui como o mais profundo pilar desta construção secular.
           Todos partiram há muito tempo. Alguns ainda em vida, outros depois de mortos. Só eu fiquei. Talvez tenha sido por opção, como o bastião de  resistência contra o ciclo inexorável das mudanças. Pode ser que foi por imposição, como um castigo por algo do qual já não lembro. Por mais que tente, não consigo recordar o motivo. Virou um enigma, tão etéreo como a minha própria existência, com todos os detalhes importantes desvanecidos na névoa da noite eterna.
           De qualquer forma, por muito tempo acreditei que quando a casa desabasse por completo eu poderia finalmente sair. Só que não. Hoje percebo que todo o seu material já foi ao chão há décadas. Suas ruínas continuam existindo apenas na minha mente e, por tudo que posso ver, minha mente também só existe dentro desse lar decrépito que se tornou sua perpétua habitação. Um paradoxo eterno de restos mortais. Da casa... e de mim.  

4 de jan. de 2024

15 ANOS DA ANTOLOGIA "METAMORFOSE - A FÚRIA DOS LOBISOMENS"


 

Por André Bozzetto Jr

 

            Após um recesso de fim de ano, estamos de volta com a primeira postagem de 2024, dedicada a relembrar os 15 anos do lançamento do livro Metamorfose – A Fúria dos Lobisomens, organizado por Ademir Pascale (leia uma entrevista que fizemos com ele clicando AQUI), obra que ao longo do tempo adquiriu status de cult na cena da Literatura Fantástica Brasileira e, em especial, entre os apreciadores da temática licantrópica.

            A publicação teve o mérito de trazer à tona a figura do lobisomem, até então pouco explorada no meio literário nacional, além de dar visibilidade a muitos autores em início de carreira, inclusive alguns que posteriormente viriam a adquirir inegável reconhecimento, como Duda Falcão, Alex Mir, M. D. Amado (que pouco tempo depois fundou a Editora Estronho) o saudoso Adriano Siqueira e o próprio organizador, Ademir Pascale.

            O livro também teve papel central no boom de antologias de Literatura Fantástica que marcou a virada da década de 2000 para a de 2010, gerando um contexto de efervescência entre autores independentes de terror e gêneros correlatos como poucas vezes visto em outros momentos.

            Eu mesmo vinha de uma fase de muitos anos me dedicando apenas a obras de não-ficção e encontrei nessa antologia a oportunidade e a motivação para voltar às publicações de Literatura Fantástica, algo que não fazia desde a década de 90, com Odisseia nas Sombras. O conto que escrevi, intitulado “O Melhor Amigo”, marca a estreia do personagem Jarbas, que mais tarde ganharia um livro solo e se tornaria o carro-chefe do meu trabalho envolvendo lobisomens.

            Acredito que ainda é possível encontrar exemplares à venda em livrarias on-line. Se você não conhece essa obra clássica, eu mais do que recomendo! 

Adriano Siqueira, Pedro Moreno e André Bozzetto Jr no lançamento do livro em São Paulo, 2009.



     

Sinopse oficial:

Poderia uma maldição mudar o rumo da história da humanidade? Por que há tantos relatos dos homens lobos em épocas e lugares diferentes?

Publius Ovidius Naso (43 a.C – 17 d.C) escreveu a obra Metamorphoses, na qual cita as transformações de homens em animais, incluindo o rei Licaão em lobo. Ovidius influenciou William Shakespeare, John Milton, Dante Alighieri, Benjamin Britten, Cruz e Silva e tantos outros ao longo de dois milênios.

Aventure-se nestas páginas, mas tenha cuidado ao lê-las nas noites de lua cheia.

