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9 de mar. de 2023

TECNODEMÔNIOS - A TORRE

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Foi na quarta-feira de noite que o meu irmão me ligou empolgadíssimo, dizendo que eu deveria ir até a casa dele – a mesma casa em que vivemos durante toda a infância e adolescência, mas que ele habitava sozinho desde que nossos pais faleceram e eu me mudei para Porto Alegre – para ver uma coisa fantástica que ele havia descoberto, ou inventado, algo assim. Não quis me dar detalhes, apenas insistiu que era um lance espetacular e que precisava me mostrar o quanto antes. Parecia meio fora de si, de tanta afobação. Prometi que iria no sábado de manhã.

            Francis sempre foi um cara meio esquisito, caladão. Nunca teve muitos amigos, ficou com pouquíssimas garotas. Depois que nossos pais morreram, ficou mais isolado ainda. A psicóloga disse que ele deveria fazer terapia e talvez até procurar um psiquiatra, mas ele nunca quis nem uma coisa nem outra. Trabalhava dando aulas de informática em escolas de computação mantidas pela Prefeitura, e, quando não estava trabalhando, ficava enfiado dentro de casa, mexendo no computador ou assistindo TV. De Porto Alegre até a nossa cidade natal dá umas três horas de viagem, então eu sempre procurei visitá-lo uma ou duas vezes por mês, aos finais de semana e geralmente o encontrava mobilizado em construir algo. Geralmente algum aparelho eletrônico que não funcionava – ou, nas raríssimas ocasiões em que funcionava – se revelava completamente inútil.

            Na sexta-feira tive uma noite agitada por pesadelos estranhos e acabei perdendo a hora no sábado de manhã. Saí de Porto Alegre quando já era praticamente meio-dia. Durante a viagem, percebi que o céu ia ficando cada vez mais escuro conforme avançava. Quando finalmente cheguei, a impressão era de que um temporal iria desabar sem demora.

            Me chamou a atenção o fato de que as ruas da cidadezinha estavam completamente desertas. Por mais que a população fosse de apenas 3 mil habitantes, era incrível não ver uma pessoa sequer nas calçadas, nenhum carro transitando.

            Ao estacionar diante da casa do Francis, o silêncio era tanto que chegava a causar um mal-estar. Comecei ter a sensação de que algo estava errado. Bati na porta e ele não atendeu. Chamei, gritei pelo seu nome, e nada. Tentei abrir a porta, mas estava trancada. Então dei a volta no pátio e encontrei a porta da cozinha aberta. O interior da casa estava escuro e cheirava mal. Pilhas de louça suja na pia e restos de comida sobre a mesa. Havia uma bagunça em todos os cômodos, com caixas de papelão e plástico bolha pelo chão. Parecia que o meu irmão tinha comprado muitas coisas recentemente.

            Aquele pressentimento desagradável que eu sentia desde que cheguei na cidade, só foi aumentando com o sumiço do Francis e o estado da casa, e piorou ainda mais quando me aproximei da escrivaninha do seu quarto e dei uma olhada no monte de papéis que estavam espalhados ali. Havia projetos que pareciam ser de máquinas e estranhos aparelhos eletrônicos, mas também desenhos feitos à mão de criaturas monstruosas e horríveis, além de algumas paisagens sinistras e sombrias. Sobre a cama estavam jogados alguns livros de bruxaria, demonologia ou merdas desse tipo, ao lado de um caderno que continha anotações que, para mim, pareciam completamente sem sentido, envolvendo algo chamado “Dillodokers”. Comecei a temer que a sanidade do meu irmão tivesse desandado de vez.

            Decidi ir até a casa ao lado falar com os Gardelli, que eram nossos vizinhos desde quando nossos pais anda estavam vivos. Talvez eles tivessem informações sobre o Francis.

            Como ninguém atendeu quando bati na porta, girei a maçaneta e ela abriu. O senhor Luiz e a dona Marli estavam sentados no sofá diante, da TV. Tinham o olhar vidrado, como se estivessem hipnotizados. Nem reagiram à minha presença. Falei com eles, mas não responderam. Achando aquilo muito estranho, tentei falar mais alto e até gritar, mas sem resultado. Por fim, chacoalhei pelos ombros tanto o velho quanto a velha, mas nenhum deles reagia. Permaneciam em silêncio, olhando para a TV com expressões sérias.

            E por falar na TV, quando olhei para a tela, me senti ainda mais incomodado e até com uma ponta crescente de medo. A imagem escura e cheia de chuviscos exibia uma série de cenas bizarras, com seres deformados e grotescos se movendo por lugares tenebrosos, intercalando com a exibição de atos de violência e perversão sexual entre pessoas que pareciam completamente enlouquecidas.

