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31 de mai. de 2023

O MAL QUE LIBERTA

 

Por André Bozzetto Jr

 

            A melancolia está impressa como uma tatuagem arcaica no entardecer da pequena cidade. Há lixo espalhado por todos  os lados. Carros batidos, incendiados, abandonados. Nenhum em movimento. Cadáveres de metal que não transportam mais ninguém. As casas têm as portas e janelas abertas ou quebradas. Desolação escancarada, para dentro e para fora. No fim da rua, dois prédios estão pegando fogo. Duas tochas gigantes esperando para saudar a escuridão vindoura.

            Há mortos na calçada por onde Alan vem passando. Na sarjeta, o corpo de uma mulher com os pulsos cortados. Ela já fora bonita um dia, mas, com o sangue que escorreu pelo asfalto foi-se embora também sua beleza. Na velha árvore, balança o corpo de um idoso enforcado. Humano e vegetal, duas antigas testemunhas de um mundo que não existe mais. Lá na varanda daquela casa está o corpo de um homem grande e gordo em uma cadeira de balanço. A têmpora direita está arrebentada e há um revolver em sua mão. Alan observa a tudo de forma impassível. Em uma realidade em que a morte se tornou mais presente do que a vida, não há mais lugar para o espanto e o choque. O funeral do mundo já transpôs a fase do choro e do ranger de dentes.

            Em sua caminhada, Alan olha através da janela de uma casa. Lá dentro há uma poltrona de onde pendem os braços ensanguentados de alguém. Está morto, obviamente, mas a TV continua ligada. Nela se vê a imagem de um jornalista de terno e gravata segurando uma folha de papel em mãos enquanto lê uma mensagem: “... manchas vermelhas que podem ou não vir acompanhadas de prurido, febre, que pode atingir a marca de 39º, derrame ocular severo, dissociações cognitivas ocasionadas por alterações neurológicas que induzem à alucinação e...”.

            Alan volta a caminhar pela rua imunda. O resto do texto ele sabe de cor.

            “Já são dois dias repetindo essa mensagem o tempo todo. Merda de linguagem técnica. Deviam dizer: ‘você vai desenvolver feridas nojentas, dor de cabeça, olhos vermelhos e daí vai começar a alucinar até ficar completamente louco e se matar’. Fim do drama”.

            No seu caminho há um bar com mesas montadas na calçada. Em uma delas está um cara morto, sentado em uma cadeira escorada na parede. A garganta está dilacerada. Em sua mão, um pedaço de vidro quebrado e ensanguentado. Há muitas garrafas de cerveja em cima da mesa. Do outro lado, um cara musculoso, usando camiseta da seleção brasileira de futebol, fala de forma exasperada com o cadáver diante de si: “Ninguém sabe a origem?! Que nada! Foram aqueles filhos da puta que envenenaram o vento!”. Está febril, alucinando. Alan sabe o que vai acontecer com ele em breve.

            Logo adiante, sentado de pernas cruzadas na calçada, está um garoto, olhando fixamente para uma pedra que tem em mãos. Ele levanta a cabeça, olhando para Alan. Está suando, com os olhos vermelhos. “Meu celular ficou sem bateria...”, diz, de forma aborrecida. Medo e delírio, só que não em Las Vegas. Nada de glamour nestes recônditos apocalípticos.

            Na amargura de sua jornada, Alan vê diante do pátio de uma casa a desconcertante cena de uma adolescente despejando o líquido de um galão de gasolina sobre si. Ela lhe encara com olhos insanos, vermelhos como brasas.“Vou fazer como aquela youtuber explicou...”, diz ela, um segundo antes de acender o isqueiro e atear fogo em si mesma.

            Ainda que pesaroso, Alan se afasta, deixando a garota em chamas para trás. Diante do excesso de horror, a sombria impassibilidade se tornou o verniz de sua fachada decadente. Ele entendia a loucura de cada uma daquelas mentes.

            “Eles me enxergam, mas não no mundo real. Me veem apenas como coadjuvante no mundo de suas próprias ilusões”.

            Sob as nuvens escuras do fúnebre anoitecer, Alan percebe flocos esbranquiçados caindo do céu. Ele manuseia a substância.

            “Neve? Não. São cinzas. Símbolos que vêm do céu. A derrocada de nosso tempo”.

