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15 de nov. de 2023

CRÍTICA DO FILME: PERIGO MORTAL

 

Por Clayton Alexandre Zocarato

 Filosofia, morte e cinema

Chuck Norris contém a máxima existencial, de fazer filmes de ação com maestria, mas também já se aventurou no campo do terror-policial, fazendo uma interpretação em que seus chutes e socos são armas torpes contra a própria reencarnação do mal.

Em Perigo Mortal – lançado em 1994, com direção de Aaron Norris, irmão mais novo de Chuck, com quem vem desenvolvendo uma longa parceria cinematográfica ao longo dos anos, incluindo o clássico cult “Braddock 3 – O Resgate” – ocorre mistura de um pouco do “policial noir”, com profecias cristãs, voltando ao tempo das Cruzadas, onde Ricardo Coração De Leão enfrenta o servo direto do “Capiroto”, Prosatanos, que antes de ser enclausurado dentro de uma espécie de prisão sepulcral, vaticina que o próprio desejo de pecado há de fazer a humanidade a trazê-lo de volta a vida.

Voltamos para o século XX, onde dois desavisados aventureiros resolvem, se apropriarem de forma indevida das pedras preciosas contidas em quatro estacas, na tumba onde o “medonho foi fechado”, que guardam seu encarceramento eterno, e que logo em seguida em são esquartejados com toda sua fúria e ódio.

Nesse ponto, o filme traz a temática genealógica, que, “em algum momento da história a humanidade se afasta de Deus Pai todo poderoso”, caminhando lentamente, para uma demência de composição de ética, que faz assim o terror ser constituído como algo natural, onde as penumbras do pecado já não causam mais pavores por entre os filhos de Javé, e onde a cobiça material, vem a ultrapassar importância de se ter uma consciência lúdica quanto, a permanecer na fé, e assim, conter armas para persuadir, os “perigos”, de estar servindo diretamente e indiretamente as forças do mal.

Prosatanos tem interesse em recuperar seu centro demoníaco, dividido em noves pedaços, que foi disseminado em sua proteção para nove espaços diferentes ao redor do globo, e que assim parte em sua jornada de sangue, em busca desses fragmentos e que através de um ritual de sacrifico mórbido, possa reunir seus fragmentos, e colocar novamente as forças do inferno na ordem do dia.

Disfarçado por um renomado professor universitário de arqueologia da Universidade Hebraica Professor Lockley (Christopher Neame), se lançam perante uma investigação acerca de uma onda de assassinatos brutais, em busca de reunir as peças de um intrínseco quebra – cabeça para místico - cristão, onde de certa forma a salvação do mundo passa por um corpo de uma garota de programa de Chicago arremessada pela janela de um quarto de hotel barato, onde Shatter e seu parceiro Jackson (Calvin Levels), em uma noite escura de Chicago, depois de estraçalhá-la a meretriz, antes já tinha arrancado o coração de um rabino, que ousou tentar destruir o represente do Demo.

A partir desse momento seu enredo é misturado, por sátiras, de como se combater o mal através, da violência física, que produz uma mistura delação barata com uma pitada clássica ação barata dos estudos da Cannon Films, com um terror carente de sustos reais, mas que não deixa de desenvolver um glamour, em imaginar Chuck Norris, combatendo as forças das trevas, usando de astúcia, mais parecida com uma sintomatologia de atuação lembrando os embaraços do atrapalhado Inspetor Bugiganga, acrescentando a movimentos rítmicos com certo frenesi de lentidão psicomotora de comédia, lembrando Inspetor Clouseau de a Pantera Cor de Rosa.

Sim! Dentro desse espaço fílmico sentenciado a disritmias de estilísticas, que se confundem entre si, realizam complementos intelectuais e de diversões que ao mesmo tempo traçam um perfil psicológico entre terror e o riso, está um conflito latente entre tradições culturais do mundo contemporâneo.

Porém dentro de um pensamento teológico, Prosatanos representa o julgamento do homem, diante seus pecados, em se afastar da sua condição de filho de Deus, e que busca o pecado como algo para se consumir diante, um nefasto sentido de fúria em ter que cumprir com suas obrigações de “criatura malévola”.

Uma criatura que esboça uma forte rebelião psicológica, no intento de fazer Frank Sater, não somente uma lógica de sair dando pancadas e chutes em formas aleatórias, mas sim permutar uma revolta da condição humana, seja sublime a demarcar a existência do ser humano perante as provações de seu “criador”.

Dentro do sentido bíblico do Apocalipse está um lembrete, “acerca dos terrores que homem irá passar perante a se afastar de Deus”, o que não deixar de traçar um espaço artístico de fazer da terra Santa, um vasto campo de batalhas entre o “modus operandi”, de policiais de Chicago acostumados com canastrice do comportamento criminal bizarro, perante o sentimento de oração, em se procrastinar diante o desconhecido para assim ter suas almas salvas.