            Apesar do horror das imagens, eu não consegui tirar os olhos da tela. Talvez fosse acabar entrando em transe também, e permaneceria ali, hipnotizado, se algo não tivesse desviado minha atenção. Percebi que alguns daqueles locais medonhos e várias das criaturas monstruosas que estavam sendo exibidas eram idênticas às dos desenhos que encontrei no quarto do meu irmão. Essa constatação me fez ter um sobressalto e parei de olhar para a TV.

            Com a certeza de algo realmente ruim estava acontecendo, saí da casa dos Gardelli e caminhei até o outro lado da rua, onde morava a Dona Cleide. Pela janela entreaberta da sala, vi ela, a filha adolescente e a mãe idosa sentadas no sofá, assistindo àquelas cenas infernais através da televisão. Chamei, gritei, mas nenhuma delas esboçou qualquer reação.

            Não satisfeito, andei até a casa ao lado, do Beto, nosso amigo de infância. Como sabia que ele nunca trancava a porta, nem bati, já abri e fui entrando. Na sala de estar não havia ninguém, mas quando fui para a cozinha, lá estava ele, sentado à mesa com um lata de cerveja na mão, que já devia estar vazia há muito tempo. Estava tão hipnotizado quanto todos os outros, com os olhos vidrados na TV sobre o balcão.

            Já começando a ficar desesperado, balancei o Beto de um lado para o outro, dei um tapa no seu rosto e tentei arrancá-lo da cadeira. Nada disso fez qualquer efeito. Olhar para a TV com aqueles olhos arregalados e expressão séria era tudo o que ele fazia.

            Voltei correndo para a casa da nossa família. Peguei o telefone e liguei para o Dr Lauro, médico e amigo da nossa família desde sempre. Talvez ele tivesse alguma notícia sobre o Francis ou pudesse fazer ideia do que estava acontecendo. Ninguém atendeu. Liguei então para o hospital, e novamente, ninguém atendeu. Cada vez mais amedrontado e irritado, liguei também para a Polícia, mas, sem resultado.

            Sem saber o que fazer, saí para a rua, gritando um monte de palavrões. O céu estava tão escuro e repleto de trovões ecoando para todos os lados que parecia só um questão de pouco tempo até começar um dilúvio.

            Embarquei no carro e comecei a andar lentamente pelas ruas da cidadezinha. Vi um gato em cima de um muro ali, dois cachorros revirando uma lata de lixo mais para lá, mas nada de seres humanos. Nem um único carro circulando. Em algumas casas onde havia janelas, cortinas ou portas entreabertas, dava para se ver pessoas imóveis assistindo TV. Zumbis, não em busca de carne fresca como nos filmes, mas sim de imagens bizarras emanadas através das telas de aparelhos eletrônicos.

            Estava tentando decidir se iria até o hospital ou à delegacia, na esperança de encontrar algo diferente ou uma pista do paradeiro do meu irmão, quando um forte relâmpago me induziu instintivamente a olhar para o alto, na direção dos morros que circundavam a cidade. Foi aí que avistei algo que me chamou a atenção. A torre de metal que havia lá em cima, e que estava abandonada há décadas. Ela tinha pertencido a um pequeno canal de TV comunitário, que funcionou por pouquíssimo tempo e logo foi fechado. Percebi que uma grande antena, nova e reluzente havia sido instalada no alto da torre. Ela não estava lá na última vez em que eu estivera na cidade, uns 15 dias antes. Do que será que se tratava? Sentindo uma incômoda intuição, acelerei e parti naquela direção.

            Em poucos minutos já estava no topo da colina, cuja estrada de acesso era totalmente cercada pela mata. Estacionei diante da cerca que delimitava a propriedade e vi que o portão estava aberto. Quando entrei, a primeira surpresa: o Fiat Uno do meu irmão estava estacionado ali, com as portas dianteiras e do porta-malas abertas. Havia caixas da papelão, plástico bolha e papel de embrulho espalhados pelo chão, na direção do pequeno prédio retangular que ficava aos pés da torre.

            Pichações, vidros quebrados e mato crescendo por entre os ambientes deixavam claro o estado de abandono a que o local foi sujeitado com o passar dos anos e reforçavam sua aparência incômoda e assustadora. Com o coração batendo acelerado, entrei pela porta de metal enferrujado, que não estava trancada. O que vi lá dentro me apavorou tanto que acreditei que fosse desmaiar, ou perder completamente a sanidade.

            No fundo do aposento havia um painel – visivelmente recém-instalado – cheio de componentes eletrônicos e luzes coloridas e piscantes... E diante dele estava o meu irmão.

            Francis estava suspenso por correntes presas em seus pulsos e afixadas no teto. Sua cabeça estava partida – arrebentada de dentro para fora, é a maneira correta de descrever – e no interior do seu crânio alguma coisa se movia, um tipo de criatura que projetava finos tentáculos para fora e que se conectavam nas entradas dos equipamentos como se fossem plugues orgânicos e gosmentos. Por mais incrível que pareça, tive a impressão de que talvez o meu irmão pudesse não estar morto. Seus olhos semicerrados pareciam mais de alguém em estado de coma do que propriamente um cadáver.