            Descobre a origem do fenômeno ao passar diante do hospital pegando fogo. Diante do prédio há vários carros batidos e abandonados. Há também cadáveres. Nenhum sinal de vida.

            “O colapso do último socorro. Esperanças ardendo como a febre”.

            Após mais alguns minutos de soturna caminhada, Alan avista um bosque obscuro, de árvores grandes a antigas, já no final da cidade.

            “Lá está a floresta, nos observando enquanto a civilização queima. As árvores poderiam rir de nós? Acho que não. Só os humanos seriam tão mesquinhos”.

            Em gesto quase teatral, ele retira da mochila um calhamaço de papéis. A reflexão sobre eles tem o efeito de uma unha indelicada que arranha as cicatrizes de feridas antigas e profundas.

            “Foi lá que tive pela primeira vez essa pretensão de ser escritor. Quase quarenta anos depois e nenhum livro concluído. Apenas uma coletânea de bobagens pretensiosas e mentiras mal contadas. A sina de nossos dias”.

            Encenando seu derradeiro drama – ainda que sem qualquer plateia – Alan segue caminhando e espalhando pelos ares as folhas do manuscrito, que voam detrás de si.

            “Mas, como réquiem de uma era, a verdade finalmente vem bem a calhar”.

            Na entrada do bosque, à meia distância, Alan avista a menina olhando para ele. É como ele se lembrava: loira, com os longos cabelos presos em duas tranças, uma de cada lado da cabeça. O vestido imaculado adornando a pureza de seus treze anos. Ela tem um sorriso nos lábios.

            “Lá está ela. Com a beleza preservada pelas décadas passadas. Nada das máculas do nosso tempo. Livre do peso do agora”.

            A menina se embrenha na floresta escura e Alan a segue.

            “O vento está mais forte. Talvez sejam nossas próprias vozes, ecoando desde o passado”.

            Eles passam por um casal de idosos enforcados um ao lado do outro, no galho de uma grande árvore.

            “Quem morre aqui fica em paz? Prefiro acreditar que sim. Cheiro de terra molhado ao invés de esgoto. A leveza da relva ao invés do peso do concreto”.

            Logo adiante, caído abraçado em um galão de agrotóxico, está o corpo de um homem gordo com roupas de caipira. Alan não destina qualquer atenção ao cadáver. Está compenetrado em observar a menina andando à sua frente, entre as árvores.

            “Ela está me levando ao local exato. Há lugares que se tornam verdadeiras cápsulas do tempo. Palcos para cenas marcantes de alguma vida. Tragédias? Por que não?”.

            A menina para ao lado de uma árvore específica. Imóvel, olha para Alan com expressão série.

            “Ali está. Estranhamente, cresceu uma acácia no local”.

            Então, Alan sente sua mente sendo invadida por uma torrente de imagens. Um fluxo contínuo que jorra de algum lugar do passado e lhe mostra os tons sombrios daquela tarde em que menina está sentada em um tronco com um garotos ao seu lado. Ele tem a mesma idade que ela, mas parece mais novo. Ambos estão sorrindo e cochichando, em clima de romance. É como uma cena de flashback com a menina e ele, quando jovens. E o problema é justamente esse. Não importa quantas vezes você assista o mesmo filme, o final é sempre o mesmo.

            “Naquela época havia apenas um tronco de árvore podre aqui...”.

            O rosto do garoto está bem perto da orelha da menina, confidenciando algo.

            “... onde abri meu coração...”.

            A menina dá uma gargalhada, empurra o jovem Alan com uma mão e com a outra faz sinal de negativo, balançando o dedo indicador.

            “... e ela me rejeitou!”.

            A menina se distrai, de joelhos, colhendo algumas flores. Ingênua, desconhecedora do ódio e do ressentimento, não vê quando o garoto se aproxima dela por trás, com olhar transtornado e um galho de árvore em mãos.

            “O fim da inocência. A ascensão de um coração negro e mau. Que sentimento é esse que macula para sempre toda uma existência?”.

            O rosto dele está encrespado de fúria quando seus braços baixam, desferindo o golpe.

            “Quando o sangue inocente é derramado, não há mais chance de redenção. Nunca mais”.

