31 de mai. de 2023

O MAL QUE LIBERTA

 

Por André Bozzetto Jr

 

            A melancolia está impressa como uma tatuagem arcaica no entardecer da pequena cidade. Há lixo espalhado por todos  os lados. Carros batidos, incendiados, abandonados. Nenhum em movimento. Cadáveres de metal que não transportam mais ninguém. As casas têm as portas e janelas abertas ou quebradas. Desolação escancarada, para dentro e para fora. No fim da rua, dois prédios estão pegando fogo. Duas tochas gigantes esperando para saudar a escuridão vindoura.

            Há mortos na calçada por onde Alan vem passando. Na sarjeta, o corpo de uma mulher com os pulsos cortados. Ela já fora bonita um dia, mas, com o sangue que escorreu pelo asfalto foi-se embora também sua beleza. Na velha árvore, balança o corpo de um idoso enforcado. Humano e vegetal, duas antigas testemunhas de um mundo que não existe mais. Lá na varanda daquela casa está o corpo de um homem grande e gordo em uma cadeira de balanço. A têmpora direita está arrebentada e há um revolver em sua mão. Alan observa a tudo de forma impassível. Em uma realidade em que a morte se tornou mais presente do que a vida, não há mais lugar para o espanto e o choque. O funeral do mundo já transpôs a fase do choro e do ranger de dentes.

            Em sua caminhada, Alan olha através da janela de uma casa. Lá dentro há uma poltrona de onde pendem os braços ensanguentados de alguém. Está morto, obviamente, mas a TV continua ligada. Nela se vê a imagem de um jornalista de terno e gravata segurando uma folha de papel em mãos enquanto lê uma mensagem: “... manchas vermelhas que podem ou não vir acompanhadas de prurido, febre, que pode atingir a marca de 39º, derrame ocular severo, dissociações cognitivas ocasionadas por alterações neurológicas que induzem à alucinação e...”.

            Alan volta a caminhar pela rua imunda. O resto do texto ele sabe de cor.

            “Já são dois dias repetindo essa mensagem o tempo todo. Merda de linguagem técnica. Deviam dizer: ‘você vai desenvolver feridas nojentas, dor de cabeça, olhos vermelhos e daí vai começar a alucinar até ficar completamente louco e se matar’. Fim do drama”.

            No seu caminho há um bar com mesas montadas na calçada. Em uma delas está um cara morto, sentado em uma cadeira escorada na parede. A garganta está dilacerada. Em sua mão, um pedaço de vidro quebrado e ensanguentado. Há muitas garrafas de cerveja em cima da mesa. Do outro lado, um cara musculoso, usando camiseta da seleção brasileira de futebol, fala de forma exasperada com o cadáver diante de si: “Ninguém sabe a origem?! Que nada! Foram aqueles filhos da puta que envenenaram o vento!”. Está febril, alucinando. Alan sabe o que vai acontecer com ele em breve.

            Logo adiante, sentado de pernas cruzadas na calçada, está um garoto, olhando fixamente para uma pedra que tem em mãos. Ele levanta a cabeça, olhando para Alan. Está suando, com os olhos vermelhos. “Meu celular ficou sem bateria...”, diz, de forma aborrecida. Medo e delírio, só que não em Las Vegas. Nada de glamour nestes recônditos apocalípticos.

            Na amargura de sua jornada, Alan vê diante do pátio de uma casa a desconcertante cena de uma adolescente despejando o líquido de um galão de gasolina sobre si. Ela lhe encara com olhos insanos, vermelhos como brasas.“Vou fazer como aquela youtuber explicou...”, diz ela, um segundo antes de acender o isqueiro e atear fogo em si mesma.

            Ainda que pesaroso, Alan se afasta, deixando a garota em chamas para trás. Diante do excesso de horror, a sombria impassibilidade se tornou o verniz de sua fachada decadente. Ele entendia a loucura de cada uma daquelas mentes.

            “Eles me enxergam, mas não no mundo real. Me veem apenas como coadjuvante no mundo de suas próprias ilusões”.

            Sob as nuvens escuras do fúnebre anoitecer, Alan percebe flocos esbranquiçados caindo do céu. Ele manuseia a substância.

            “Neve? Não. São cinzas. Símbolos que vêm do céu. A derrocada de nosso tempo”.

            Descobre a origem do fenômeno ao passar diante do hospital pegando fogo. Diante do prédio há vários carros batidos e abandonados. Há também cadáveres. Nenhum sinal de vida.

            “O colapso do último socorro. Esperanças ardendo como a febre”.

            Após mais alguns minutos de soturna caminhada, Alan avista um bosque obscuro, de árvores grandes a antigas, já no final da cidade.

            “Lá está a floresta, nos observando enquanto a civilização queima. As árvores poderiam rir de nós? Acho que não. Só os humanos seriam tão mesquinhos”.