            Mas, não tive como averiguar melhor. O monstro que estava dentro do crânio de Francis deve ter notado a minha presença, pois começou a fazer uns barulhos medonho e balançar alguns tentáculos na minha direção. Foi então que a surpresa e o choque deram lugar ao pavor e ao desespero. Comecei a gritar – tomado pelo pânico e pela raiva – e gritando saí porta afora procurando por alguma arma improvisada.

            Como dei de cara com o carro do Francis, contornei até o porta-malas e retirei de lá a chave de rodas. Aos gritos e com os olhos cheios de lágrimas, retornei ao interior do prédio e comecei a distribuir pancadas para todos os lados. Bati nos tentáculos da criatura que estavam conectados nos aparelhos, mas, além de não dar muitos resultados, ela passou a tentar me agarrar com os membros livres. Na confusão, comecei a bater também nos equipamentos, que se quebravam causando curtos-circuitos e gerando faíscas e pequenas labaredas ao redor.

            Um tentáculo do monstro se enroscou no meu pescoço, me obrigando a partir na direção do Francis e bater na sua cabeça, de onde saiam os membros daquela criatura nojenta. Eu gritava e batia com força, de novo e de novo, até sentir o aperto ao redor do meu pescoço ceder. Voava sangue e gosma para todos os lados e a coisa sibilava furiosa enquanto eu continuava batendo, e provavelmente continuaria até não sobrar mais nada, se o fogo originado nos aparelhos não tivesse se alastrado rapidamente, dando início a um incêndio.

            Corri para fora e, poucos instantes depois, o fogo já consumia o pequeno prédio por completo. Lá dentro, a criatura havia silenciado. Seria impossível tirar Francis daquelas correntes antes de as chamas bloquearem a saída. Além disso, ele não poderia estar vivo naquelas condições. Seria melhor que não estivesse.

            Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando para o clarão das chamas que contrastava com a escuridão do céu, formando uma cena fantasmagórica. O reflexo das labaredas na estrutura metálica da torre contribuía para o tom espectral da paisagem.

            Então ouvi barulho de carros se aproximando. Quando olhei para trás, já havia pelo menos quatro veículos estacionando diante do portão, e várias pessoas começaram a desembarcar deles. Eu conhecia quase todas: o Zé, do açougue, o Antônio, da padaria, os dois irmãos Shwertz, Beto, o meu amigo de infância, entre outros. Mas, porque será que estavam portando facas, machados, facões e até armas de fogo? Teriam despertado do transe e deduzido o que se passava? O fogo na torre teria chamado sua atenção? Teriam vindo com a intenção de destruir o monstro que estava controlando a tudo? A maneira séria – eu diria até “furiosa” – com que olhavam para mim me fez desconfiar do contrário.

            Antes mesmo que eu pudesse dizer qualquer coisa, houve um estrondo e, quase ao mesmo tempo, o zunido de um bala que passou centímetros acima da minha cabeça e atingiu a parede logo atrás. Então o grupo começou a correr na minha direção com as armas em punho e ódio no olhar, gritando todo tipo de xingamentos contra mim. Estava claro – apavorantemente claro – que era eu quem eles queriam matar.

            Sem pensar duas vezes, saí correndo em total desespero. Passei rapidamente pela lateral direita do prédio em chamas e me embrenhei na mata fechada. Entre as árvores já estava bem escuro, pela presença das nuvens da tempestade iminente e pela noite que se aproximava. Depois de correr por alguns metros, tendo meu corpo arranhado e até cortado pelos galhos e arbustos do denso matagal, avistei um declive do meu lado direito. O barranco tinha uns três metros de altura, aproximadamente, e seguia em paralelo às grandes árvores na direção da estrada. Isso me deu uma ideia. Como tinha uma certa vantagem em relação aos meus perseguidores, que ainda não estavam no raio de visão, pulei para baixo da encosta e segui agachado, no sentido contrário ao qual tinha vindo. Alguns instantes depois, pude ver por entre a vegetação a turba passando reto lá em cima do barranco, seguindo para o interior da floresta.

            Segui desse jeito o mais rapidamente que pude, até avistar a cerca da propriedade. Então corri na direção do portão e embarquei no meu carro. Engatei ré pisando fundo e fazendo voar cascalhos para fora da estrada. Manobrei e parti acelerando na direção da rodovia. Pelo retrovisor, pude ver algumas pessoas surgindo logo atrás, saindo da mata. Escutei dois estrondos. Um dos tiros arrebentou o vidro do para-brisa traseiro e o outro atingiu o retrovisor da porta direita. Mas eu já estava fora de alcance. Em instantes cheguei ao asfalto e acelerei pra valer na direção sul. Quase ao mesmo tempo, o temporal que estava se ensaiando finalmente desabou. A chuva forte dificultava a visibilidade, mas eu não diminuía a velocidade. Não conseguiria aliviar o pé, mesmo se quisesse. 