A busca por redenção diante o sentimento de condenação da humanidade, ao qual o servo direto do Demo, deixa impregnado que ele é somente fruto da refutação humana, em se colocar de joelhos perante o que não se pode ver, mas que de forma material sua maldade é uma característica forte do afastamento do “sapiens, defronte as vontade de Deus”.

Shatter encarna um conservadorismo empírico, de inicio em acreditar que os assassinatos aos quais está investigando contenha algum lampejo de sobrenatural, mas lentamente vai percebendo uma causa maior de sua ida para Jerusalém junto com Jackson.

Assassinatos de lideres religiosos, tanto cristãos como judeus, revelam indiretamente uma união entre as duas religiões, para guardar de forma ardente, o cetro da maldade, que virá assim trazer o Anticristo de volta para a terra.

Em paralelo a isso, ocorre um sínodo de comparações de enredo e “mise in scéne” com o “Príncipe das Sombras”, clássico terror trash dos anos oitenta, contendo Alice Cooper e Donald Pleasence (o eterno doutor Samuel Loomis dos primeiros filmes da série "Halloween"), também acompanhado de “Colheita Maldita”, “onde aquele que caminha por detrás do milharal”, faz uma alusão do retorno da maldade ao convívio direto com os homens, diante um sentido de esconder a verdade das pessoas.

Uma verdade, em se revela, que o desconhecido, causa muito embaraço, perante a penumbra de estar sendo envolvido pelo bem, que em muitos momentos, vêm alicerçados com chuvas de uma descrença do humano no espiritual, mas que dentro seu maniqueísmo está uma estrutura técnica, de limitar a mente, somente ao que seja racional, e não elencar um irracional como uma melodia de transcrever que somos reféns de uma luta incessante de Deus e o Diabo, para arrebanhar cada vez, mais “cordeiros desfalecidos, para seus espaços de condenação ou redenção.

Nesse caso, um clima “noir” de Perigo Mortal, vem a transfigurar uma bipolaridade de subjetividades, que sejam domesticadas a procurarem esclarecimentos diante do falsificacionismo perante a revelação da vinda do Papa do Inferno, está um caminho de luz de vim a se arrepender dos seus pecados mais profundos.

Em uma transcrição dialética, podemos colocar uma fenomenologia do pecado, por um caminhar de harmonizações entre mentes e corpos, que sejam um escapismo diante lograr uma fuga de profetizações e provações, em ter que se arrependerem dos seus pecados, não como uma atitude que parta do mais profundo do seu intimo de arrependimento, mas sim diante fatores externos de uma, “doença mental”, que faz o medo dado à dor física, ser maior do que receio em sofrer diante os sabujos de tormento que, “o mal espiritual pode causar”.

Nesse sentido Prosatanos, faz de suas vitimas um conjunto entre dor e barbárie, onde seus instintos mais cruéis servem como base para se compreender uma melancolia, a comiserar atitudes de causar pânico, mas que ao mesmo tempo seja uma condição de ascensão metafísica revertendo o amor de Deus, a um espelho de gnose, onde morte da sua clemência seja um vetor artístico e humanístico, para uma aproximação do homem perante as vontades do “todo poderoso”.

Shatter, em contrapartida, é um sacrário de contrapeso do herói, em ter que lutar com sua “possível fé”, diante um inimigo, intransigente e sanguinário, que detém passagem tanto para macro – espaço espiritual, como para o micro – espaço do material.

Isso se traduz de forma a enxergar Prosatanos, como um transgressor das leis físicas, que em nome de sua causa demoníaca, ovaciona provocar o “Criador”, transmitindo uma culpabilidade de sua maldade diante um virtuosismo mental, em ter que provar uma fé, que limita os prazeres, como sendo uma fuga para uma necessidade intrépida, em buscar uma “verdade universal”, traduzida em um charlatanismo messiânico discursivo e caótico, em limitar as vontades e desejos mais profundos do ser humano.

O código da inteligência dentro da maldade está relacionado em fazer uma obra cinematográfica, defrontando a maldade não puramente, em “se” existir pela maldade, mas, sim buscar esclarecimentos intelectuais diante um “labor”, de reflexões, que possam assim enunciar que dentro do sentido de uma criminalidade social, este relacionado uma condição humana, de superação de sua interação existencial e corporal quanto ao que se relaciona como sendo parte de uma intelectualidade, como também pode ser traçado como um entendimento humano, delineado na busca do bem comum.