            Em gesto quase teatral, ele retira da mochila um calhamaço de papéis. A reflexão sobre eles tem o efeito de uma unha indelicada que arranha as cicatrizes de feridas antigas e profundas.

            “Foi lá que tive pela primeira vez essa pretensão de ser escritor. Quase quarenta anos depois e nenhum livro concluído. Apenas uma coletânea de bobagens pretensiosas e mentiras mal contadas. A sina de nossos dias”.

            Encenando seu derradeiro drama – ainda que sem qualquer plateia – Alan segue caminhando e espalhando pelos ares as folhas do manuscrito, que voam detrás de si.

            “Mas, como réquiem de uma era, a verdade finalmente vem bem a calhar”.

            Na entrada do bosque, à meia distância, Alan avista a menina olhando para ele. É como ele se lembrava: loira, com os longos cabelos presos em duas tranças, uma de cada lado da cabeça. O vestido imaculado adornando a pureza de seus treze anos. Ela tem um sorriso nos lábios.

            “Lá está ela. Com a beleza preservada pelas décadas passadas. Nada das máculas do nosso tempo. Livre do peso do agora”.

            A menina se embrenha na floresta escura e Alan a segue.

            “O vento está mais forte. Talvez sejam nossas próprias vozes, ecoando desde o passado”.

            Eles passam por um casal de idosos enforcados um ao lado do outro, no galho de uma grande árvore.

            “Quem morre aqui fica em paz? Prefiro acreditar que sim. Cheiro de terra molhado ao invés de esgoto. A leveza da relva ao invés do peso do concreto”.

            Logo adiante, caído abraçado em um galão de agrotóxico, está o corpo de um homem gordo com roupas de caipira. Alan não destina qualquer atenção ao cadáver. Está compenetrado em observar a menina andando à sua frente, entre as árvores.

            “Ela está me levando ao local exato. Há lugares que se tornam verdadeiras cápsulas do tempo. Palcos para cenas marcantes de alguma vida. Tragédias? Por que não?”.

            A menina para ao lado de uma árvore específica. Imóvel, olha para Alan com expressão série.

            “Ali está. Estranhamente, cresceu uma acácia no local”.

            Então, Alan sente sua mente sendo invadida por uma torrente de imagens. Um fluxo contínuo que jorra de algum lugar do passado e lhe mostra os tons sombrios daquela tarde em que menina está sentada em um tronco com um garotos ao seu lado. Ele tem a mesma idade que ela, mas parece mais novo. Ambos estão sorrindo e cochichando, em clima de romance. É como uma cena de flashback com a menina e ele, quando jovens. E o problema é justamente esse. Não importa quantas vezes você assista o mesmo filme, o final é sempre o mesmo.

            “Naquela época havia apenas um tronco de árvore podre aqui...”.

            O rosto do garoto está bem perto da orelha da menina, confidenciando algo.

            “... onde abri meu coração...”.

            A menina dá uma gargalhada, empurra o jovem Alan com uma mão e com a outra faz sinal de negativo, balançando o dedo indicador.

            “... e ela me rejeitou!”.

            A menina se distrai, de joelhos, colhendo algumas flores. Ingênua, desconhecedora do ódio e do ressentimento, não vê quando o garoto se aproxima dela por trás, com olhar transtornado e um galho de árvore em mãos.

            “O fim da inocência. A ascensão de um coração negro e mau. Que sentimento é esse que macula para sempre toda uma existência?”.

            O rosto dele está encrespado de fúria quando seus braços baixam, desferindo o golpe.

            “Quando o sangue inocente é derramado, não há mais chance de redenção. Nunca mais”.

            Com o porrete improvisado e ensanguentado em mãos, o jovem Alan olha para cima. Começa a chover. O corpo da menina morta jazendo aos seus pés, em meio às flores que colheu, agora pisoteadas e esmagadas.

            “Talvez a chuva fosse a tentativa da floresta de limpar a mancha que deixei na história de suas eras... ”.

            O garoto cava a terra com as próprias mãos, debaixo de chuva.

            “... ou fosse apenas o choro das árvores, em luto por causa dela”.

            Ele tapa o buraco manualmente.

            “Ninguém nunca a encontrou...”.

            Em pé, ele observa a cova recém-concluída. Poças já se formam ao redor, por causa da chuva.

            “... e nem seria possível. Esse era um lugar que existia só para nós”.

            Com sua mente vacilante e doentia já de volta ao tempo presente, Alan – o fosso negro de ressentimento e amargura que aquele garoto se tornou – retira da mochila uma pá de jardinagem.

            “Chegou a hora. Enquanto ainda tenho tempo...”.

            Ele escava aos pés da acácia.

            “... de buscar uma apoteose para essa tragédia dos anos perdidos...”.

            A ossada da menina, com partes decompostas do vestido, aparece em meio à terra.

            “... e encontrar você. Pela última vez”.