Ficha Técnica:

Organização: Ademir Pascale

Editora: All Print

Ano: 2009

Páginas: 200

Acabamento: Brochura

 ISBN: 978-85-7718-538-2

Autores e contos:
Ademir Pascale – Metamorfose

Adriano Siqueira – O Vampiro e o Lobo
Alex Mir – O Quarto da Porta de Aço
Almir Pascale – O Anjo da Escuridão
André Bozzetto Junior – O Melhor Amigo
André Catarinacho Boschi – Boa Noite
André Schuck Paim – Maldito
Armin Daniel Reichert – O Filho do Lobo
Arthur C. Bonaventura – O Mau Filho Retorna a Casa

Christian David – Última Esperança
Dione Mara Souto da Rosa – O Pacto de Carcassonne

Duda Falcão – Espírito de Totem
Elenir Alves – Anomalia
Felipo Bellini – Despertar das Gerações
Georgette Silen – O Sétimo
Jocir Prandi – Sina
Jorge Jose – Noturno
Jorge Ribeiro – Flagelo
Larissa Caruso – Fúnebre Luar
Leonardo A. Ragacini – A Mordida da Loba
Lino França Jr. – A Alcatéia
Luciana Fátima – O Choro do Lobo
M. D. Amado – O Último Baile: Pontos de Vista
Marcelo Hipólito – Razão e Fúria
Marco Bourguignon – A Sereia
Mariana Albuquerque – Em se Falando de Monstros
Maurício Montenegro – Cadeia Alimentar
Pedro Moreno – Lobo Homem
Rafael Azeredo – Bendita Maldição
Raphael Albuquerque – O Jovem Caçador
Frank Bacurau – Cogumelos Sob a Luz da Lua Cheia
Ronaldo Luiz de Souza – Zé Cão, o Zelador do Canil
Roseli Princhatti Arruda Nuzzi – Eterna Maldição
Rubem Cabral – Eu, Lobo

Simone Anton – Olhos Amarelos

Wilson Silva – Fuga em Quarto Crescente

 

 

25 de nov. de 2023

CRÍTICA DO FILME: A PRESA

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Uma discussão recorrente entre os fãs de cinema, e em especial os fãs de horror, é em relação ao termo “Trash”. Muitas vezes as pessoas tendem a interpretar a expressão trash como sinônimo de gore, ou dizer que um filme trash é necessariamente um filme desagradável de se assistir, mas será que essas interpretações são corretas? Afinal, o que é um filme trash? Que características deve ter um filme para se enquadrar nesse rótulo? Certa vez eu vi alguém comentando, se não me engano em alguma rede social, que um filme trash é aquele onde nada funciona, a direção é estapafúrdia, o roteiro é ridículo, os atores canastrões, os efeitos toscos, e apesar de tudo isso o filme ainda consegue prender a atenção do espectador. Em síntese, o filme trash é aquele que “de tão ruim acaba sendo divertido”. Particularmente, essa definição me agrada.

            Porém, partindo desse pressuposto, surge uma nova questão: como devemos classificar então os filmes onde nada funciona, a direção é estapafúrdia, o roteiro é ridículo, os atores canastrões, os efeitos toscos, e - ao contrário dos autênticos filmes trash - acabam se tornando irritantes e nada divertidos? Ainda espero por uma definição que contemple a contento esse tipo de filme, mas desde já aponto um exemplo irrevogável, que atende pelo bisonho nome de “A Presa” (The Feeding, 2006), certamente o pior filme que assisti em 2007 e muito provavelmente um dos piores que tive o desprazer de assistir ao longo de toda a minha vida de fã do gênero.

            Dirigido e roteirizado pelo fiasco em pessoa, Paul Moore, o mesmo do não menos péssimo “A Colheita” (Dark Harvest, 2004), esse tal de “A Presa” é tão ruim, mas tão ruim, que parece que foi feito de propósito para ser assim. Ou talvez foi elaborado para ser uma comédia que, de última hora, alguém decidiu que deveria ser lançado como um filme de terror, e deu no que deu. Porém, dadas às circunstâncias, mesmo que fosse uma comédia, o resultado seria igualmente catastrófico.