        Agora, já faz mais de uma hora que estou na estrada. A chuva diminuiu bastante. Tenho cruzado por vários carros o tempo todo e pelas cidades por onde passei, tudo parece normal. O que quer que tenha acontecido lá na minha terra natal, parece ter sido um evento local, isolado. A sensação de “normalidade” é tão concreta que começo a me perguntar se as coisas realmente aconteceram do jeito que me parece terem acontecido. A hipótese de um pesadelo ou algum tipo de estranha ilusão começa a se tornar mais palpável. O que devo fazer? Estou pensando em voltar para casa – em Porto Alegre – e telefonar para o Francis. Se ele não atender, então o corpo dele ainda deve estar lá, no prédio da torre, consumido em chamas, com o cérebro devorado por algum tipo de monstro infernal. Caso ele atenda, então é porque nada mais faz sentido, e quem terá sido envolvido pelos tentáculos da loucura sou eu.

22 de fev. de 2023

TECNODEMÔNIOS - O JOGADOR ON-LINE



 
“Os demônios representam os vícios humanos encarnados, e torturam aqueles que têm se entregado a tais vícios na vida terrena.” 
 
(MacGregor Mathers – Kabbalah Unveiled)

 

            Muitos dizem que o Marco é um nerd, mas eu sempre discordei. Para mim, nerd é o cara que manja de cultura pop e sabe muito sobre tecnologia e essas paradas, mas o Marco nunca soube nada sobre isso. Ele sempre foi um viciado em jogos eletrônicos, e nada mais. O cara já tem quase trinta anos e nunca teve uma namorada, nunca praticou esportes e quase nunca sai de casa. E não é por falta de oportunidade, pois, como conheço ele desde criança e sei que no fundo é um cara legal, sempre o convido para sair com a gente, mas nunca topa. Prefere ficar trancado no quarto, jogando. Não me pergunte os nomes, pois nunca fui fã dessas coisas, mas ele adora aqueles jogos de tiro em primeira pessoa, jogos de futebol – o que é estranho, porque ele nunca quis jogar uma pelada conosco na vida real – jogos de estratégia e até poker on-line.

            Uma vez a mãe arrumou um emprego para ele no setor de TI de uma empresa, mas logo foi demitido porque ficava jogando no horário de trabalho. Mais ou menos naquela mesma época ele começou a faculdade de Sistemas de Informação, mas reprovou em várias disciplinas por faltas ou por não entregar as atividades e aí acabou abandonando. A partir de então, nunca mais fez nada. Passa o dia em casa, tomando Coca-Cola e comendo biscoito recheado, sustentado pela mãe.

            E, por falar na mãe dele, às vezes ela me liga, chora e pede por favor para que eu o convide para sair, o que sempre faço, até com boa vontade, mas sem sucesso. A última vez que tentei foi na sexta-feira. Liguei para ele e disse que estávamos indo passar o final de semana no sítio da família do Carlão, que haveria várias garotas lá e talvez ele se interessasse por alguma – ou, o que seria ainda melhor: alguma se interessasse por ele. Mas, nada feito. Ele estava empolgadíssimo porque um fulano de tal, amigo de não sei quem, que era formado em Engenharia Química, havia desenvolvido uns comprimidos – ilegais, obviamente – que, quando ingeridos, faziam o cara ficar acordado por mais de 80 horas direto e ele ia usar isso para ficar jogando sem parar e “bater todos os recordes”, nas suas próprias palavras. Eu disse que isso já existia, que muitos caminhoneiros usavam e se chamava rebite. Ele discordou, falou que os comprimidos do cara estimulavam uma parte do cérebro que fazia não sei o que, e isso ia ser muito útil nos jogos. E ficava me dizendo: “Você sabe que dá para ganhar muito dinheiro jogando, né? Mas pra isso precisa ser bom pra caralho. Com esses comprimidos ninguém vai pontuar tanto quanto eu. Vou f*der com todos eles!” E para “melhorar” a mãe dele estaria viajando até segunda e não iria atrapalhar em nada. Ele estava vibrante, eufórico, parecia meio louco.

            Eu teria deixado para lá, como fiz tantas vezes – até por falta de opção – se ele não tivesse começado a me mandar umas mensagens estranhas durante o final de semana, tipo essa: “Tomei todos.19 hrs sem parar. To moendo. Botando pra fder. So essa dor de barriga do kralho!” Eu respondi dizendo que ele era louco de tomar essas merdas feitas sabe-se lá em que fundo de quintal clandestino, e que parasse de jogar antes que tivesse um treco. Mas, ele não deu a menor bola, logicamente.

            E assim continuaram as mensagens. 28 horas... 49 horas... 54 horas... Sempre comemorando a pontuação e reclamando da dor de barriga, além de outras coisas sem sentido e incompreensíveis. A última foi assim: “54 já. Ninguem nessa porra pode com o meu crbro. Ferveu. Milhoes vindo já. So isso na cabeça que não para. Dillodoker já atravessando. Repete repete repete. Tem uma coisa se mexendo dentro da minha barriga da até pra ver por baixo da camisa”.