            Com o porrete improvisado e ensanguentado em mãos, o jovem Alan olha para cima. Começa a chover. O corpo da menina morta jazendo aos seus pés, em meio às flores que colheu, agora pisoteadas e esmagadas.

            “Talvez a chuva fosse a tentativa da floresta de limpar a mancha que deixei na história de suas eras... ”.

            O garoto cava a terra com as próprias mãos, debaixo de chuva.

            “... ou fosse apenas o choro das árvores, em luto por causa dela”.

            Ele tapa o buraco manualmente.

            “Ninguém nunca a encontrou...”.

            Em pé, ele observa a cova recém-concluída. Poças já se formam ao redor, por causa da chuva.

            “... e nem seria possível. Esse era um lugar que existia só para nós”.

            Com sua mente vacilante e doentia já de volta ao tempo presente, Alan – o fosso negro de ressentimento e amargura que aquele garoto se tornou – retira da mochila uma pá de jardinagem.

            “Chegou a hora. Enquanto ainda tenho tempo...”.

            Ele escava aos pés da acácia.

            “... de buscar uma apoteose para essa tragédia dos anos perdidos...”.

            A ossada da menina, com partes decompostas do vestido, aparece em meio à terra.

            “... e encontrar você. Pela última vez”.

            De joelhos diante do buraco aberto, Alan – muito suado, trêmulo e com os olhos sendo progressivamente tingidos por um grotesco tom de vermelho –  retira da mochila uma faca de caça.

            “Não tenho medo de ir para o inferno”.

            Apesar de trêmula, a mão de Alan não hesita. Ele corta a própria garganta com a grande faca. O sangue jorra.

            “Vivi no inferno até hoje. Ele sempre esteve dentro de mim”.

            Ele cai no interior da cova.

            “Rejeição, desprezo, medo, remorso, solidão, dor, loucura... Cicatrizes eternas tatuadas na minha alma”.

            Recosta a sua cabeça junto ao crânio descarnado da menina.

            “Mas agora sinto que isso está acabando. Talvez seja tudo uma ilusão, e quando eu reabrir os olhos estaremos de novo naquele dia, sentados no velho tronco, antes de você descobrir que o mal existia”.

            Coloca a mão sobre os ossos da clavícula, como se estive tentando abraçar a morta de forma afetuosa.

            “Ou talvez você não esteja mais lá... talvez eu não te veja nunca mais... talvez a escuridão desse céu sem estrelas... as sombras dessa floresta secular... me tomem por completo...”

            O sangue que escorre de sua garganta cortada é abundante. Seus olhos vermelhos já estão vidrados... se apagando...

            “... e eu fique aqui para sempre... chorando e sangrando... sozinho... no escuro”.

 

 

 

 

P.S:
Uma versão em quadrinhos deste conto foi publicada na clássica revista CALAFRIO, edição de Nº 76, com desenhos de João Ferreira. Para quem tiver interesse em adquirir essa ou outras edições da revista, é possível requisitar diretamente com o editor Daniel Saks através do e-mail: revistacalafrio@gmail.com

 


   


 

14 de mai. de 2023

EM ALGUM LUGAR DA RS-332

 

Por André Bozzetto Jr

 

            As luzes estroboscópicas que animam a festa fazem às vezes de portal dimensional e eu estou de novo lá. Só mais uma vez – como das outras – que nunca é a última de verdade. Dançando com a ginga de um bloco de mármore e a desenvoltura de uma montanha de granito. Bebendo cerveja morna e azeda, mas que depois das 03 da manhã parece um elixir dos deuses. Observando em meio às luzes coloridas os rostos que, no ar etílico da noite, parecem sempre mais bonitos, sempre mais jovens. Não é curioso, que no fim de um baile de interior tanta gente feia se torne bonita, e que muitos rejuvenesçam como se por mágica? Apenas em relação ao cheiro é que não cabe muita poesia. Perfume é joia rara. O comum é o trinômio: cerveja, cigarro e sovaco. Será que ainda está dando briga lá fora?

            Embarcamos no Chevette vermelho daquele amigo engraçado e partimos. A madrugada já vai adiantada e seguimos felizes pela RS-332, a rodovia da parte alta do vale, por onde transitaram tantos sonhos e agora, para mim, emergem lembranças a cada curva. Naquele ginásio teve uma festa de carnaval com banho de espuma. Ali na frente uma vez pifou o Opala no qual voltávamos de outra festa tipo essa. Naquela curva quatro amigos capotaram em outro Chevette – um branco, dessa vez.

