30 de ago. de 2022

O LADRÃO DE GALINHAS

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Enquanto carregava a espingarda com cartuchos retirados de uma pequena caixa de papelão, Sandoval recapitulava a estranha história em sua mente desconfiada. Tinha sido no mês passado que os problemas começaram. O sítio do Claudiomiro foi o primeiro a ter seu galinheiro atacado na calada da noite. Treze galinhas mortas, meio comidas, despedaçadas, com sangue e penas para todo o lado. Ninguém viu nada, mas parecia obra de algum bicho, ainda que não se soubesse qual. Raposa, lobo-guará e leãozinho baio não era. Esses todo mundo já sabia como agiam, e estavam ficando cada vez mais raros. Aquilo lá tinha sido ação de alguma coisa diferente.

            Naquela mesma semana, o galinheiro da fazenda do seu Anacleto também foi atacado de madrugada. Dessa vez mais de vinte galinhas foram feitas em pedaços, algumas devoradas ali mesmo. Os empregados disseram que escutaram o barulho, mas era algo tão horrível que ficaram com medo de ir olhar. Um deles correu pelos fundos da propriedade até a casa grande e acordou o patrão. Mas, até o seu Anacleto – que já está bem idoso – levantar e pegar a espingarda, o bicho tinhoso já tinha ido de volta para o mato, e ninguém conseguiu ver que desgrama era aquela.

            Depois o negócio mudou. Nas três semanas seguintes, outros galinheiros de fazendas dos arredores foram “visitados” altas horas da noite, mas não houve mais matança. As galinhas simplesmente sumiram. Não todas, mas várias. E, por desgraça, ninguém nunca via o desnaturado responsável pela safadeza. Nem sequer os cachorros das propriedades conseguiam intimidar. O povo começou a falar que isso não era coisa de bicho, mas sim de gente, daquele tipo bem sem vergonha. Era um ladrão de galinha, filho de uma égua! Mas, e nas propriedades do Claudiomiro e do seu Anacleto, por que matar as bichinhas ao invés de roubar? Devia ser por sacanagem, vingança de alguém que tinha raiva deles e queria assustar. Talvez algum ex-empregado ou um vizinho invejoso. Então as galinhas não teriam sido meio devoradas como se pensou no início, mas apenas estripadas e mutiladas, provavelmente com uma peixeira. Tinha que ser obra de um patife bem desavergonhado!

            Na realidade, todo mundo dava algum palpite, mas ninguém tinha certeza de nada. Algumas pessoas falavam de um mendigo, um andarilho, ou algo assim, que estava perambulando pelas redondezas há alguns dias. Era comum aparecer gente de fora pedindo emprego nas fazendas, mas aquele só pedia comida e bebida. Já tinha sido posto a correr de várias propriedades por andar espreitando, e se desconfiava que pudesse ser ele quem andava roubando as galinhas da região. Sandoval já tinha visto o sujeito pelas estradas, mais de uma vez. Era velho, sujo, maltrapilho e tinha cara de quem não era nada confiável. Poderia muito bem ser ele o  ladrão safado.

            A inquietação de Sandoval piorou quando, há dois dias atrás, foi dar comida para suas galinhas e percebeu que quatro haviam sumido do galinheiro. Seria a sua vez de ser vítima do larápio? Não iria admitir! Na noite anterior ele tinha bebido alguns copos de vinho a mais, e mesmo que os cachorros tivessem latido, ou se fizesse algum outro barulho, não teria como ouvir por causa do sono profundo. Mas, dali para diante, pretendia se manter muito atento e fazer o que fosse preciso para que o gatuno sem vergonha tivesse o que merecia.

            Naquela tarde, Sandoval foi para a cidade resolver alguns negócios, e, quando voltou, deu de cara com o andarilho dentro de sua propriedade, mais especificamente, na estradinha de terra entre a casa e o galinheiro. “Aí está o larápio desavergonhado!” resmungou ele, saltando da caminhonete sentindo o sangue lhe ferver nas veias. Sem pensar duas vezes, partiu para cima do mendigo e, não lhe dando tempo de dizer qualquer coisa, o atingiu com um soco que o derrubou na estrada poeirenta, para em seguida lhe desferir uma saraivada de violentos pontapés.

            Enquanto o velho maltrapilho gemia, quase se engasgando com o próprio sangue que lhe inundava a boca, Sandoval o arrastou pela gola do casaco imundo e o jogou para fora da porteira do sítio.