            Essa bomba deveria ser, teoricamente, um filme de lobisomem, mas na prática não faz diferença alguma, já que poucos ou quase nenhum elemento da mitologia das criaturas licantrópicas são aproveitados. Se fosse um filme sobre o Boitatá, a Mula-sem-cabeça ou um jacaré gigante, daria na mesma. Basicamente, a história contada por essa obra nos mostra um grupo de jovens drogados e idiotas que decidem passar um final de semana acampando nos Montes Apalaches, no interior dos EUA, sem saber que uma criatura misteriosa anda rondando pela região matando tudo que encontra pela frente, desde animais até pessoas. Simultaneamente, o contingente da Guarda Florestal responsável pela área recebe o reforço do agente especial Jack Driscoll (Robert Pralgo), um especialista em predadores que veio para auxiliar na identificação e captura da criatura que vem espalhando o pânico pelas redondezas. Logicamente, todos se verão envolvidos em muita correria em meio à mata, onde terão que enfrentar a tal criatura e lutar pelas suas vidas. Pronto. Esse é o enredo do filme.

            Mas afinal - podem se perguntar alguns – o que o torna tão ruim assim?

            Em primeiro lugar a produção (ou ausência de). Na condição de grande fã de filmes de lobisomem, acredito que um dos motivos pelos quais são produzidas poucas obras de lobisomem se comparado às de vampiros, fantasmas e zumbis, por exemplo, é devido ao fato de que os filmes abordando as criaturas licantrópicas requerem efeitos de maquiagem trabalhosos, demorados e muitas vezes caros, para dar conta da concepção da criatura. Além disso, tem o agravante das aguardadas cenas de transformações, sempre cobradas pelos fãs desse subgênero, que potencializam ainda mais as dificuldades relativas aos efeitos especiais e aos trabalhos de maquiagem. A não ser, é claro, que se apele para os efeitos em CGI, mas nesses casos os resultados costumam ser decepcionantes. Pois bem, em “A Presa” não há nenhuma cena de transformação, e a concepção do lobisomem ultrapassa todos os limites do ridículo. E sabem o que é pior? É que os próprios produtores do filme sabiam disso, tanto que, apesar de muito vasculhar na internet, não encontrei sequer uma foto da criatura, nem mesmo no site oficial do filme. Decerto eles já previam que, se a audiência conhecesse o visual do lobisomem de antemão, não se dariam ao capricho de assistir algo tão estapafúrdio.

            Mas isso não é o pior. Acreditem se puderem, mas mesmo durante o filme, nas cenas em que o monstro aparece, alguém teve a ideia brilhante de fazer com que as cores da película ficassem esmaecidas e a imagem desfocada, para que o espectador não pudesse observar com detalhes a dita criatura. Isso mesmo! Sempre que o monstro aparece a imagem fica distorcida! Mas nem isso impede o fiasco. O pobre lobisomem nada mais é do que alguém fantasiado com uma roupa muito tosca, com uma máscara que mal permite leves movimentos da mandíbula, e cujas feições lembram muito a cabeça de um jacaré. Em síntese, poderíamos dizer que o lobisomem é uma versão peluda da Cuca, aquela do Sítio do Pica-pau Amarelo, lembram?

            Mas tudo bem. Se o único problema do filme fosse a precariedade dos recursos empregados na criatura, isso seria relevável, basta levar em conta que existem vários outros filmes de lobisomem onde o monstro é tosco e mesmo assim o filme é bom, como é o caso, por exemplo, do recente “Big Bad Wolf”. Mas existem muitos outros fatores.

            O elenco, por exemplo, dá a impressão que foi recrutado na hora, e de certa forma isso parece verdade, pois com exceção de Robert Pralgo, que já participou do outros filmes “classe Z” e fez algumas pontas em seriados de TV, temos um ou dois elementos que estiveram em “A Colheita”, filme anterior do diretor, e os demais são estreantes. E que péssima estreia. As atuações são, na maior parte do tempo apáticas, mas por vezes desesperadamente exageradas.