Um bem comum, que em determinados momentos está escondido, de um esgotamento de sentimento culposo, em ter que realizar uma semiologia da abjuração de nossos piores pecados, em deixar uma imagística de arrependimento, em muitos momentos transcritos na figura do próprio pecado, pois Shatter esgarça a necessidade de “matar o mal”, mesmo que para isso esteja traçado, a não respeitar sua percepção perante o que seja de fato um fator de fazer o bem e o mal, de forma a não garantir uma “repetição de esquizofrenia deleuziana”, em ver “tudo”, como fruto do pecado que se classifique como uma metáfora quanto aos principais medos e ressentimentos humanos.

Dentro de um arcabouço “teórico deleuziano”, Prosatanos passa como uma tipologia existencial em que construir novos devaneios intelectuais, em ornamentar, tanto, “à vontade como o experimento”, onde ela traz uma patologia de estar sempre a alguns passos na frente na eterna luta entre o bem e mal, enquanto realiza através de seus experimentos psicológicos, quanto ao que pode ser classificado como sendo maldade, ou uma escolha de subjetividade humanística intelectual concisa.

Em sua subjetividade, está enraizado uma incessante diplomacia sanguinária, em fazer das pessoas ao seu redor, tanto escravos como também exemplos do seu poderio em disseminar o pecado como sendo a verdade universal, que venha afastar as pessoas da graça de estarem presentes, diante as vontades de Deus.

Usando do racionalismo de René Descartes, com a teoria da esquizofrenia de Gilles Deleuze, a maldade dentro do antagonista de Chuck Norris em Perigo Mortal eleva padrões de partículas mentais que podem fazer do obscuro, seja a porta de entrada para um dinamismo de interligar ações de um pensamento público, como privado, do que seja classificado “como sendo verdade”, dentro de uma brevidade de carestia de resistência de uma consciência que seja feita em torno de, “uma maiêutica sucinta”, que veja o terror não como “logos”, só diversão, mas sim como algo natural dentro das mais profundas vontades e desejos humanos.

Enquanto Shatter procura a todo o momento fazer justiça, Prosatanos outorga cumprir o vaticínio, de fazer o ser humano se arrepender por sua ambição e avareza, que assim vai causando mais aflição e tristeza, para uma civilização, que deseja proclamar seus pecados em público, mas que reza sempre por melhorias para ti no seu espaço privado.

Não se trata de realizar uma releitura obscura acerca da presença do mal, incessante escaldante dentro das telas, mas que sim venha propiciar um amadurecimento e um enraizamento, em analisar como nossas neuroses e desejos mais imundos e profundos, podem virem a mexer com o universo quântico, e assim provocar um alinhamento entre forças mecânicas e espirituais, que causem  uma luta apocalíptica entre Deus e o Diabo, aos quais nós seres humanos somos eternos espectadores.

Tanto Shatter como Prosastanos, estão dentro de uma sinopse de intercederem por suas ações que durante seus breves diálogos, colocam um egoísmo tanto luciferiano como cristão, que não importa o que aconteça, tem que estarmos prontos para encarar nosso destino custe o que custar, mesmo que para poder se salvar, seja necessário voltar a pecar, para tentar voltar, a ter o mandamento universal do amar incondicional, tanto corporal como espiritual.

21 de abr. de 2023

A ESTRADA QUE NÃO LEVA A LUGAR NENHUM

 

Por André Bozzetto Jr

 

            É um caminho que jamais esteve em qualquer mapa. Surgiu em uma longínqua era passada, já encoberta pelas inexoráveis poeiras do tempo. Teve origem na mente do primeiro homem que entendeu como uma ilusão a frágil estrutura que considerava ser a realidade e, uma vez desperto, quis partir para além dos limites que o aprisionavam. Desde então, todo aquele que um dia desejou fugir, sonhou em ir embora, ou fantasiou com novos rumos, acabou por acrescentar alguns quilômetros a mais nessa via arquetípica. No passado era composta por terra ou areia, porque não havia nada diferente para servir de pavimento. Com o tempo, vieram as pedras, as pontes, os túneis, o asfalto e os viadutos. Hoje ela pode ter qualquer formato – todas as formas que a mente humana já concebeu. Quem faz a paisagem é olho do viajante.

            É uma via idílica, fomentada pelas esperanças de quem botou a mochila nas costas e partiu ao amanhecer, tendo o sol nascente como guia. Mas também é uma rota assombrada pelos fantasmas daqueles que se perderam, vindos não se sabe de onde, com destinos aos quais nunca chegaram.

