30 de jan. de 2021

CALAFRIO E MESTRES DO TERROR

Os grandes clássicos dos quadrinhos nacionais

Por André Bozzetto Junior

          Entre os diversos gêneros de histórias em quadrinhos que vieram a fazer sucesso – tanto em volume de vendas quanto em qualidade do material produzido – na prolífica trajetória da nona arte no Brasil, um dos que mais se destacou, com toda certeza, foi o Terror. Desde as décadas de 1930 e 1940 passou-se a ter alguma singela produção que, com a aceitação do público leitor e o despontar de artistas extremamente gabaritados, foi tomando fôlego de forma progressiva, até atingir o seu auge entre os anos de 1970 e 1980 e encontrar a decadência na primeira metade da década de 1990, onde a crise econômica da Era Collor, minou o poder de compra dos leitores e tornou o caro processo de impressão de revistas praticamente insustentável, levando inúmeras publicações ao cancelamento e editoras à falência.

          Durante a "Era de Ouro" dos quadrinhos de terror no Brasil, tivemos algumas publicações que se tornaram clássicas e até hoje são referência – não apenas da parte dos fãs, mas também de estudiosos do tema – pela qualidade do material publicado e pelo sucesso obtido junto a leitores ocasionais e colecionadores. Entre essas, é impossível deixar de mencionar as lendárias Kripta (RGE), Spektro (Vecchi), Capitão Mistério apresenta (Bloch), com suas infindáveis séries derivadas, Calafrio e Mestres do Terror (D-Arte). E são exatamente as duas últimas que se constituem no foco deste breve artigo, não apenas em função da minha predileção pelas mesmas, mas também por serem as únicas que continuam sendo editadas atualmente.

          A revista Calafrio passou a ser publicada em 1981, em São Paulo, pela editora D-Arte, surgida como uma derivação do estúdio de mesmo nome que prestava serviços a outras editoras, tendo como fundadores o argentino Rodolfo Zalla e o italiano Eugênio Colonnese, considerados por muitos como os maiores quadrinistas de terror que já atuaram em terras brasileiras. A publicação era impressa em preto e branco, com papel jornal no miolo e capa plastificada, no formato aproximado de 18 x 26 cm. Logo de cara, chama a atenção o extremo capricho com as capas, sempre ostentando belíssimas ilustrações que certamente contribuíam para atrair o interesse dos leitores nas bancas. No interior da revista, não era diferente. Os desenhos, geralmente excelentes, aliados a roteiros compostos por histórias quase sempre curtas e “avulsas” – que não demandavam conhecimento prévio ou obrigatoriedade de se continuar acompanhando futuras edições para conhecer o final – agradavam ao leitor esporádico e não comprometiam o interesse do colecionador. Os enredos em diversas ocasiões consistiam em adaptações de contos clássicos de autores estrangeiros, parecendo haver uma predileção por Edgar Allan Poe, mas na maioria das vezes eram histórias totalmente originais, abordando assombrações, vampiros, lobisomens, demônios e todo tipo de criaturas típicas do gênero.

          Neste ponto, creio ser muito válido mencionar aquela que provavelmente seja uma das características mais cativantes da revista, responsável por parte do grande apreço que possuo pela mesma, e que consiste justamente na brasilidade inerente à maioria das histórias. Ao longo da série há um constante desfiar de narrativas macabras vivenciadas por pessoas comuns, como o taxista da esquina, o açougueiro do bairro, eu ou você. São tramas que se passam nos subúrbios das grandes cidades, nas sombras perigosas dos arranha-céus de suas áreas centrais, nos recônditos isolados de cidadezinhas do interior, em áreas de matas afastadas ou nos sertões que entrecortam diversas regiões do nosso país. Figuras mitológicas oriundas de "causos" difundidos em nossa tradição oral e reminiscências do folclore popular e lendas urbanas seguidamente dão as caras, geralmente nas versões mais terrificantes possíveis. Tudo isso com aquela deliciosa “aura de anos 80”, que tanto agrada os nostálgicos de plantão, como este que aqui escreve.

          Alguns meses depois da Calafrio começar a ser publicada, a editora D-Arte coloca nas bancas a revista Mestres do Terror, supostamente com a intenção de pegar carona nas boas vendas da antecessora e reverter o prejuízo acumulado com a publicação do faroeste Johnny Pecos, cujo fracasso de vendas ocasionou o seu cancelamento na quarta edição. Em termos gerais, a Mestres do Terror seguia os mesmos moldes da Calafrio, tanto no que diz respeito ao material de impressão, quanto no esmero com as belíssimas capas. A já referida brasilidade das narrativas também estava ali, encantadoramente incrustada em muitas das histórias, até porque, boa parte dos roteiristas eram os mesmos em ambas as revistas.