            – Suma daqui, seu ladrão vagabundo! – gritou Sandoval, um instante antes de dar meia volta e retornar para o interior de sua propriedade – Se aparecer de novo nas minhas terras, vai levar é chumbo!

            Naquela mesma noite, Sandoval pegou no sono na poltrona da sala. Não havia bebido tanto vinho, então se acordou de supetão quando seu velho cachorro Tufão começou a latir e uma agitação anormal teve início lá pelos lados do galinheiro. Desconfiado, retirou a espingarda do suporte na parede e a lanterna da gaveta da cômoda.

            – Será que mesmo depois de uma surra daquelas o vagabundo teve coragem de voltar aqui para me roubar?! – resmungou sozinho Sandoval, enquanto se dirigia de forma atenta, mas rápida, em direção ao galinheiro.

        Talvez por ter percebido que chamou a atenção, ou simplesmente por já ter pego o que queria, o ladrão não estava mais no galinheiro quando o fazendeiro chegou lá. Porém, o cacarejar das aves roubadas e o som de galhos quebrando fez com que Sandoval apontasse o facho da lanterna na direção da mata, de forma que ele pode ver ao longe – ainda que por um breve momento – o indivíduo que corria entre as árvores levando uma galinha em cada mão.

            Apesar da distância, da escuridão e do rápido momento em que o ladrão foi iluminado pela lanterna, Sandoval não teve dúvidas: era um menino, de doze, ou treze anos, no máximo. Talvez fosse filho daquela gentalha que vivia do outro lado do rio, uns três quilômetros ao sul. De qualquer forma, não adiantava tentar segui-lo e nem ir tomar satisfação no barraco da família. O ideal era pegar no flagrante e, com isso, ter justificativa para lhe aplicar uma boa surra. Era isso que Sandoval pensava. Daria uma surra e tanto no moleque, pelas galinhas roubadas e pelo fato de ele ter batido à toa no mendigo. Não que ele se importasse com um andarilho vagabundo ou estivesse com remorso, mas apenas porque odiava se sentir enganado.

            Era com esses pensamentos em mente – e com a espingarda recém-carregada escorada na poltrona – que Sandoval bebia vinho e aguardava pelo retorno do ladrãozinho salafrário. Sim, porque eles sempre retornam. A tentação de se obter algo sem precisar trabalhar e nem pagar é muito grande. Ainda mais nesse caso, onde Sandoval julgava ser visto como um simples velhote beberrão e solitário, fácil de se passar a perna. Ah, mas aquele moleque safado não perderia por esperar!

            E foi com esse estado de ânimo que o fazendeiro acabou pegando no sono na poltrona, embora não quisesse. Mais tarde, acordou sobressaltado, sem saber por quanto tempo estivera dormindo. O velho relógio de parede marcava que tinham se passado cinco minutos da meia-noite. Lá fora, Tufão latia furiosamente. Sandoval levantou da poltrona e se aproximou da janela a tempo de ver o cachorro correndo na direção do galinheiro. Com toda certeza, o ladrão havia voltado!

            Com a arma em mãos, o fazendeiro abriu a porta e saiu, tentando ser o mais silencioso possível. Dessa vez havia poucas nuvens no céu e a lua cheia se encarregava de iluminar palidamente a paisagem, de forma que a lanterna era dispensável. De repente, um grito terrível ecoou pelo ar, fazendo o sangue de Sandoval lhe gelar nas veias. Foi um berro realmente muito assustador, mas rápido, sendo logo interrompido e substituído por uma espécie de rosnado animalesco e igualmente pavoroso.

            Enquanto ouvia também o barulho das galinhas cacarejando e se debatendo – parecendo apavoradas – Sandoval viu Tufão passar correndo por ele, ganindo desesperadamente. Pela porta entreaberta, ele viu o aterrorizado cachorro entrar na sala e se enfiar debaixo do sofá, como se sua vida dependesse de um bom esconderijo.

           Mesmo sentindo suas mãos tremendo sensivelmente enquanto seguravam a espingarda, Sandoval continuou andando lentamente na direção do galinheiro, mais motivado pela raiva e pela mórbida curiosidade do que propriamente pela coragem. Quando finalmente chegou, viu as galinhas em pânico, se jogando contra as tábuas e os arames, mas também viu algo mais. Era o menino. Mas, ele não estava roubando. Na verdade, não roubaria nada, nunca mais, pois seu corpo estava estirado em meio a uma poça de sangue no gramado, tão terrivelmente mutilado que o fazendeiro teve certeza de que aquilo que o atacou jamais seria um ser humano. Aquilo era coisa do Tinhoso em pessoa!