            A estrada não leva a lugar nenhum por que ela não tem ponto de chegada. Nunca termina. Tal qual ouroboros, é uma serpente que morde a própria cauda. Um caminho que se desdobra sobre si próprio. Um simulacro de viagem, que quando parece estar se aproximando da conclusão, se reconfigura em um novo começo. Ela não é um fim em si mesma, mas apenas um subterfúgio para a jornada do viajante. Não é intrinsecamente real até que o viajante a torne real e, por isso mesmo, é uma rota que não pode ser concluída, apenas transcendida.     

10 de abr. de 2023

O RELATOR DA NOITE - A VERDADE NÃO ESTÁ LÁ FORA

 

 

            A série estadunidense de ficção científica Arquivo X (The X-Files, no original em inglês) foi um dos maiores sucessos televisivos da década de 1990, conquistando uma legião de fãs ao redor do mundo e construindo um status de cult que se mantém até  os dias de hoje. Era na abertura do programa – em meio à inesquecível música-tema – que aparecia a frase “A verdade está lá fora”, verdadeiro lema norteador da premissa dos roteiros e que se consolidou como um bordão tão marcante na cultura pop da época a ponto de se tornar conhecido mesmo entre aqueles não costumavam assistir aos episódios. Essa inferência estava diretamente relacionada às crenças do personagem Fox Mulder (David Duchovny), um agente do FBI que tentava, a todo custo, provar que o Governo dos EUA era responsável por uma conspiração que visava manter oculto o fato de que não apenas existiam civilizações extraterrestres, mas também que elas interagiam de diversas formas com a população de nosso planeta. A representação iconográfica destas crenças estava no igualmente clássico poster afixado na parede do escritório de Mulder, onde constava um OVNI sobrevoando algumas árvores e a frase “I WANT TO BELIEVE” (“eu quero acreditar”) estampada em letras garrafais.

            A lembrança da saudosa série de TV me veio à mente como um devaneio, durante meus estudos sobre Gnosticismo. Stephan Hoeller – uma das mais proeminentes autoridades no assunto – afirma em seu livro Jung e os Evangelhos Perdidos que a civilização ocidental está “perdida” por ter se enredado em uma estrutura sociocultural – e até cognitiva – que desaprendeu a olhar para os aspectos subjetivos da realidade interior e passou a focar com todo o interesse apenas no panorama externo, naquela pequena fatia da realidade que constitui a dimensão meramente física. Para o autor, a humanidade pode vivenciar um verdadeiro salto evolutivo – uma melhoria nas mais diversas áreas de nossa existência – quando um número suficientemente grande de pessoas tiver desenvolvido uma expansão de sua própria consciência. “Como o falecido J. Krishnamurti apropriadamente afirmava: ‘O problema mundial é o problema individual’, e nós podemos acrescentar que o problema individual deve ser encarado dentro do indivíduo”, pois, “agora como outrora, nenhum deus ex machina, nenhuma divindade salvadora, externamente projetada, vai nos libertar da nossa condição”. Para Hoeller, assim como para tantos outros pensadores gnósticos, o idealizado equilíbrio geral, tão necessário para a evolução da nossa sociedade, está condicionado a um processo relativamente simples, ainda que isso não signifique que seja fácil: o indivíduo trabalha na expansão da sua consciência e nas potencialidades intrínsecas a ela e, como consequência natural dessa realização, promove a melhoria da realidade coletiva ao seu redor. Como isso pode ser feito? Através do desenvolvimento das faculdades subjetivas que compõe as facetas psicológica, emocional e espiritual de nossa existência, tão negligenciadas por uma parcela significativa de nossos contemporâneos. Esse processo de busca pelo conhecimento interior é muitas vezes chamado genericamente de gnose e só pode ser obtido quando se restringe o foco nas distrações do mundo exterior e se olha para dentro, por meio do autoconhecimento. Ou seja, para o Gnosticismo, a verdade não está lá fora, mas sim lá dentro.

            Trocadilhos infames e devaneios de fã à parte, o fato é que muito do conteúdo da série criada por Chris Carter permite reflexões acerca da dubiedade daquilo que chamamos de “realidade consensual”. Sob uma ótica gnóstica, a verdade não está lá fora porque, em última instância a realidade exterior é uma ilusão. Em Arquivo X essa natureza ilusória do mundo em que vivemos é sustentada por conspirações governamentais e até mesmo cósmicas, mas, insistindo no paralelo com a ficção, algo assim seria apenas um entre diversos níveis concêntricos de semelhante teor, como uma cebola composta por várias camadas de ilusões de diferentes profundidades. Richard Smoley, em sua obra Inner Christianity (que aqui no Brasil foi lançada com o espalhafatoso título Gnosticismo, Esoterismo e Magia) diz que os antigos gnósticos foram os precursores do que ele chama de “hermenêutica da suspeita”, que consiste em uma desconfiança intuitiva para com aquilo que se convencionou chamar de realidade. “Sabemos que o mundo não é o que pretende ser e existe algo melhor a que cada um de nós instintivamente aspira. Também sentimos que existe algo que se coloca entre nós e essa felicidade”. Para o autor, o século XX foi particularmente propício a instigar esse sentimento de suspeita, em função dos vários tipos de controle social que acabaram se tornando evidentes – como, por exemplo, o totalitarismo – mas também em razão da desconfiança de formas mais sutis e penetrantes de manipulação das massas e imposição do engano, ainda que, como se sabe, algumas delas sejam tão antigas quanto a própria civilização humana.