          Em termos de diferencial, a Mestres do Terror tinha como marca registrada apresentar em cada edição algumas histórias com personagens recorrentes, ainda que em pequenos arcos fechados, que podiam ser compreendidos e apreciados sem a necessidade de se ler outras edições. Entre esses personagens, podemos citar os monstros clássicos imortalizados tanto na literatura como no cinema, a exemplo do Conde Drácula, Monstro de Frankenstein (em sua versão inspirada pelos lendários filmes em preto e branco da Universal), Kharis, a Múmia, além de personagens criados por artistas daqui, como Von Bóros, o Lobisomem, de Gedeone Malagola, Mirza, a Mulher Vampiro e o Morto do Pântano, idealizados por Eugênio Colonnese, entre outros.

          No que se refere aos roteiristas e desenhistas que transitaram pelas páginas das revistas, fica até difícil destacar algum em particular, pois havia uma profusão de grandes talentos como R. F. Lucchetti, Mozart Couto, Flávio Colin, Rubens Cordeiro, Ota, Jayme Cortez, Júlio Shimamoto, além dos já referidos Zalla e Colonnese, entre vários outros não menos gabaritados. Particularmente, sempre fui um grande fã das histórias do Ota – o reconhecidíssimo Otacílio Costa d'Assunção, lenda do meio dos quadrinhos nacionais, não apenas como artista, mas também como editor – pois muitos dos seus roteiros ambientavam as ações em gafieiras, bordéis, bairros decadentes, subúrbios sinistros, espeluncas diversas e estabelecimentos comerciais para lá de suspeitos, o que reforçava o tom de terror tipicamente brasileiro das narrativas, além das mesmas virem ocasionalmente pontuadas por perspicazes doses de ironia e humor negro.

          Infelizmente, em 1993 ambas as revistas foram canceladas. Calafrio parou na edição 52, tendo tido também cinco números especiais publicados. Mestres do Terror foi até o número 62, além de ter recebido quatro edições especiais.

          Em 2002, a editora Opera Graphica lançou um álbum especial comemorativo intitulada Calafrio – 20 Anos Depois, contando com histórias de autores como Eugênio Colonnese, Mozart Couto e Jayme Cortez, entre outros.

          No ano de 2011, Rodolfo Zalla decidiu ressuscitar a Calafrio com a alcunha “Edição de Colecionador” em parceria com a editora CLUQ. Apesar de retomar a publicação a partir no número 53, onde havia parado na editora D-Arte, a revista estava diferente, tanto nos aspectos de editoração quanto de impressão e, mesmo possuindo conteúdo de inegável qualidade, a baixa tiragem aliada ao elevado preço de capa e às restrições de distribuição fizeram com que o projeto tivesse vida curta, sendo cancelado na edição 64, em função das vendas inexpressivas.

          Depois de mais alguns anos de hiato, a Calafrio volta a ser publicada em 2015, quando Zalla fecha um acordo com os editores Daniel Saks e Fábio Chibilski, do selo Ink&Blood Comics. As novas edições, que notadamente procuram retomar os aspectos editoriais da séria clássica – acertadamente, diga-se de passagem – recomeçam a numeração de onde a editora D-Arte havia parado, ou seja, a partir do número 53. De quebra, a Mestres do Terror é igualmente trazida de volta da sepultura, depois de décadas de hibernação, também retomando a publicação de onde havia parado no início dos anos 90, ou mais especificamente, do número 63. Pouco tempo depois, Fábio Chibilski se desliga da edição das revistas para se dedicar a outros projetos e, com o falecimento de Rodolfo Zalla em 2016, Daniel Saks assume sozinho o papel de levar adiante a publicação de ambas. Editadas inicialmente sem uma periodicidade rígida, atualmente a Calafrio é publicada nos meses de abril, junho, outubro e dezembro, se encontrando na edição 69, e a Mestres do Terror, lançada nos meses de fevereiro e agosto, está no número 73.

          Publicadas de forma independente – e, inicialmente, quase amadora – as revistas da Ink&Blood Comics vêm apresentando uma notável evolução, tanto no que diz respeito a diagramação e impressão, quanto no que se refere ao conteúdo. Com a acertada proposta de republicar eventualmente algumas histórias clássicas de fase áurea, tanto a Calafrio quanto a Mestres do Terror têm aberto espaço para novos talentos dos quadrinhos nacionais, além de ter o grande mérito de trazer de volta às páginas diversos colaboradores da D-Arte que, com reedições de material raro ou conteúdo inédito, vêm abrilhantando cada novo número. Sidemar de Castro, Ivan Lima, Toni Rodrigues, Gian Danton e Bené Nascimento – o internacionalmente aclamado Joe Bennett – são alguns dos nomes encontrados nessa fase atual das revistas.