            Fiquei realmente preocupado. Tentei ligar e ele não atendeu. Então liguei para a mãe dele também, mas não completava a ligação. Talvez estivesse no avião ou na estrada, em uma área sem sinal. Estava em dúvida, sem saber o que fazer, quando recebi uma videochamada dele. Quando atendi levei um susto. Ele estava pálido, com olheiras enormes e escuras, com os cabelos suados grudados na testa. E aquele olhar! Havia algo de muito errado naqueles olhos.

            “Cara, agora to mal pra caralho!” disse ele, “Não aguento mais! Tá vindo! Tá saindo!”

            E então ouvi um som horrível, que parecia um peido junto com algo se rasgando. Ele deu grito, que me fez arrepiar os cabelos da nuca, e pareceu começar a tossir sangue. Houve outro barulho daqueles e algo escuro e melequento espirrou contra a tela. Ele caiu da cadeira e ficou gemendo. Dava para ouvir. Então apareceu alguém, alguma coisa, mas não dava para ver direito o que era, porque a webcam ficou encoberta pela meleca. Comecei a escutar o som das teclas do computador sendo apertadas em grande velocidade e, de repente, a videochamada se encerrou. Tentei chamar de volta, mas sem sucesso.

            Apavorado, comecei a falar para o pessoal ao redor que o Marco estava mal e que precisava ir lá para socorrer. Pedi se alguém queria ir junto, mas todo mundo disse que não e ainda me xingaram por “ficar dando bola para aquele gordo escroto”.

            Entrei no carro e parti, sozinho mesmo, assustado e ao mesmo tempo com raiva da galera pela falta de apoio. No caminho, tentei ligar várias vezes para o Marco e para a mãe dele, mas ninguém atendia. O trânsito do início da noite de domingo estava ruim e levei mais de uma hora para chegar. Toquei o interfone do apartamento, mas nada de resposta. Quando alguns moradores do edifício abriram a porta do hall para sair, me enfiei para dentro e peguei o elevador.

            Toquei a campainha, bati e chamei pelo Marco. Não se ouvia som algum do lado de dentro. Cada vez mais ansioso, não pensei duas vezes e comecei a chutar a porta. Uma, duas, três, quatro vezes, e ela se abriu. O apartamento estava totalmente escuro e um fedor horrível impregnava o ar. Parecia cheiro de merda misturado com alguma outra coisa que não sabia o que era. Fui entrando e chamado pelo Marco, até chegar no quarto dele. Quando escancarei a porta, o fedor veio tão forte que pensei que ia vomitar.

            A luz do quarto estava desligada, mas pela luminosidade da tela do computador – melecada com o que parecia ser sangue – pude ver o corpo do Marco caído no chão, ao lado da cadeira. Com toda certeza, estava morto. Mas, isso não era o pior. O que me fez gritar e ter a impressão de que poderia ficar louco de vez, foi perceber que através da sua barriga rasgada e ensanguentada havia saído algo. Uma criatura formada pelo próprio intestino do Marco, mas que, de alguma maneira, tinha desenvolvido olhos, boca e dentes afiados. Para fora do abdômen dilacerado saíam tentáculos de vários comprimentos e espessuras e alguns deles apertavam sem parar os botões do mouse e do teclado do computador, para onde o monstro olhava fixamente, como se acreditasse que ainda estava jogando e não pudesse parar.

            Eu cheguei a me mijar de pavor, e gritei tanto que a coisa finalmente pareceu notar a minha presença. Mesmo sem parar de teclar, olhou para mim com aqueles olhos esbugalhados e monstruosos e moveu alguns tentáculos na minha direção. Então saí correndo, tomado pelo desespero. No corredor trombei com algumas pessoas que estavam ali – decerto atraídas pelo barulho do arrombamento e pela minha gritaria – e segui na direção das escadas. Não sei se tropecei ou resvalei nos degraus, mas acabei caindo e desci rolando até bater a cabeça com força. Essa é a última lembrança que tenho antes de apagar.

            Acordei aqui, deitado na maca, dentro de uma ambulância. Do lado de fora dá para perceber as luzes coloridas das viaturas da polícia. Escuto dois estrondos que parecem de tiros, vindos lá de cima. Se ouve gritos e choro. Será a voz da mãe do Marco? Pergunto aos paramédicos o que está acontecendo, mas eles não respondem, apenas me olham com expressões perturbadas.

            A ambulância parte, com a sirene ligada. Sinto meu corpo tremer só de pensar no horror que ficou para trás, lá em cima, no apartamento escuro e tomado por aquele fedor infernal.