            E tem os diálogos. Ah, os diálogos! Ed Wood ao assistir esse filme se sentiria um gênio sem paralelos na história do cinema fantástico. Prestem atenção em uma longuíssima conversa entre o agente Driscoll e sua parceira via rádio e tentem não pegar no sono ou apelar para o controle remoto para passar o filme pra frente. Detalhe: a conversa é via rádio, mas Driscoll está em cima de uma árvore e sua parceira logo abaixo, a não mais do que 2 metros de distância.

            E então chegamos nas cenas de ação, que, de certa forma, são o ponto alto do filme, pois pelo menos rendem algumas risadas, devido à semelhança com as coreografias das lutas e perseguições dos antigos filmes dos Trapalhões, onde Didi Mocó e sua turma faziam e aconteciam. Duas cenas em especial não podem deixar de ser citadas: a primeira delas ocorre quando o lobisomem invade pela primeira vez o acampamento dos jovens idiotas. Um casal de namorados está deitado no chão, e ao verem a criatura, se preparam para sair correndo. Só que um dos otários tropeça nos pés do outro, cai no chão e desmaia. Isso mesmo! É ou não é cena digna de filme dos Trapalhões?!

            A outra cena antológica acontece logo depois, quando uma agente florestal aponta um rifle para o lobisomem e ele a ergue pelo cano da arma. Dá pra acreditar nisso?! O monstro agarra o cano do rifle e o ergue, com a mulher suspensa no ar do outro lado. Surreal! E a idiota não se dá nem ao capricho de apertar o gatilho, ou soltar o rifle pra sair correndo. Fica ali, suspensa no ar, até o monstro achar que perdeu a graça e arremessá-la para longe.

            Mas não é só. Em outro momento, os agentes estão perseguindo o lobisomem com armas carregadas com dardos tranquilizantes. Até que uma agente (a mesma da hilária cena do rifle) dispara um tiro, que, devido a sua péssima pontaria, acerta um dos jovens ao invés de acertar no monstro. O detalhe incrível da situação é que, ao invés de perder os sentidos, como se espera de alguém atingido por um dardo tranquilizantes, o cara acaba ficando chapado! E o mais impressionante é que ele sai zanzando pela mata, trançando as pernas e até falando naquela gíria de malandro típica do estereótipo do pessoal que é chegado numa “erva danada”, falando frases desconexas do tipo “Poh, bicho, não quero mais ficá nessa floresta, não! Vô mi mandá, que não tô a fim de morrer, tá ligado? Tô muito doido!”. Inacreditável.

            E tem muito mais coisas. Em alguns momentos os personagens precisam de lanternas para andar na mata, em outros enxergam perfeitamente na escuridão total. Alguns personagens tropeçam, caem e desmaiam, enquanto outros são praticamente esquartejados e continuam correndo e lutando. Sem falar na inteligência extrema das figuras. Um bom exemplo é o momento em que alguns sobreviventes, ao chegarem a conclusão de que estão enfrentando um lobisomem, improvisam uma arma utilizando um artefato de prata, convictos de que essa é a única forma de matar o monstro. Pois bem, quando o lobisomem chega, o que é que um dos espertalhões faz? Ataca a criatura com um machado, mesmo sabendo que apenas a prata surtiria efeito! É demais...

            Ainda poderíamos mencionar o final, tão ridículo e forçado quando o restante do filme, mas para não incorrer em spoiler, deixo a “surpresa” para algum eventual corajoso (ou seria masoquista?) que tenha disposição para assistir essa bomba monumental.

            A certeza que fica após assistirmos “A Presa” é que, além de representar uma verdadeira ofensa ao legado das criaturas licantrópicas nas telas, o filme pelo menos seria de grande utilidade em faculdades de cinema, para que os alunos e candidatos a futuros cineastas pudessem ter a noção de tudo que não se deve fazer em um filme. Além disso, persiste uma dúvida que tem se tornado cada vez mais recorrente: com tantos ótimos filmes ainda inéditos em DVD no Brasil, como uma tralha praticamente amadora como essa conseguiu ser lançada por aqui? Mistérios das terras tupiniquins...

 

 

NOTA: As críticas desta seção foram escritas originalmente no início dos anos 2000 e publicadas em diversos sites e blogs da época.