          Em um mercado editorial completamente diferente daqueles anos dourados da década de 1980, onde as bancas de revistas se encontram em extinção e até grandes editoras enfrentam problemas e recebem críticas em função de dificuldades de distribuição, e, principalmente, com um público leitor de quadrinhos muito menor do que no passado, é admirável a iniciativa da Ink&Blood Comics de manter a publicação das duas revistas, apesar do lento e baixo retorno financeiro. Percebe-se o profundo respeito com que o legado da Calafrio e da Mestres do Terror é tratado, e, apesar da natural necessidade de se adequar aos tempos atuais, o glorioso passado de ambas as publicações nunca é perdido de vista.

          Tanto com os autores novos quanto com os antigos, o que se lê, na grande maioria das vezes, são roteiros de alto nível, que atualizam o terror para os dias de hoje, mas ainda fazendo jus à tradição construída no passado. Na Mestres do Terror, por exemplo, novos personagens recorrentes passaram a dar as caras, renovando ou incrementando o plantel de monstros clássicos, sendo que podemos citar a vampira Anya, a Filha de Drácula, criada por Laudo Ferreira e Lillo Parra, e A Coisa do Tietê, também de Parra, entre outros.   Quanto aos desenhistas, a maioria é igualmente digna de mérito, embora alguns possuam um estilo de traço que parece não combinar muito bem com a temática das revistas – algo por diversas vezes mencionado por leitores nas sessões de correspondência das publicações. E por falar nas sessões de correspondência, elas se constituem em mais um elemento de ligação entre as diferentes fases das revistas, uma vez que as mesmas eram inegavelmente apreciadas no passado, não apenas pelo humor involuntário contido nas cartas de muitos leitores, mas também pelo tom irônico e por vezes ríspido das respostas por parte dos responsáveis, sobretudo do saudoso Reinaldo de Oliveira, um reconhecido ranzinza. Ao manter esse canal direto com o público, o editor possibilita um maior engajamento dos fãs junto às revistas.
 
          Calafrio e Mestres do Terror estão entre o que de melhor já se produziu em termos de quadrinhos de terror nacionais, sendo que vale muito a pena garimpar as edições antigas e acompanhar as publicações atuais, uma vez que elas representam não apenas um inegável elo de ligação com um passado saudoso para o público nostálgico, mas também possuem potencial suficiente para proporcionar um entretenimento de qualidade para todos os fãs, tendo ainda o mérito de possuir um preço de capa extremamente acessível quando comparado ao que se publica em termos de quadrinhos no Brasil atualmente.

       Para se adquirir as revistas, pode-se entrar em contato diretamente com o editor Daniel Saks através do e-mail: revistacalafrio@gmail.com

 


 

26 de jan. de 2021

A MÃO VERMELHA


 

Por André Bozzetto Junior

            Padre Hipólito já caminhava em círculos diante da casa canônica há mais de uma hora, quando subitamente uma Belina estacionou com uma freada brusca diante da calçada. Do interior do veículo desembarcou apressadamente um homem de meia idade, com cabelos desgrenhados e barba por fazer. A batina preta não deixava dúvidas quanto à identidade do sujeito, e a sua maneira de caminhar – ligeiramente trôpega – acompanhada do forte cheiro de uísque que parecia impregnar suas vestes deixava claro que os boatos acerca de seu alcoolismo eram mais do que verdadeiros.

            – Padre Hipólito? – inquiriu o recém-chegado, em um tom de voz arrastado.

            – Sim. – respondeu o outro sacerdote, com rispidez – E você certamente é o Padre Sérgio. Eu o aguardo há horas!

            – Vim tão logo o Bispo me ligou... Mas, o senhor sabe, Porto Alegre não fica tão perto e essas estradas são terríveis! Não me admira que o senhor tenha sido o único sacerdote da Congregação que aceitou assumir está paróquia! Que cafundó!

            – Não fale assim! As pessoas daqui são muito simples, mas trabalhadoras e tementes a Deus! Por isso mesmo precisam tanto de nosso suporte espiritual. Mas agora chega de conversa! Logo vai anoitecer e precisamos partir imediatamente para a residência da família Ricci. A fazenda deles fica há 20 quilômetros daqui e a estrada é ainda pior do que aquela que você acabou de cruzar.