            Não obstante, para os antigos gnósticos a ilusão e o erro estavam impregnados nos mais diversos níveis da realidade exterior porque, em síntese, isso seria decorrente de forças que constituem o mundo e atuam sobre a vida humana buscando o aprisionamento da consciência e o consequente impedimento do despertar para a verdade superior. Na mitologia gnóstica, essas energias contrárias ao desenvolvimento da humanidade são personificadas sob a designação de arcontes, emanações do deus inferior responsável pela criação do nosso plano material, comumente referido como Demiurgo.

            Obviamente, deve-se estar atento para não incorrermos no equívoco da generalização, mas é fácil perceber como uma parcela significativa de nossa sociedade contemporânea está profundamente enredada nas ilusões exteriores. Vidas inteiras dedicadas ao trabalho em tempo integral, não apenas em busca do óbvio e necessário sustento, mas do status e dos engodos supérfluos proporcionados pelo dinheiro; apego insano à aparência física, que extrapola os limites do saudável e incorre no arquétipo dos “ratos de academia”, abuso de substâncias químicas, dietas degradantes, e os cada vez mais comuns procedimentos estéticos de natureza cirúrgica, que muitas vezes desencadeiam graves efeitos colaterais, de consequências físicas e psicológicas. E o que dizer da necessidade psicótica de aparecer, de ser visto, de ser notado, mesmo que seja pelos motivos mais torpes e absurdos? A busca desenfreada pela ilusão-mor de nossa época – a aprovação on-line – manifestada em números de likes e views não apenas cria, mas também “empodera” tecnodemônios com capacidade de escravização e destruição sem precedentes. E isso apenas arranha a superfície do grande lago negro da contemporaneidade. Todos sabemos que, quanto mais submergirmos, mais pútrido será o lodo que encontraremos lá embaixo.

            Naturalmente, o quadro que pintamos aqui – e que pode parecer um tanto pessimista aos olhos de alguns – decorre do desequilíbrio. Desde sempre as mais diversas tradições esotéricas abordaram a vital necessidade de se dedicar igual atenção aos quatro níveis fundamentais da nossa existência [físico, intelectual, emocional e espiritual] muito bem representados nos quatro elementos alquímicos – respectivamente: Terra, Ar, Água e Fogo. Quando se foca apenas nos aspectos exteriores, buscando-se majoritariamente os resultados concernentes ao nível físico, inevitavelmente, consequências sobrevêm. Para os adeptos do gnosticismo, a profunda introspecção, que transcende os limites da percepção física e intelectual, atingindo os níveis emocional e – principalmente – espiritual é o caminho para se chegar ao equilíbrio.

            Hoeller afirma que, para os junguianos e o pensamento da psicologia profunda, os interesses espirituais e religiosos são, em última análise, baseados em um impulso humano universal para a totalidade, uma vez que os diferentes componentes da nossa natureza tendem a buscar um processo de progressiva unificação (chamado por Jung de "individuação") que tem como meta a totalidade. O olhar interior que visa equilibrar os aspectos espiritual e emocional ao intelectual e físico em busca de uma integração é – ainda que em uma de suas facetas mais simplistas – a gnose.

            Smoley argumenta que quando a alma é iluminada pela gnose – depois que o espírito é estimulado em um ser humano, seja pela experiência de conversão ou simplesmente pelo movimento silencioso de um desejo interior – ele deve então proceder ao confronto com as forças do mundo [os arcontes, da mitologia]. Nesse nível, o indivíduo já dominou seus desejos carnais e as oscilações da psique no que tange à realidade exterior, de tal forma que “isso dá acesso a um tremendo poder, e é um estágio em que o miraculoso começa a se manifestar” mesmo nas situações cotidianas. O autor afirma, contudo, que são poucos o que atingem esse nível. “Talvez ninguém nesta Terra seja capaz de manter um estado de iluminação perfeita em todos os momentos. Até os praticantes mais avançados provavelmente têm um vislumbre da gnose e depois voltam às preocupações do mundo”. “Quando alguém percebe que isso aconteceu,” pondera ele, “levanta-se e começa de novo”, acrescentando ainda que para a maioria, entretanto, essa iluminação deve ser nutrida por um programa de prece, meditação e estudo por toda a vida, “aliado aos inevitáveis rigores da tentativa de viver uma vida decente e ética”. Como diz Cristo, “portanto, orai e vigiai sempre” (Lucas 21:36).   