 

Por André Bozzetto Jr 
 
   

15 de fev. de 2023

AQUILO ESTÁ VINDO

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Eu me arrependi tão logo cheguei. Antigamente o Parque era um lugar muito tranquilo e agradável. Dava para passar muitas horas caminhando pelas trilhas na mata, sentar nas sombras das grandes árvores para ler e relaxar, além de nadar nas águas calmas e refrescantes do riacho. Como quase ninguém ia lá, tudo permanecia limpo e preservado, sem gente desrespeitosa e lixo, que dá praticamente na mesma. Mas isso ficou no passado. Lixo agora é o que mais se vê no Parque aos finais de semana. Não apenas garrafas, copos plásticos, bitucas de cigarro e pacotes de tudo quanto é porcaria, mas sobretudo o lixo humano. Gente bêbada, vulgar e irritante, que não respeita nada e nem ninguém e inferniza a todos com uma espécie de competição de dejetos sonoros em caixas de som que vomitam “funk ostentação”, “sofrência”, “sertanejo universitário” e sabe-se lá quais outros tipos de diarreia auditiva impossível de se classificar como música. Não satisfeitos em tornar os espaços públicos urbanos em antros de imundice e baixarias, passaram a infestar também os últimos redutos da natureza em que era possível se vivenciar a paz. Agora tudo é zoeira e sujeira. Em nome da “diversão”, se expõe o que há de mais patético e degradante dentro de cada um.

            Como o tempo estava para chuva, acreditei que poderia ter uma manhã de sábado um pouco mais sossegada, mas estava enganado. O Parque estava quase tão cheio como de costume. O pessoal ocupava a estrutura fixa dos quiosques e ainda espalhava gazebos e tendas por todos os lados, com churrasqueiras móveis impregnando o ar com fumaça escura de carvão. Eu trazia na mochila alguns sanduíches e o meu exemplar de O Idiota, mas Dostoiévski ia ter que esperar. Decidi descansar um pouco – o Parque ficava a 7 km da cidade e eu tinha ido a pé – e logo voltaria para casa. Diante daquele deprimente show de grosseria e vulgaridade, o silêncio do meu quarto parecia muito mais convidativo e acolhedor.

            Sentado em um dos únicos bancos de madeira que ainda estavam vagos, comecei a me lembrar de uma cena presenciada um pouco antes que, agora percebo, já era um prenúncio do que estava por vir. Bem diante da entrada do Parque, passou por mim uma antiga caminhonete rural, praticamente caindo aos pedaços. Na pequena carroceria havia um colchão, algumas sacolas de roupas, potes de comida e um cachorro. Ao volante estava um senhor idoso e ao seu lado uma senhora, igualmente idosa. Eu reconheci o motorista. Era o Seu Sebastião. Ele morava em uma humilde chácara ao lado do Parque e costumava ir à cidade vender chás, mel e outros produtos naturais. A minha avó geralmente comprava dele um pouco de camomila, macela e hortelã. Quando eu era criança e o Seu Sebastião passava lá em casa, sempre me chamava de Gurizinho e me dava umas balas artesanais de mel e funcho. Naquele momento ele dirigia com expressão tensa e séria. Quando passou ao meu lado, diminuiu ainda mais a velocidade e ficou me olhando, com ar preocupado. “A gente está indo embora, Gurizinho”, disse ele, parecendo realmente me reconhecer, “Nessas matas têm coisas muito antigas que deveriam ser deixadas quietas. O que aquela gente está fazendo lá do lado do rio não vai acabar bem. Você também devia ir embora.” E assim eles se foram, com certeza, para nunca mais voltar. Pessoas simples, que viviam naquelas terras a sabe-se lá quantas gerações, partindo de forma melancólica, rompendo com suas raízes, agora condenadas ao esquecimento. Gente que aprendeu a conviver em harmonia com a natureza, expulsa pela presença iminente e sem alma do concreto e do asfalto, pelo avanço hostil de uma urbanização que consome a tudo, sem ligar para ninguém, nem para eles e nem para a natureza.

            Era sobre isso que ele estava falando quando se referiu “ao que estavam fazendo lá do lado do rio”. Um grande condomínio de luxo. As terras na margem oposta do curso d’água não faziam mais parte do Parque, portanto, na visão dos políticos que autorizaram a obra, poderiam ser devastadas e maculadas com torres de tijolo, vidro e aço para abrigar gente rica e esnobe que certamente estaria mais preocupada com o formato da piscina e a cor das paredes do lado de dentro do que com as árvores e o rio do lado de fora. A obra, ainda em fase inicial, já deixava claro com suas máquinas e caminhões, que a concretude do sonho capitalista esmaga e transforma em pesadelo as referências daqueles com quem quase ninguém mais se importa. Seu Sebastião, com seu rosto marcado pelas rugas tristes da desilusão, que o diga.

            Fazia poucos minutos que eu havia chegado, quando um casal acompanhado de uma menina de 9 ou 10 anos de idade se aproximou e começou a organizar um piquenique no gramado ao meu lado. Logo o cara disse para a esposa: “Enquanto vocês ajeitam as coisas aqui, eu vou até lá no rio ver como estão as obras. A perfuratriz grande ia chegar hoje de manhã. Logo estou de volta”. Eu conhecia aquele sujeito. Era funcionário do Departamento de Água e Esgoto. Devia ser um dos responsáveis por fiscalizar a construção do condomínio. Como se isso fizesse alguma diferença.