            De joelhos diante do buraco aberto, Alan – muito suado, trêmulo e com os olhos sendo progressivamente tingidos por um grotesco tom de vermelho –  retira da mochila uma faca de caça.

            “Não tenho medo de ir para o inferno”.

            Apesar de trêmula, a mão de Alan não hesita. Ele corta a própria garganta com a grande faca. O sangue jorra.

            “Vivi no inferno até hoje. Ele sempre esteve dentro de mim”.

            Ele cai no interior da cova.

            “Rejeição, desprezo, medo, remorso, solidão, dor, loucura... Cicatrizes eternas tatuadas na minha alma”.

            Recosta a sua cabeça junto ao crânio descarnado da menina.

            “Mas agora sinto que isso está acabando. Talvez seja tudo uma ilusão, e quando eu reabrir os olhos estaremos de novo naquele dia, sentados no velho tronco, antes de você descobrir que o mal existia”.

            Coloca a mão sobre os ossos da clavícula, como se estive tentando abraçar a morta de forma afetuosa.

            “Ou talvez você não esteja mais lá... talvez eu não te veja nunca mais... talvez a escuridão desse céu sem estrelas... as sombras dessa floresta secular... me tomem por completo...”

            O sangue que escorre de sua garganta cortada é abundante. Seus olhos vermelhos já estão vidrados... se apagando...

            “... e eu fique aqui para sempre... chorando e sangrando... sozinho... no escuro”.

 

 

 

 

P.S:
Uma versão em quadrinhos deste conto foi publicada na clássica revista CALAFRIO, edição de Nº 76, com desenhos de João Ferreira. Para quem tiver interesse em adquirir essa ou outras edições da revista, é possível requisitar diretamente com o editor Daniel Saks através do e-mail: revistacalafrio@gmail.com

 


   


 

14 de mai. de 2023

EM ALGUM LUGAR DA RS-332

 

Por André Bozzetto Jr

 

            As luzes estroboscópicas que animam a festa fazem às vezes de portal dimensional e eu estou de novo lá. Só mais uma vez – como das outras – que nunca é a última de verdade. Dançando com a ginga de um bloco de mármore e a desenvoltura de uma montanha de granito. Bebendo cerveja morna e azeda, mas que depois das 03 da manhã parece um elixir dos deuses. Observando em meio às luzes coloridas os rostos que, no ar etílico da noite, parecem sempre mais bonitos, sempre mais jovens. Não é curioso, que no fim de um baile de interior tanta gente feia se torne bonita, e que muitos rejuvenesçam como se por mágica? Apenas em relação ao cheiro é que não cabe muita poesia. Perfume é joia rara. O comum é o trinômio: cerveja, cigarro e sovaco. Será que ainda está dando briga lá fora?

            Embarcamos no Chevette vermelho daquele amigo engraçado e partimos. A madrugada já vai adiantada e seguimos felizes pela RS-332, a rodovia da parte alta do vale, por onde transitaram tantos sonhos e agora, para mim, emergem lembranças a cada curva. Naquele ginásio teve uma festa de carnaval com banho de espuma. Ali na frente uma vez pifou o Opala no qual voltávamos de outra festa tipo essa. Naquela curva quatro amigos capotaram em outro Chevette – um branco, dessa vez.

            O motorista ligou o rádio e estava tocando The Killing Moon, da banda Echo and The Bunnymen. Bem, essa parte não é verdade. Essa música é a que estou ouvindo agora, enquanto escrevo essas linhas. Naquela noite o rádio devia estar tocando axé, pagode romântico ou, na melhor das hipóteses, dance music, pois estávamos em meados da década de 90 e era isso que infestava as rádios. Mas quem está fazendo o relato sou eu e muitas vezes a ficção é bem mais divertida do que aquilo que chamamos de realidade, não é mesmo?

            Fiz todas essas digressões apenas para contar que naquela ocasião, assim como em várias outras, eu vi aquele cara. Ele apenas observava. Na época eu ainda não sabia quem era, e como ele não fazia nada além de observar de forma discreta e até sorrateira, eu o apelidei de “O Espião”. O sujeito tinha uma aparência estranhamente familiar e sempre que eu o via sentia uma sensação esquisita, como um déjà-vu ao contrário. Não era como vivenciar uma cena com a impressão de já ter vivido essa mesma cena anteriormente, mas sim como se o fato ainda fosse ser vivenciado de novo, no futuro. 

           Como alguém se sentiria se conseguisse perceber que não está revivendo suas próprias memórias, mas sim participando das memórias de um outro alguém? Talvez tenha sido a primeira vez em que fiquei intrigado com essa espécie de paradoxo.

            Mas, as reflexões tiveram que ser interrompidas. Alguém me sacudiu no banco de trás e eu acordei. Desci do Chevette meio cambaleante e percebi que o domingo já estava raiando. Passaríamos o dia curando a ressaca e na segunda-feira seríamos adultos de novo.