            Finalmente se deixando dominar pelo mais completo pavor, Sandoval se virou para correr de volta na direção da casa, mas não teve tempo. Algo surgiu das sombras e o agarrou pela parte de trás do pescoço, suspendendo-o no ar e em seguida o arremessando a dois ou três metros de distância. O fazendeiro aterrissou de costas no chão, sentindo, além da dor, o fôlego lhe abandonando. A espingarda havia voado para longe, de modo que a sua única chance seria tentar levantar e correr, mas não seria possível. Aquela coisa enorme e peluda surgiu sobre ele rosnando e o atingiu com um golpe na cabeça, que quase o fez desmaiar.

            Sentindo o sangue escorrer pelo rosto, Sandoval fez menção de tentar se pôr em pé, mas foi mais uma vez brutalmente golpeado. Percebeu então que alguns dentes estavam quebrados. Talvez o maxilar também. Caído no chão úmido pelo orvalho da noite e dominado pela dor, o fazendeiro conseguiu vislumbrar a face hedionda e animalesca da criatura que o encarava cheia de ódio e, em meio àqueles traços monstruosos, teve a impressão de distinguir algo de conhecido, algo que lembrava o rosto do andarilho que ele espancara ali mesmo, naquele local, dois dias antes. Ele queria gritar, de dor e desespero, mas as garras afiadas e bestiais que se cravaram em sua garganta lhe sufocaram a voz, para sempre.  

16 de ago. de 2022

A LENDA


 

Por Maria Ferreira Dutra

 

            Meu dia foi bem cansativo, mas produtivo, consegui terminar dois trabalhos. Já estou com outros na cabeça e entre essa noite e amanhã consigo terminar. Preciso me alongar, horas nessa cadeira velha e desconfortável acaba com as minhas costas. Que horas são!? 20h:31m. Vou tomar um banho e fazer um café. Morar só tem as suas vantagens, faço o meu tempo. Almoço, janto, acordo ou durmo a hora que eu quiser. Nada melhor que tomar um banho gostoso. 

            Caramba! O registro  do chuveiro está difícil de rodar! Apertei demais no último banho por conta do pinga, pinga. Ufa! Consegui abrir! Que coisa boa é sentir a água caindo em meu corpo e o cheiro do sabonete maracujá e capim-limão me trás  boas recordações. E a sete anos  desde que meu amor se foi, nunca troquei a fragrância.

            Durante os doze anos que vivemos juntos. Não tivemos filho. Não foi uma escolha nossa. O destino quis assim. Mas superamos isso e vivemos felizes até que um glioma  astrocitomas foi detectado em seu cérebro levando a minha felicidade embora definitivamente.

            Esses quase dez minutos de banho me fizeram super bem. Adoro camisetas brancas e shorts largos  para passar a noite, sempre que saio do banho, me visto com o corpo ainda molhado, pois me dá uma sensação refrescante por um bom tempo. Não acredito! Depois de tomar banho e me arrumar me deu vontade de evacuar. Que desgraça de papel vagabundo! Rasgou e sujei a minha mão. Preciso trocar essa toalha de mão, está bem encharcada!  Vou para a cozinha preparar o meu lanche. Um copo de água na cafeteira elétrica, duas fatias de pão de forma, dois ovos mexidos, isso é o suficiente para me alimentar.   

            – O que foi Paçoca?  Por que está me olhando com essa cara? Está com fome? Eu não coloquei a sua ração!?  Pare de gemer assim. Me solta, me solta! O que está acontecendo com você?  Para de latir! Você está no cio ou quer  fazer as suas necessidades? Pronto! Saia, saia! Eu já abri a porta! Para de me puxar para fora seu cachorro doido! 

            Eu nunca gostei de cachorro dentro de casa mas meu coração o acostumou assim e desde que ele se foi, eu sempre o mantive dentro de casa, não quis mudar nada, queria a sua presença em tudo, nada foi mudado. Esse cachorro acuado, não sai do meu pé, está com medo do quê? Pediu para sair e não saiu, está colado em mim.

            Bem agora que estou  com o  estômago forrado vou voltar a escrever mais um capítulo da minha história.  Onde parei? Ah Lembrei. O momento em que eu volto do meu café da noite. Então arrasto a cadeira me sento a mesa e olho pela janela, não era noite de lua cheia, mas na historia que escrevia, coloquei que era: "E a lua cheia aparecia no céu, mas logo fora escondida por uma  neblina formando uma cortina de  fumaça."