            Se passaram mais alguns minutos e, como percebi que o céu estava mais escuro e a chuva logo viria, coloquei novamente a mochila nas costas e já estava pronto para refazer a caminhada de volta até a cidade, quando vi, se aproximando da direção do rio, alguém que vinha correndo, gesticulando de forma afobada e gritando algo para as pessoas que estavam ao redor. Era aquele sujeito, o cara do Departamento de Água e Esgoto. Claramente, a maioria das pessoas não dava nenhuma bola para seja lá o que fosse que ele estivesse dizendo. Muitos nem sequer ouviam, porque a poluição sonora que saía das diversas caixas JBL impregnava os arredores. Mas, conforme ele foi se aproximando – suado, afobado e apressado – consegui ouvir o que estava dizendo: “Corram! Corram! Aquilo está vindo!”. Quando ele passou por mim, pude ver o pavor estampado no seu rosto e não tive nenhuma dúvida de que, sabe-se lá o que fosse aquilo que estava vindo, devia ser algo completamente aterrorizante.

            Tão logo chegou ao local onde estavam a esposa e a filha, pegou a menina no colo e disse “Vamos, querida! Calce os tênis porque vamos precisar correr!”. Assustada, a garotinha perguntou o que estava acontecendo, mas ele nada respondeu e somente continuou ajudando a colocar o calçado de forma afoita. Quando a esposa insistiu em perguntar o motivo de tanta agitação, ele apenas resmungou: “Eu disse para aqueles babacas que não era para escavar naquele lugar!”. E mais não falou. Pegou a filha por uma mão, a esposa pela outra e assim saíram correndo na direção do estacionamento, que ficava distante uns 500 metros dali.

            Com o coração batendo acelerado e sentindo um medo que se tornava quase palpável, mesmo sem saber o porquê, não tive dúvidas e saí correndo também, assim como algumas outras poucas pessoas que notei com o canto do olho. Mal havia dado alguns passos quando percebi a terra tremendo sob os meus pés. O terremoto foi rápido, não deve ter durado mais do que 5 segundos, mas foi tão intenso a ponto de fazer com que eu e todos que consegui avistar caíssemos no chão. Escutei o barulho de árvores tombando, e um estrondo muito forte que deduzi ser um transformador de energia elétrica explodindo sobre algum poste, porque muitas das caixas de som silenciaram em seguida. Ouvi alguns palavrões, crianças chorando e expressões de incredulidade.

            Ainda estava me levantando, quando começaram os gritos. No início eram poucos, mas muito rapidamente aumentaram de quantidade e intensidade. Os primeiros pareciam vir das proximidades do rio, e logo foram subindo, para a direção onde eu estava. Então várias outras pessoas começaram a correr e dentro de instantes o pânico foi se espalhando pelo Parque. Aquilo estava vindo!

            Sem titubear, me botei a correr novamente, tentando nem olhar para os lados para não me distrair ou perder tempo. E os gritos aumentavam. Gritos de pavor, de dor, ou o que quer que fosse, mas eram gritos terríveis, de gelar o sangue. Tive a impressão de ter ouvido um som diferente, difícil de descrever, mas estranho o suficiente para me deixar ainda mais assustado. Eu corria como se não houvesse amanhã, porque talvez se aquilo me alcançasse não haveria mesmo.

            Algumas pessoas me ultrapassavam na corrida e isso fez com que eu decidisse largar a mochila para ficar mais leve e rápido. Chegando no estacionamento, as pessoas embarcavam nos carros e partiam o mais rapidamente que podiam. A pressa era tanto que alguns veículos colidiam nos outros e começava uma sinfonia de buzinas e xingamentos. Em desespero, algumas pessoas tentavam pedir carona e se enfiar nos carros das outras, mas quase ninguém colaborava, deixando para trás homens, mulheres e crianças que gritavam e choravam, apavoradas. Eu decidi não perder tempo dependendo da caridade alheia e segui para fora do Parque a pé mesmo, tentando controlar o fôlego na corrida.

            Foi então que, se sobrepondo ao choro, aos gritos e aos estrondos de árvores caindo, ouvi novamente aquele barulho, dessa vez tão alto, claro e horripilante que quase me deixei dominar pelo pavor. Não era um urro, não era um rosnado. Não sei o que era, mas com certeza não era humano e nem vindo de qualquer animal que eu conhecesse. Pela potência do som, vinha de algo grande, muito grande. Mesmo sem parar para olhar, tive a impressão de que a coisa vinha por entre a mata, pelo lado direito do portão do Parque e que, provavelmente iria atravessar a cerca e bloquear a estrada que ia em direção à cidade. Por isso, quando passei pelo portão e cheguei na rodovia, corri para o lado contrário.