            O motorista ligou o rádio e estava tocando The Killing Moon, da banda Echo and The Bunnymen. Bem, essa parte não é verdade. Essa música é a que estou ouvindo agora, enquanto escrevo essas linhas. Naquela noite o rádio devia estar tocando axé, pagode romântico ou, na melhor das hipóteses, dance music, pois estávamos em meados da década de 90 e era isso que infestava as rádios. Mas quem está fazendo o relato sou eu e muitas vezes a ficção é bem mais divertida do que aquilo que chamamos de realidade, não é mesmo?

            Fiz todas essas digressões apenas para contar que naquela ocasião, assim como em várias outras, eu vi aquele cara. Ele apenas observava. Na época eu ainda não sabia quem era, e como ele não fazia nada além de observar de forma discreta e até sorrateira, eu o apelidei de “O Espião”. O sujeito tinha uma aparência estranhamente familiar e sempre que eu o via sentia uma sensação esquisita, como um déjà-vu ao contrário. Não era como vivenciar uma cena com a impressão de já ter vivido essa mesma cena anteriormente, mas sim como se o fato ainda fosse ser vivenciado de novo, no futuro. 

           Como alguém se sentiria se conseguisse perceber que não está revivendo suas próprias memórias, mas sim participando das memórias de um outro alguém? Talvez tenha sido a primeira vez em que fiquei intrigado com essa espécie de paradoxo.

            Mas, as reflexões tiveram que ser interrompidas. Alguém me sacudiu no banco de trás e eu acordei. Desci do Chevette meio cambaleante e percebi que o domingo já estava raiando. Passaríamos o dia curando a ressaca e na segunda-feira seríamos adultos de novo.       

3 de abr. de 2023

BOA NOITE, MEU AMIGO.

 

                                                                           Por André Bozzetto Jr

  

        São duas horas da madrugada. Momento em que até o Zolpidem para de fazer efeito. O telefone toca e eu sei que é você. Como sempre, penso em atender e perguntar por que você fez isso consigo mesmo. Mas, nunca pergunto. Tenho certeza que a resposta iria doer. Ao invés disso, como de costume, pergunto por que você está me ligando. “Porque você é o único que ainda se lembra... que ainda se importa”, ouço sua voz dizer. No fundo, os gritos, o choro e os pedidos de socorro parecem mais vívidos do que dá ultima vez nos falamos. Arrisco pedir onde você está. “Ora, o que eu fiz foi terrível. Você sabe onde estou. No único lugar onde eu poderia estar”. Para disfarçar o nervosismo, tento ser engraçado e digo que não sabia ter telefone no inferno. “Não tem mesmo. Você sabe que não estamos falando ao telefone”. É apenas na minha mente, né? “E por acaso existe algo fora da sua mente?”. Sinto o coração acelerar. Minhas mãos estão suadas e tremendo. Lhe explico que a minha próxima consulta ao psiquiatra e só no mês que vem e que não estou a fim de aumentar a dose dos remédios por conta própria. Então pergunto por que você não colabora e para de me ligar, de uma vez por todas. “Eu quero parar. Mas para isso você deve me esquecer. Já devia ter esquecido. Todos já esqueceram”. Eu não estava preparado para essa resposta. Esquecer?! Sempre fomos os melhores amigos um do outro, desde a infância. Vivemos tantas coisas juntos... “Sim, e foi lindo, mas agora acabou. Siga em frente.” Eu percebo que você vai desligar, então começo a falar o mais rápido que consigo. Conto que encontrei uma foto do nosso time de futebol da adolescência, que deve ter sido tirada naquele torneio que jogamos e ganhamos, lá em São Valentim. Digo que, estranhamente, não consigo lembrar qual de nós marcou o gol do título, na final. “Foi você. É claro que foi você. Foi um golaço. Uma bomba da entrada da área, lembra?” E então eu lembro. Vejo a bola estufando as redes. Ouço os gritos da galera. Todo mundo correndo e me abraçando. Sorrisos, vibração. Na comemoração, me jogaram para o alto e eu olhei para o sol, lá em cima. Parecia que eu flutuava, em câmera lenta, e o sol nos abençoava, satisfeito por sermos ainda todos inocentes. Voltamos na caçamba de um caminhão, exibindo as medalhas e o troféu, tomando Coca-Cola e gritando para quem passava por nós. Quando cheguei em casa, todo mundo me deu parabéns. A medalha deve estar até hoje pendurada no meu antigo quarto, na casa dos meus pais. Foi um dia feliz. E, com esse sentimento de felicidade, desligo o telefone que nunca cheguei a atender, volto para a cama, da qual nunca levantei, e contemplo a esposa dormindo tranquilamente o sono dos justos. Ela nada sabe dos meus dramas noturnos. Não tem como saber que não fui eu quem marcou aquele gol. Eu jogava de zagueiro e era proibido pelos demais de passar do meio-campo. Quem marcou o gol foi você, o camisa 10. E então volta a ficar claro o porquê de eu continuar atendendo suas ligações. Com os olhos fechados, vislumbro de novo aquele sol brilhando lá em cima e, mesmo que seja apenas na minha mente, ele ainda me lembra que éramos inocentes, e mais do que isso, éramos companheiros, éramos colegas, éramos amigos. E alimentávamos esperanças e tínhamos sonhos. E fomos felizes. Lágrimas umedecem meus olhos, mas eu não as seco. De repente, o sono volta com tudo e decido não resistir a essa dádiva. “Boa noite, meu amigo.”