            Em tempo, ainda que a gnose só possa ser obtida de maneira individual, a iluminação interior não é o fim do caminho. Talvez o grande ponto de virada para o indivíduo em busca da expansão da consciência seja o entendimento de que, à medida em que se aperfeiçoa, sua presença deve aperfeiçoar também a realidade ao seu redor. Smoley diz que “o melhor caminho para o progresso é tornar-se útil para o trabalho”, para o bem-estar da coletividade, uma vez que “conforme a percepção espiritual se aprofunda, fica cada vez mais claro que o progresso é impossível, a não ser que se esteja trabalhando para os outros e para a humanidade como um todo”, pois, em última instância, “não podemos nos desenvolver sozinhos, porque não existimos sozinhos”. Ainda que, sob muitos aspectos, isso pareça uma utopia, é possível que quando o equilíbrio interior da maioria se refletir no equilíbrio exterior da coletividade possamos então concluir que a verdade está, ao mesmo tempo, lá dentro e também lá fora.

24 de jan. de 2023

O RELATOR DA NOITE - ENSAIO Nº 03: SOBRE A PROTEÇÃO CONTRA OS DEMÔNIOS

 

           

 Por O Relator da Noite

 

            No primeiro e no segundo ensaios desta série, acreditamos ter elucidado o que são os demônios aos quais nos referimos e porque acreditamos que a realidade consensual em que vivemos se encontra completamente infestada por eles. Embora nos textos anteriores já tenhamos feito algumas breves menções acerca de como se proteger da influência demoníaca que impregna a psicosfera do nosso mundo, agora iremos detalhar um pouco mais o assunto.

            Inicialmente, devemos nos lembrar da natureza parasitária dos demônios. Embora possam se manifestar de forma inteligente quando as circunstâncias são propícias, eles não são, em essência, mais do que formas-pensamento elementais, emanadas por consciências primordiais. Por isso sua atuação junto aos seres humanos é mais instintiva do que qualquer outra coisa, movida pela busca de nutrição que garanta seu fortalecimento. Em Magic: White and Black, Franz Hartmann diz que essas criaturas “seguem o empuxo da atração cega da mesma forma que a limalha de ferro é atraída por um ímã; onde quer que haja condições propícias ao seu desenvolvimento, para aí elas são atraídas”, e ainda acrescenta que “esses elementais vivem no reino da alma do homem, e enquanto ele viver, fortalecem-se e engordam, pois vivem do princípio vital dele e nutrem-se dos pensamentos que emite”. Segundo o autor, os demônios não apenas são as manifestações das emoções negativas da humanidade como também se retroalimentam da energia psíquica emanada pelas pessoas “contaminadas” por essas emoções, propagando assim um ciclo de ação e reação de natureza metafísica.

            Na obra supracitada, Hartmann afirma que, uma vez que os demônios já estejam impregnados no campo áurico de um indivíduo, “não podem ser eliminados por cerimônias religiosas, nem exorcizados por clérigos; só podem ser destruídos pelo poder da vontade espiritual do homem divino, que os aniquila como a luz elimina as trevas ou um raio rasga as nuvens”. Aqui, quando o autor fala em “destruir” e “eliminar”, devemos entender como a remoção dos demônios da esfera psíquica da pessoa, pois estes seres não podem ser extintos em definitivo até que haja algum humano receptivo a atraí-los [por afinidade energética], hospedá-los e nutri-los. Contudo, a vontade férrea citada pelo autor como requisito para se manter em um estado vibracional elevado que seja incompatível com a influência demoníaca não é um estado de consciência tão fácil de ser alcançado e menos ainda de ser mantido de forma prolongada. Em suas palavras: “Somente os que despertam para a consciência divina espiritual possuem esse tipo de vontade, da qual os não-regenerados nada sabem”. Porém, “aqueles que ainda não estão assim avançados podem imputar morte lenta a esses Elementais, retirando deles o alimento de que necessitam, simplesmente não desejando ou recusando-se a desfrutar sua companhia e não consentindo voluntariamente na sua existência”.

            Com base no panorama que procuramos expor no ensaio anterior, não é difícil concluir que é praticamente impossível nos dias atuais se manter imune ao assédio de alguns [ou muitos] demônios. O que pode variar imensamente é a maneira com que cada pessoa lida com isso. Tendo em vista o que nos parece ser o estado consciencial do indivíduo médio da nossa sociedade, pode-se supor que uma quantidade absurdamente grande de gente se debate cotidianamente em meio aos vícios, à desarmonia e a negatividade que tanto atrai quanto nutre os seres maléficos.