            – Certo, certo! Vamos com seu carro ou com o meu?

            – Eu é que não saio com você no volante! Vamos com o meu!

            Enquanto se encaminhavam para o Fusca estacionado na entrada da garagem da casa paroquial, Padre Sérgio retirou um pequeno frasco metálico do bolso da calça oculta sob a batina e bebeu um longo gole no gargalo.

            – O Bispo sabe que você bebe desse jeito?! – inquiriu Padre Hipólito, em tom de reprovação.

            – É claro que sabe! – respondeu o outro sacerdote, sem disfarçar a irritação – E se você conhecesse um pouco melhor o trabalho da Mão Vermelha, concordaria que essa e outras concessões são mais do que merecidas para compensar o tipo de coisa que precisamos fazer!

            – Realmente, nunca fiz questão de saber mais sobre essa ramificação da Mão Vermelha. Aliás, até hoje não compreendo como o Vaticano permite que a nossa Congregação mantenha algo assim.

            – Pois você deveria ser grato por não precisar saber! Goste ou não da ideia, o fato é que o Vaticano não só permite como também subsidia a Mão Vermelha por um único motivo: ela é um mal necessário!

            Padre Hipólito resmungou, contrariado, mas preferiu não levar adiante a discussão. Afinal, ele próprio telefonara ao Bispo pedindo ajuda, e se foi designado em seu socorro aquele sacerdote sombrio e beberrão, decerto era porque ele saberia o que fazer.

            A dupla de clérigos embarcou no Fusca e rumou para a área rural do município através de uma estrada poeirenta e esburacada. O sol descia rapidamente por detrás dos morros no extremo oeste do vale, e o Padre Hipólito remexeu-se inquieto ao volante quando constatou que já seria praticamente noite quando chegassem ao seu destino.

            – E então? – disse o Padre Sérgio, quebrando o silêncio que durava desde o início da viagem – Pode me explicar a situação?

            – Não há muito o que dizer além do que já relatei ao Bispo e que certamente ele lhe informou: Há duas noites atrás, o senhor Ricci veio até mim desesperado, dizendo que a sua filha de dezoito anos havia sido possuída pelo demônio e que eu precisava ajudá-la. Mesmo relutante, acabei indo até lá, mas quando cheguei, ao amanhecer, a moça dormia tranquilamente no porão onde havia sido trancada, sem que houvesse qualquer sinal de anormalidade além do fato de ela estar nua e com o corpo coberto de cicatrizes, que me pareceram antigas.

            – Como eram essas cicatrizes?

            – Não sei lhe explicar, mas eram estranhas. Os pais da moça disseram que essas marcas surgiram no corpo dela algumas semanas antes, quando estava perto do estábulo, ao entardecer e, de repente, desapareceu. Acabou sendo encontrada no meio do mato apenas no dia seguinte, em estado de choque. Até hoje diz não se lembrar do que aconteceu ou como aqueles ferimentos surgiram em seu corpo.

            – Entendo. E depois?

            – Bem, admito que cheguei a desconfiar que alguém estivesse... Abusando da moça e que aquela história de possessão fosse apenas uma desculpa para tentar encobrir a verdade. Saí dizendo à família Ricci que me chamasse novamente caso algo de estranho voltasse a acontecer. Passei o dia inteiro pensando no assunto e cogitei até mesmo ir à polícia solicitar uma investigação, e só não fiz isso porque preferi antes consultar o Bispo, o que pretendia fazer na semana seguinte, quando viajaria até Porto Alegre. Porém, ontem à noite o senhor Ricci reapareceu ainda mais desesperado do que na ocasião anterior, dizendo que estava acontecendo tudo de novo e praticamente me arrastou com ele. Quando chegamos à residência da família, encontrei todos na cozinha, rezando diante de uma imagem da Virgem Maria, e do porão, onde deveria estar trancada a moça, vinham os sons mais terríveis e pavorosos que jamais imaginei que um dia poderia ouvir em minha vida. Aquilo que estava lá embaixo batia furiosamente na porta tentando sair, e só não conseguiu porque o senhor Ricci e seus dois filhos mais velhos pregaram várias tábuas para reforçar o bloqueio.

            – Eu acredito... E o que aconteceu a seguir?

            – Eu juntei-me àquelas infelizes pessoas e entoei súplicas ao Nosso Senhor para que Ele findasse o tormento que se abatia sobre aquela casa. Porém, o terror continuou até o amanhecer, quando o silenciou voltou ao porão. Com muito custo, convenci a família a destrancar a porta e, pedindo proteção a Deus, desci até lá embaixo. Como na noite anterior, a moça estava dormindo pesadamente, como se nada tivesse acontecido. Em seguida, corri de volta à cidade e liguei para o Bispo contando tudo. Foi então que ele me assegurou que enviaria imediatamente alguém para auxiliar-nos. No caso, você.