9 de mar. de 2023

TECNODEMÔNIOS - A TORRE

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Foi na quarta-feira de noite que o meu irmão me ligou empolgadíssimo, dizendo que eu deveria ir até a casa dele – a mesma casa em que vivemos durante toda a infância e adolescência, mas que ele habitava sozinho desde que nossos pais faleceram e eu me mudei para Porto Alegre – para ver uma coisa fantástica que ele havia descoberto, ou inventado, algo assim. Não quis me dar detalhes, apenas insistiu que era um lance espetacular e que precisava me mostrar o quanto antes. Parecia meio fora de si, de tanta afobação. Prometi que iria no sábado de manhã.

            Francis sempre foi um cara meio esquisito, caladão. Nunca teve muitos amigos, ficou com pouquíssimas garotas. Depois que nossos pais morreram, ficou mais isolado ainda. A psicóloga disse que ele deveria fazer terapia e talvez até procurar um psiquiatra, mas ele nunca quis nem uma coisa nem outra. Trabalhava dando aulas de informática em escolas de computação mantidas pela Prefeitura, e, quando não estava trabalhando, ficava enfiado dentro de casa, mexendo no computador ou assistindo TV. De Porto Alegre até a nossa cidade natal dá umas três horas de viagem, então eu sempre procurei visitá-lo uma ou duas vezes por mês, aos finais de semana e geralmente o encontrava mobilizado em construir algo. Geralmente algum aparelho eletrônico que não funcionava – ou, nas raríssimas ocasiões em que funcionava – se revelava completamente inútil.

            Na sexta-feira tive uma noite agitada por pesadelos estranhos e acabei perdendo a hora no sábado de manhã. Saí de Porto Alegre quando já era praticamente meio-dia. Durante a viagem, percebi que o céu ia ficando cada vez mais escuro conforme avançava. Quando finalmente cheguei, a impressão era de que um temporal iria desabar sem demora.

            Me chamou a atenção o fato de que as ruas da cidadezinha estavam completamente desertas. Por mais que a população fosse de apenas 3 mil habitantes, era incrível não ver uma pessoa sequer nas calçadas, nenhum carro transitando.

            Ao estacionar diante da casa do Francis, o silêncio era tanto que chegava a causar um mal-estar. Comecei ter a sensação de que algo estava errado. Bati na porta e ele não atendeu. Chamei, gritei pelo seu nome, e nada. Tentei abrir a porta, mas estava trancada. Então dei a volta no pátio e encontrei a porta da cozinha aberta. O interior da casa estava escuro e cheirava mal. Pilhas de louça suja na pia e restos de comida sobre a mesa. Havia uma bagunça em todos os cômodos, com caixas de papelão e plástico bolha pelo chão. Parecia que o meu irmão tinha comprado muitas coisas recentemente.