            Mas o que é é isso? Meu escritório, sumiu! Onde estou!? Na floresta!?  Que barulhos são esses! Paçoca, fique perto de mim.  Tudo que eu imaginava escrever,  estava saindo do computador e de forma descontrolada. Era tanto barulho de pássaros noturnos e pisadas que me causava medo uma verdadeira floresta sombria.

            A névoa se dissipou mostrando a lua que muito pouco conseguiu clarear o espaço. Me levantei da cadeira e tentei correr, mas fiquei sem ação ao ver um vulto laranja avermelhado.  Não consegui ver direito o que era  e minutos depois escutei o gemido muito forte e uns "creecccs, creecccs".  Parecia um dinossauro faminto estraçalhando e quebrando os ossos da sua presa. 

            Meu coração batia acelerado e eu tentava controlar a respiração quando senti algo bater em meus pés. Gelei! Abaixei a cabeça e fui abrindo os olhos vagarosamente. E  bem ali. Diante dos meus olhos. Vi caído a metade do meu cachorro e  o sangue escorrendo pelo chão. Com os olhos cheio d'água, joelhos, mãos e boca trêmulas, fui escorregando até sentar no assoalho.

            Vi pegadas no chão, parecia de um quadrúpede ou de um bípede. A minha vida toda escrevi sobre vampiros, monstros, extraterrestres, mas isso tudo eu sempre soube que era ficção. Mas agora, diante dos meus olhos, vejo essa criatura saindo do meu computador. E meu escritório se transformando em uma floresta sombria.

            Meus olhos estavam arregalados. O coração saltando pela boca. As minhas mãos grudadas na parede tentando de alguma forma me agarrar a algo. A névoa voltou a tornar escuridão total. Eu não conseguia ver um palmo na minha frente, mas consegui senti a sua forte  respiração que fedia a carne podre. Escutei um barulho de água caindo  e um cheiro muito forte que lembrava maconha. Entrava pelas minhas narinas, pensei que diabo é isso meu Deus! Um demônio que fuma!

            Seus passos foram se distanciando, tudo ficou em silêncio. Com o corpo arquivado  paulatinamente fui me levantando. Dei uns dez passos. Senti que havia pisado em algo molhado. Escorreguei e bati com o braço na luminária da mesa deixando-a cair. O barulho chamou a atenção  daquela coisa que, a largos passos, corria em direção ao barulho, eu escutava o estalar dos galhos e folhas secas sendo pisadas. Seu rosnado ecoava. E aquele barulho de água caindo que eu havia escutado, era a criatura marcando território. Me intrigava o cheiro da maconha em sua urina. Que tipo de criatura estaria em minha casa!?

            Senti um bafo próximo ao meu rosto e vi aqueles olhos cor de mel alaranjados brilhando como fogo e aqueles dentes pontiagudos diante de mim. Fechei os olhos a espera do meu fim, pois sabia que não tinha como escapar.  E sem dó, ela enfiou as suas presas em meu pescoço. Cheirou meu corpo é me possuiu. E foi através da sua mordida que me tornei essa terrível criatura e hoje tenho que me esconder para não morrer nas mãos dos malditos humanos.

            Na última noite de lua cheia sai para caçar e acabei virando a caça. Uma multidão começou atirar em mim e uma bala atingiu o meu peito. Cai no chão voltando a minha forma humana. Ouvi gritos de vitórias onde diziam  que conseguiram matar a criatura. Eu ali gemendo de dor e um silêncio tomou conta do local. As pessoas vão se aproximando com olhar surpreso e mão na boca, cochichavam entre elas.   

            Ouvi o barulho da ambulância chegando. Os paramédicos furam a multidão e me colocam dentro da ambulância  liga a sirene e saem em alta velocidade. Algumas horas mais tarde a ambulância foi encontrada na estrada e toda a equipe estava morta , com grave ferimentos pelo corpo. Rastro de sangue levava a polícia para dentro da mata, onde foi encontrado o corpo do  motorista que foi encontrado sem a cabeça e o braço esquerdo a uns 200m dos outros corpos. Eles não me encontraram, mas deixei uma mensagem vermelha na lataria da ambulância dizendo: "Eu sou a lenda Guará." A loba mais procurada.

 

Ilustração: Maria Ferreira Dutra
Edição de Imagem: André Bozzetto Jr