            – Perfeito. Acho que já sei do que se trata. Mas, você deve prevenir aquela família para o pior. Creio que esse não seja um simples caso de possessão e, se eu estiver certo, podem ser necessárias medidas drásticas.

            Mediante as graves palavras do outro sacerdote, Padre Hipólito cogitou pedir esclarecimentos, mas desistiu ao se dar conta que já estavam chegando à casa da família Ricci. Neste momento, o sol já havia se posto e a noite apossava-se da situação. Quando a dupla de clérigos adentrou a residência, encontrou o casal e os dois filhos mais velhos reunidos na cozinha, aparentando enorme apreensão. Por detrás da porta que isolava a escada de acesso ao porão, uma chorosa voz feminina se fazia ouvir:

            – Me deixe sair, pai! Estou com medo de ficar aqui!

            – Abram essa porta! – ordenou Padre Sérgio.

            – Mas já anoiteceu... – ponderou o senhor Ricci – E quando anoitece o demônio encarna nela!

            Sem dizer mais nada, Padre Sérgio abriu a porta com truculência e desceu ao porão em companhia apenas do colega de sacerdócio. Logo a dupla de clérigos avistou a garota encolhida em um canto do porão e bastou uma rápida análise nas cicatrizes que ela ostentava pelo corpo para que o membro da Mão Vermelha compreendesse que as suas piores previsões estavam corretas.

            – Suba e comece a confortar aquelas pobres pessoas. – disse Padre Sérgio, retirando um revólver de dentro da maleta que trazia a tiracolo – Para salvar a alma desta jovem, precisaremos condenar o seu corpo.

            – Mas o que você está fazendo, seu louco! – gritou Padre Hipólito, arrancando a arma das mãos do outro – Eu mandei chamar um exorcista e não um assassino!

            – Me devolva essa arma, Padre! Compreenda que essa garota não está sendo possuída por demônio algum! Ela foi atacada por um licantropo e agora apenas a prata pode purificar seu corpo e libertar sua alma!

            Padre Hipólito tentou retrucar algo, mas sua voz foi completamente encoberta por um urro aterrador que ressoou vindo da direção de onde se encontrava a moça. Os dois sacerdotes olharam simultaneamente para aquele canto e puderam ver por entre as sombras do ambiente a silhueta enorme do monstro horrendo que se aproximava rapidamente. Antes que os clérigos pudessem fugir ou esboçar a menor das reações, a criatura agarrou o Padre Hipólito pelo pescoço, suspendeu-o no ar e arremessou-o de encontro à parede, no outro lado do ambiente.

            Por sua vez, Padre Sérgio acompanhou com os olhos aquele insólito vôo humano, muito mais interessado na arma que o outro tinha em mãos do que em qualquer outra coisa. Quando Padre Hipólito desabou pesadamente sobre um barril que se encontrava no extremo oposto do recinto, o revólver escapuliu de suas mãos e, com uma agilidade surpreendente para alguém que instantes antes parecia completamente bêbado, Padre Sérgio ajuntou-o do chão e no segundo seguinte já o tinha apontado para a cabeça da monstruosa criatura. Um único tiro ecoou pelo porão, acompanhado de um uivo de agonia que pareceu emanar do próprio inferno.

            Quando o Padre Hipólito conseguiu se levantar, com notável dificuldade, constatou perplexamente que não havia mais monstro algum no ambiente. Em seu lugar, jazia o corpo lívido e ensanguentado da filha caçula da família Ricci.

            – Por Cristo! E agora?! – indagou o chocado sacerdote.

            – Agora suba até lá e console aquela família. É isso que lhe cabe. – respondeu Padre Sérgio, em um tom grave e ao mesmo tempo melancólico.

            – E você?!

            – Eu tenho as mãos vermelhas, lembra, Padre? Vermelhas de sangue. Eu faço o serviço sujo... E meu trabalho aqui já acabou. Esperarei lá fora.

            Sem dizer uma palavra, Padre Sérgio cruzou pelo angustiado grupo de pessoas na cozinha e saiu para o pátio. Bebeu de uma só vez todo o conteúdo que ainda restava em seu pequeno frasco metálico e depois se sentou na beira da estrada. Puxou um amassado maço de cigarros do bolso e permaneceu fumando em silêncio enquanto ouvia o choro convulsivo e os gritos desesperados que vinham do interior da casa. A família já estava sabendo da verdade.