            Aquele pressentimento desagradável que eu sentia desde que cheguei na cidade, só foi aumentando com o sumiço do Francis e o estado da casa, e piorou ainda mais quando me aproximei da escrivaninha do seu quarto e dei uma olhada no monte de papéis que estavam espalhados ali. Havia projetos que pareciam ser de máquinas e estranhos aparelhos eletrônicos, mas também desenhos feitos à mão de criaturas monstruosas e horríveis, além de algumas paisagens sinistras e sombrias. Sobre a cama estavam jogados alguns livros de bruxaria, demonologia ou merdas desse tipo, ao lado de um caderno que continha anotações que, para mim, pareciam completamente sem sentido, envolvendo algo chamado “Dillodokers”. Comecei a temer que a sanidade do meu irmão tivesse desandado de vez.

            Decidi ir até a casa ao lado falar com os Gardelli, que eram nossos vizinhos desde quando nossos pais anda estavam vivos. Talvez eles tivessem informações sobre o Francis.

            Como ninguém atendeu quando bati na porta, girei a maçaneta e ela abriu. O senhor Luiz e a dona Marli estavam sentados no sofá diante, da TV. Tinham o olhar vidrado, como se estivessem hipnotizados. Nem reagiram à minha presença. Falei com eles, mas não responderam. Achando aquilo muito estranho, tentei falar mais alto e até gritar, mas sem resultado. Por fim, chacoalhei pelos ombros tanto o velho quanto a velha, mas nenhum deles reagia. Permaneciam em silêncio, olhando para a TV com expressões sérias.

            E por falar na TV, quando olhei para a tela, me senti ainda mais incomodado e até com uma ponta crescente de medo. A imagem escura e cheia de chuviscos exibia uma série de cenas bizarras, com seres deformados e grotescos se movendo por lugares tenebrosos, intercalando com a exibição de atos de violência e perversão sexual entre pessoas que pareciam completamente enlouquecidas.

            Apesar do horror das imagens, eu não consegui tirar os olhos da tela. Talvez fosse acabar entrando em transe também, e permaneceria ali, hipnotizado, se algo não tivesse desviado minha atenção. Percebi que alguns daqueles locais medonhos e várias das criaturas monstruosas que estavam sendo exibidas eram idênticas às dos desenhos que encontrei no quarto do meu irmão. Essa constatação me fez ter um sobressalto e parei de olhar para a TV.

            Com a certeza de algo realmente ruim estava acontecendo, saí da casa dos Gardelli e caminhei até o outro lado da rua, onde morava a Dona Cleide. Pela janela entreaberta da sala, vi ela, a filha adolescente e a mãe idosa sentadas no sofá, assistindo àquelas cenas infernais através da televisão. Chamei, gritei, mas nenhuma delas esboçou qualquer reação.

            Não satisfeito, andei até a casa ao lado, do Beto, nosso amigo de infância. Como sabia que ele nunca trancava a porta, nem bati, já abri e fui entrando. Na sala de estar não havia ninguém, mas quando fui para a cozinha, lá estava ele, sentado à mesa com um lata de cerveja na mão, que já devia estar vazia há muito tempo. Estava tão hipnotizado quanto todos os outros, com os olhos vidrados na TV sobre o balcão.

            Já começando a ficar desesperado, balancei o Beto de um lado para o outro, dei um tapa no seu rosto e tentei arrancá-lo da cadeira. Nada disso fez qualquer efeito. Olhar para a TV com aqueles olhos arregalados e expressão séria era tudo o que ele fazia.

            Voltei correndo para a casa da nossa família. Peguei o telefone e liguei para o Dr Lauro, médico e amigo da nossa família desde sempre. Talvez ele tivesse alguma notícia sobre o Francis ou pudesse fazer ideia do que estava acontecendo. Ninguém atendeu. Liguei então para o hospital, e novamente, ninguém atendeu. Cada vez mais amedrontado e irritado, liguei também para a Polícia, mas, sem resultado.

            Sem saber o que fazer, saí para a rua, gritando um monte de palavrões. O céu estava tão escuro e repleto de trovões ecoando para todos os lados que parecia só um questão de pouco tempo até começar um dilúvio.