            Nos casos em que a contaminação demoníaca [muitos autores prefeririam o termo “possessão”] já é um fato consumado, quando as sombras das Qliphoth já encaminharam o sujeito no rumo da autodestruição e a sua degradação psíquica já é tal que ele não consegue sequer esboçar a “vontade férrea” necessária para expulsar os demônios do seu campo áurico por conta própria, então ele inevitavelmente precisará ser socorrido por terceiros. Em circunstâncias assim, toda ajuda deve ser considerada. Uma coisa que eu percebo é que muita gente esquece de nossa natureza multifacetada, tão bem expressa nos quatro elementos simbólicos representados pela Terra (físico), Ar (intelectual), Água (emocional) e Fogo (espiritual), de forma que um “tratamento” bem-sucedido deveria atuar sobre todos esses níveis que, apesar de intrinsecamente interligados, possuem suas particularidades. Obviamente, cada caso precisa ser analisado individualmente para então se cogitar as melhores possibilidades, que poderiam ir desde acompanhamento terapêutico com psicólogo ou psicanalista, atividades físicas, uso de medicamentos alopáticos ou homeopáticos [sempre receitados por profissional da área], até alguma(s) entre as inúmeras opções de intervenções alternativas, como, por exemplo, reiki e acupuntura.

            Contudo, acredito que, em paralelo com uma ou várias das possibilidades citadas acima, a intervenção específica no campo espiritual é indispensável. Todos os sistemas magísticos e vertentes de natureza mística possuem seus métodos de exorcismos, banimentos, desobsessões, descarregos, etc, e não tenho dúvida de que todos eles funcionam para algum tipo de pessoa. O ponto-chave é encontrar a opção que melhor se harmonize com o perfil específico de cada indivíduo. Particularmente, posso falar em favor dos ritos do Candomblé e da Umbanda [a qual frequento regularmente], que, no meu entendimento, são extremamente eficazes quando realizados em locais sérios e por pessoas capacitadas.

            Mas, nada do que citamos até aqui é suficiente por si só. Em um texto anterior mencionei um exemplo de algo que eventualmente presencio na Umbanda e ilustra o fato de que, para se livrar de um demônio não basta afastá-lo, mas também cessar o comportamento que o atrai. O que acontece algumas vezes é que a pessoa chega ao terreiro com um “encosto” [que pode ser um espírito desencarnado ou um demônio envolto em suas respectivas energias negativas] e então ela passa pelo descarrego e essas forças maléficas são removidas, saindo dali com seu campo áurico purificado. Contudo, se ela não modifica os padrões de pensamentos, sentimentos e atitudes que atraíram o ser negativo anteriormente, é só uma questão de tempo até ela granjear outro semelhante. É preciso a reforma íntima, como dizem os espíritas, a ascese de algumas seitas gnósticas, a prática de lapidar a pedra bruta, como se diz na Maçonaria.

            A urgência em se buscar vivenciar padrões vibratórios mais elevados decorre também do fato de que os demônios raramente atuam sozinhos. Quando um deles consegue se infiltrar no campo consciencial de algum indivíduo, imediatamente sua atuação começa a provocar um rebaixamento vibracional que, consequentemente, torna a vítima propícia e vulnerável à infestação. Isso pode ser muito bem ilustrado nas passagens bíblicas de Mateus 12: 43-45, citando o caso de um demônio que foi expulso de um homem por Jesus mas que, tempos depois, ao perceber a “porta aberta” e convidativa, retornou ao hospedeiro trazendo consigo outros sete demônios ainda piores do que ele, e também em Marcos 5:9, onde Jesus indagou a entidade que estava possuindo um sujeito “e perguntou-lhe: Qual é o teu nome? E lhe respondeu, dizendo: Legião é o meu nome, porque somos muitos”. Guardadas as proporções, é possível que todo mundo já tenha presenciado algo assim [ou pelo menos ouvido falar] na realidade cotidiana. Algum caso instigado pela Luxúria, motivado pela Avareza ou desencadeado pela Inveja, que posteriormente atraiu a Ira e descambou em violência. Sob a ótica dos Demônios dos Sete Pecados Capitais, é fácil traçar paralelos. Basta ler os jornais ou conferir os noticiários para ter acesso a uma gama perturbadora de exemplos.