            Percebi que várias pessoas tiveram ideia semelhante e seguiram na mesma direção que eu. Parece que foi o mais acertado, pois do lado oposto continuavam vindo gritos, sons que imaginei serem de carros colidindo em algo e até uma explosão. Mas, não havia motivo para diminuir o ritmo. Logo aquele som infernal ecoou novamente, logo atrás de nós. Agora eram alguns membros do nosso próprio grupo de fugitivos que gritavam apavorados, decerto porque cometeram o erro de olhar para trás e vislumbrar aquilo.

            Uma moça loira passou correndo pela minha direita como se fosse uma maratonista, mas, quase imediatamente, percebi com o canto do olho que algo se projetou na direção dela e a puxou de volta rapidamente. Seria um tentáculo?! Não tenho certeza. Só sei que ouvi o perturbador barulho de algo se partindo, um grito estridente e então alguma coisa quente e pegajosa respingou na minha nuca.

            Comecei a sentir as forças me abandonando. Percebi que não iria conseguir correr por muito mais tempo e então o meu destino seria o mesmo daqueles que iam ficando para trás, que gritavam e depois se calavam para sempre.

            Nesse meio tempo, pelo menos dois carros que vinham na nossa direção, deram meia-volta e fugiram pelo mesmo caminho de onde surgiram, sem ajudar a ninguém. Quando já estava começando a ficar sem esperanças, ouvi um ronco de motor e olhei para o lado direito. Em uma estrada de terra que seguia paralela à rodovia onde estávamos, vi uma antiga camionete F1000 se aproximando rapidamente. Ao volante estava um homem de meia idade, com um chapéu na cabeça, gesticulando que era para irmos na direção dele. Percebi que havia mais gente na cabine, e na carroceria estavam dois garotos e um velho, todos acenando e gritando em nossa direção.

            No instante seguinte, a camionete saiu da estrada de terra com uma manobra brusca, levantando uma nuvem de poeira, adentrou no acostamento e diminuiu bastante a velocidade – quase parando – para que pudéssemos alcançá-la. Reunindo minhas últimas forças, percorri os metros finais o mais rápido que pude e fui o primeiro a chegar. Várias mãos pegaram nos meus braços e me puxaram para cima da carroceria. Imediatamente, me virei e ajudei os próximos que vinham chegando a subir também. Foram apenas duas moças e dois rapazes. Dos retardatários eu ouvi só os gritos, estridentes, sofridos, devastadores.

            Quando a camionete voltou a pegar velocidade, agora acelerando pelo asfalto, fechei os olhos com força e me sentei no assoalho da carroceria. Não queria de jeito nenhum olhar na direção da coisa. Não queria ver o que ela fazia com as pessoas que pegava. Achava que não iria resistir a uma visão dessas e a loucura iria me dominar, se  já não estivesse dominando. Mesmo assim, com os olhos fechados e a cabeça abaixada, ouvia o pessoal ao meu lado gritando “Meus Deus! Olha o tamanho daquela coisa!”, “Que horror!” “De onde saiu aquilo?!”.

            Na medida em que o motorista pisava fundo no acelerador, uma discreta sensação de alívio parecia se manifestar. Me recostei na lateral de carroceria e, provavelmente pela exaustão e pela pressão emocional, senti que estava desfalecendo. Antes de perder os sentidos, ainda ouvia frases aleatórias das pessoas ao meu redor. “Não se preocupem. Tem dois galões de gasolina aí do lado.”, “Perdi o meu celular!”, “Será que aquela coisa vai continuar nos seguindo?”, “Onde será que foram parar os meus pais?!”. E então apaguei completamente.

            Acordei suado e com dor de cabeça. Talvez esteja com febre. Já está anoitecendo. Todo mundo ao meu redor está dormindo, menos o velho, que observa a estrada, sério e silencioso. Não faço ideia se estamos rodando desde que apaguei ou se foi feita alguma parada. Agora tenho dúvidas se tudo que eu acho que se passou realmente aconteceu. Pode ser que eu esteja delirando, que seja loucura. Gostaria de acreditar que foi apenas um pesadelo, daqueles tão traumáticos que passam a nos assombrar em noites insones, como fantasmas. Provavelmente seria melhor do que encarar a frágil e enigmática noção daquilo que eu acreditava ser a realidade.   

        Olho ao redor e não reconheço a paisagem. Vejo apenas a mata, que agora me parece sombria e ameaçadora. Não sei para onde vamos, nem o que será de nós quando chegarmos. Pensei em perguntar ao velho se ele sabe onde vai dar essa estrada, mas tenho medo que ele responda que a estrada não leva a lugar nenhum. Talvez aquilo ainda esteja em nosso encalço. Talvez ela nos alcance quando mergulharmos completamente nas trevas da noite. Talvez a coisa já tenha me pegado. Talvez toda essa escuridão que se aproxima esteja dentro da minha mente. Talvez...