            Embarquei no carro e comecei a andar lentamente pelas ruas da cidadezinha. Vi um gato em cima de um muro ali, dois cachorros revirando uma lata de lixo mais para lá, mas nada de seres humanos. Nem um único carro circulando. Em algumas casas onde havia janelas, cortinas ou portas entreabertas, dava para se ver pessoas imóveis assistindo TV. Zumbis, não em busca de carne fresca como nos filmes, mas sim de imagens bizarras emanadas através das telas de aparelhos eletrônicos.

            Estava tentando decidir se iria até o hospital ou à delegacia, na esperança de encontrar algo diferente ou uma pista do paradeiro do meu irmão, quando um forte relâmpago me induziu instintivamente a olhar para o alto, na direção dos morros que circundavam a cidade. Foi aí que avistei algo que me chamou a atenção. A torre de metal que havia lá em cima, e que estava abandonada há décadas. Ela tinha pertencido a um pequeno canal de TV comunitário, que funcionou por pouquíssimo tempo e logo foi fechado. Percebi que uma grande antena, nova e reluzente havia sido instalada no alto da torre. Ela não estava lá na última vez em que eu estivera na cidade, uns 15 dias antes. Do que será que se tratava? Sentindo uma incômoda intuição, acelerei e parti naquela direção.

            Em poucos minutos já estava no topo da colina, cuja estrada de acesso era totalmente cercada pela mata. Estacionei diante da cerca que delimitava a propriedade e vi que o portão estava aberto. Quando entrei, a primeira surpresa: o Fiat Uno do meu irmão estava estacionado ali, com as portas dianteiras e do porta-malas abertas. Havia caixas da papelão, plástico bolha e papel de embrulho espalhados pelo chão, na direção do pequeno prédio retangular que ficava aos pés da torre.

            Pichações, vidros quebrados e mato crescendo por entre os ambientes deixavam claro o estado de abandono a que o local foi sujeitado com o passar dos anos e reforçavam sua aparência incômoda e assustadora. Com o coração batendo acelerado, entrei pela porta de metal enferrujado, que não estava trancada. O que vi lá dentro me apavorou tanto que acreditei que fosse desmaiar, ou perder completamente a sanidade.

            No fundo do aposento havia um painel – visivelmente recém-instalado – cheio de componentes eletrônicos e luzes coloridas e piscantes... E diante dele estava o meu irmão.

            Francis estava suspenso por correntes presas em seus pulsos e afixadas no teto. Sua cabeça estava partida – arrebentada de dentro para fora, é a maneira correta de descrever – e no interior do seu crânio alguma coisa se movia, um tipo de criatura que projetava finos tentáculos para fora e que se conectavam nas entradas dos equipamentos como se fossem plugues orgânicos e gosmentos. Por mais incrível que pareça, tive a impressão de que talvez o meu irmão pudesse não estar morto. Seus olhos semicerrados pareciam mais de alguém em estado de coma do que propriamente um cadáver.

            Mas, não tive como averiguar melhor. O monstro que estava dentro do crânio de Francis deve ter notado a minha presença, pois começou a fazer uns barulhos medonho e balançar alguns tentáculos na minha direção. Foi então que a surpresa e o choque deram lugar ao pavor e ao desespero. Comecei a gritar – tomado pelo pânico e pela raiva – e gritando saí porta afora procurando por alguma arma improvisada.

            Como dei de cara com o carro do Francis, contornei até o porta-malas e retirei de lá a chave de rodas. Aos gritos e com os olhos cheios de lágrimas, retornei ao interior do prédio e comecei a distribuir pancadas para todos os lados. Bati nos tentáculos da criatura que estavam conectados nos aparelhos, mas, além de não dar muitos resultados, ela passou a tentar me agarrar com os membros livres. Na confusão, comecei a bater também nos equipamentos, que se quebravam causando curtos-circuitos e gerando faíscas e pequenas labaredas ao redor.

            Um tentáculo do monstro se enroscou no meu pescoço, me obrigando a partir na direção do Francis e bater na sua cabeça, de onde saiam os membros daquela criatura nojenta. Eu gritava e batia com força, de novo e de novo, até sentir o aperto ao redor do meu pescoço ceder. Voava sangue e gosma para todos os lados e a coisa sibilava furiosa enquanto eu continuava batendo, e provavelmente continuaria até não sobrar mais nada, se o fogo originado nos aparelhos não tivesse se alastrado rapidamente, dando início a um incêndio.