            Tendo em vista tudo isso, nos parece evidente que buscar a profilaxia é preferível do que ter que depender de tratamentos. Mantenho a opinião, já expressada em outros momentos, de que, para fins práticos, é muito pertinente a recomendação exaustivamente frisada por Allan Kardec ao afirmar que a melhor forma de afastar a influências dos espíritos obsessores é atraindo a presença dos espíritos benévolos. Pragmaticamente, o que vale para os espíritos dos mortos vale também para os anjos e demônios. No trato com esses habitantes do Plano Astral, é muito fácil perceber que nossos pensamentos fazem com que eles nos notem, nossos sentimentos os atraem e nossas atitudes os tornam nossos aliados ou algozes, dependendo do caso. E por falar nos anjos [que podem receber inúmeras outras denominações, de acordo com o contexto], também já expusemos em outro ensaio nosso entendimento de que eles têm uma existência tão real quanto a dos demônios e sua natureza é análoga a deles, mas, obviamente, com a vital diferença de que os seres angelicais atuam através das emoções positivas, instigando nos homens, por assim dizer, sua propensão a agir em prol da harmonia e da evolução. Ter proximidade com entidades de padrões vibratórios elevados é uma óbvia maneira de manter afastadas as energias maléficas, e muitos sistemas magísticos e ordens esotéricas possuem métodos para invocar ou evocar tais seres, não sendo difícil de se obter mais informações a respeito.

            Penso ter deixado suficientemente claro o porquê de acreditarmos que o contato com as forças de outros planos da existência ocorrem até mesmo em meio a situações banais do cotidiano, ainda que a grande maioria das pessoas não se dê conta disso. É pela mais pura afinidade [semelhante atrai semelhante] que nossos padrões de pensamentos, sentimentos e atitudes definem se teremos anjos ou demônios atuando em nossas vidas.

            Existe ainda um último ponto que eu gostaria de abordar antes de encerrar este texto. Trata-se dessa dimensão extrafísica da realidade [com suas múltiplas subdivisões] que no Espiritismo é frequentemente designada como “Psicosfera” e que na maioria das vertentes ocultistas é chamada de “Plano Astral”, ainda que também seja corriqueiro entre determinados autores termos como, por exemplo, “Campo Akáshico”, “Éter”, “Luz Astral”, e que, na visão de alguns, consiste em uma interpretação mística do “Inconsciente Coletivo” junguiano. Esse é o nível da existência onde subjazem os demônios e os anjos e, consequentemente, onde pululam as forças anímicas a eles correspondentes e que se manifestam na aura humana por meio das emoções. Como nessa dimensão a lógica do espaço-tempo não está sujeita às mesmas restrições do Plano Físico, todo conteúdo emanado por qualquer consciência que exista ou tenha existido em nosso planeta [em qualquer local ou época] pode exercer influência sobre outras, uma vez que, em um nível muito profundo, todas estão emaranhadas em um mesmo substrato energético primordial. Na obra Elementargeister, Hartmann aborda o tema afirmando que um pensamento-entidade que habite o Plano Astral, proveniente de uma consciência que pode até mesmo tê-lo emanado em alguma era remota ou algum lugar longínquo tem condições de influir em outra parte do mundo sobre este ou aquele homem predisposto, amadurecer em sua mente, e tornar-se operante dentro dele.

            A conclusão que disso decorre é que todo indivíduo empenhado em refinar seu padrão de pensamentos e emoções está não apenas atuando em seu próprio benefício ao manter afastada a ameaça demoníaca como também está contribuindo com o bem-estar de toda a humanidade, ao deixar de fortalecer os demônios e, consequentemente, diminuir a esfera de influência das Qliphoth por eles habitadas. Este é o motivo pelo qual escrevo estes ensaios esquisitos. Talvez seja pretensão, mas penso que, se entre os inúmeros leitores, apenas um acreditar que estas linhas tiveram alguma serventia para a sua reflexão e subsequente expansão da consciência, então já valeu à pena. Se, por outro lado, todo mundo achar que isso não passa de bobagem sem pé e nem cabeça, mesmo assim está valendo, porque ao produzir este material eu estou estudando e aprendendo cada vez mais. Se uma única pessoa acredita que está evoluindo em algum aspecto, por mínimo que seja, então o mundo inteiro está evoluindo junto. Sempre lembro daquela máxima de Platão: “Nunca desencoraje ninguém que continuamente faz progresso, não importa quão devagar”.

            Eu não me considero nenhum exemplo de otimismo, mas quero acreditar que um dia [quiçá daqui a alguns séculos] o nível consciencial da humanidade vai ter se elevado ao ponto de a harmonia de pensamentos, sentimentos e atitudes não ser mais compatível com a presença de nenhum demônio. Talvez será o ápice da “Transição Planetária” tão alardeada pelos espíritas, ou o apogeu da “Nova Era” idealizada por tantas correntes esotéricas e pode ser que daí então estaremos finalmente livres.