            Corri para fora e, poucos instantes depois, o fogo já consumia o pequeno prédio por completo. Lá dentro, a criatura havia silenciado. Seria impossível tirar Francis daquelas correntes antes de as chamas bloquearem a saída. Além disso, ele não poderia estar vivo naquelas condições. Seria melhor que não estivesse.

            Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando para o clarão das chamas que contrastava com a escuridão do céu, formando uma cena fantasmagórica. O reflexo das labaredas na estrutura metálica da torre contribuía para o tom espectral da paisagem.

            Então ouvi barulho de carros se aproximando. Quando olhei para trás, já havia pelo menos quatro veículos estacionando diante do portão, e várias pessoas começaram a desembarcar deles. Eu conhecia quase todas: o Zé, do açougue, o Antônio, da padaria, os dois irmãos Shwertz, Beto, o meu amigo de infância, entre outros. Mas, porque será que estavam portando facas, machados, facões e até armas de fogo? Teriam despertado do transe e deduzido o que se passava? O fogo na torre teria chamado sua atenção? Teriam vindo com a intenção de destruir o monstro que estava controlando a tudo? A maneira séria – eu diria até “furiosa” – com que olhavam para mim me fez desconfiar do contrário.

            Antes mesmo que eu pudesse dizer qualquer coisa, houve um estrondo e, quase ao mesmo tempo, o zunido de um bala que passou centímetros acima da minha cabeça e atingiu a parede logo atrás. Então o grupo começou a correr na minha direção com as armas em punho e ódio no olhar, gritando todo tipo de xingamentos contra mim. Estava claro – apavorantemente claro – que era eu quem eles queriam matar.

            Sem pensar duas vezes, saí correndo em total desespero. Passei rapidamente pela lateral direita do prédio em chamas e me embrenhei na mata fechada. Entre as árvores já estava bem escuro, pela presença das nuvens da tempestade iminente e pela noite que se aproximava. Depois de correr por alguns metros, tendo meu corpo arranhado e até cortado pelos galhos e arbustos do denso matagal, avistei um declive do meu lado direito. O barranco tinha uns três metros de altura, aproximadamente, e seguia em paralelo às grandes árvores na direção da estrada. Isso me deu uma ideia. Como tinha uma certa vantagem em relação aos meus perseguidores, que ainda não estavam no raio de visão, pulei para baixo da encosta e segui agachado, no sentido contrário ao qual tinha vindo. Alguns instantes depois, pude ver por entre a vegetação a turba passando reto lá em cima do barranco, seguindo para o interior da floresta.

            Segui desse jeito o mais rapidamente que pude, até avistar a cerca da propriedade. Então corri na direção do portão e embarquei no meu carro. Engatei ré pisando fundo e fazendo voar cascalhos para fora da estrada. Manobrei e parti acelerando na direção da rodovia. Pelo retrovisor, pude ver algumas pessoas surgindo logo atrás, saindo da mata. Escutei dois estrondos. Um dos tiros arrebentou o vidro do para-brisa traseiro e o outro atingiu o retrovisor da porta direita. Mas eu já estava fora de alcance. Em instantes cheguei ao asfalto e acelerei pra valer na direção sul. Quase ao mesmo tempo, o temporal que estava se ensaiando finalmente desabou. A chuva forte dificultava a visibilidade, mas eu não diminuía a velocidade. Não conseguiria aliviar o pé, mesmo se quisesse. 

        Agora, já faz mais de uma hora que estou na estrada. A chuva diminuiu bastante. Tenho cruzado por vários carros o tempo todo e pelas cidades por onde passei, tudo parece normal. O que quer que tenha acontecido lá na minha terra natal, parece ter sido um evento local, isolado. A sensação de “normalidade” é tão concreta que começo a me perguntar se as coisas realmente aconteceram do jeito que me parece terem acontecido. A hipótese de um pesadelo ou algum tipo de estranha ilusão começa a se tornar mais palpável. O que devo fazer? Estou pensando em voltar para casa – em Porto Alegre – e telefonar para o Francis. Se ele não atender, então o corpo dele ainda deve estar lá, no prédio da torre, consumido em chamas, com o cérebro devorado por algum tipo de monstro infernal. Caso ele atenda, então é porque nada mais faz sentido, e quem terá sido envolvido pelos tentáculos da loucura sou eu.