10 de abr. de 2023

O RELATOR DA NOITE - A VERDADE NÃO ESTÁ LÁ FORA

 

 

            A série estadunidense de ficção científica Arquivo X (The X-Files, no original em inglês) foi um dos maiores sucessos televisivos da década de 1990, conquistando uma legião de fãs ao redor do mundo e construindo um status de cult que se mantém até  os dias de hoje. Era na abertura do programa – em meio à inesquecível música-tema – que aparecia a frase “A verdade está lá fora”, verdadeiro lema norteador da premissa dos roteiros e que se consolidou como um bordão tão marcante na cultura pop da época a ponto de se tornar conhecido mesmo entre aqueles não costumavam assistir aos episódios. Essa inferência estava diretamente relacionada às crenças do personagem Fox Mulder (David Duchovny), um agente do FBI que tentava, a todo custo, provar que o Governo dos EUA era responsável por uma conspiração que visava manter oculto o fato de que não apenas existiam civilizações extraterrestres, mas também que elas interagiam de diversas formas com a população de nosso planeta. A representação iconográfica destas crenças estava no igualmente clássico poster afixado na parede do escritório de Mulder, onde constava um OVNI sobrevoando algumas árvores e a frase “I WANT TO BELIEVE” (“eu quero acreditar”) estampada em letras garrafais.

            A lembrança da saudosa série de TV me veio à mente como um devaneio, durante meus estudos sobre Gnosticismo. Stephan Hoeller – uma das mais proeminentes autoridades no assunto – afirma em seu livro Jung e os Evangelhos Perdidos que a civilização ocidental está “perdida” por ter se enredado em uma estrutura sociocultural – e até cognitiva – que desaprendeu a olhar para os aspectos subjetivos da realidade interior e passou a focar com todo o interesse apenas no panorama externo, naquela pequena fatia da realidade que constitui a dimensão meramente física. Para o autor, a humanidade pode vivenciar um verdadeiro salto evolutivo – uma melhoria nas mais diversas áreas de nossa existência – quando um número suficientemente grande de pessoas tiver desenvolvido uma expansão de sua própria consciência. “Como o falecido J. Krishnamurti apropriadamente afirmava: ‘O problema mundial é o problema individual’, e nós podemos acrescentar que o problema individual deve ser encarado dentro do indivíduo”, pois, “agora como outrora, nenhum deus ex machina, nenhuma divindade salvadora, externamente projetada, vai nos libertar da nossa condição”. Para Hoeller, assim como para tantos outros pensadores gnósticos, o idealizado equilíbrio geral, tão necessário para a evolução da nossa sociedade, está condicionado a um processo relativamente simples, ainda que isso não signifique que seja fácil: o indivíduo trabalha na expansão da sua consciência e nas potencialidades intrínsecas a ela e, como consequência natural dessa realização, promove a melhoria da realidade coletiva ao seu redor. Como isso pode ser feito? Através do desenvolvimento das faculdades subjetivas que compõe as facetas psicológica, emocional e espiritual de nossa existência, tão negligenciadas por uma parcela significativa de nossos contemporâneos. Esse processo de busca pelo conhecimento interior é muitas vezes chamado genericamente de gnose e só pode ser obtido quando se restringe o foco nas distrações do mundo exterior e se olha para dentro, por meio do autoconhecimento. Ou seja, para o Gnosticismo, a verdade não está lá fora, mas sim lá dentro.

            Trocadilhos infames e devaneios de fã à parte, o fato é que muito do conteúdo da série criada por Chris Carter permite reflexões acerca da dubiedade daquilo que chamamos de “realidade consensual”. Sob uma ótica gnóstica, a verdade não está lá fora porque, em última instância a realidade exterior é uma ilusão. Em Arquivo X essa natureza ilusória do mundo em que vivemos é sustentada por conspirações governamentais e até mesmo cósmicas, mas, insistindo no paralelo com a ficção, algo assim seria apenas um entre diversos níveis concêntricos de semelhante teor, como uma cebola composta por várias camadas de ilusões de diferentes profundidades. Richard Smoley, em sua obra Inner Christianity (que aqui no Brasil foi lançada com o espalhafatoso título Gnosticismo, Esoterismo e Magia) diz que os antigos gnósticos foram os precursores do que ele chama de “hermenêutica da suspeita”, que consiste em uma desconfiança intuitiva para com aquilo que se convencionou chamar de realidade. “Sabemos que o mundo não é o que pretende ser e existe algo melhor a que cada um de nós instintivamente aspira. Também sentimos que existe algo que se coloca entre nós e essa felicidade”. Para o autor, o século XX foi particularmente propício a instigar esse sentimento de suspeita, em função dos vários tipos de controle social que acabaram se tornando evidentes – como, por exemplo, o totalitarismo – mas também em razão da desconfiança de formas mais sutis e penetrantes de manipulação das massas e imposição do engano, ainda que, como se sabe, algumas delas sejam tão antigas quanto a própria civilização humana.

            Não obstante, para os antigos gnósticos a ilusão e o erro estavam impregnados nos mais diversos níveis da realidade exterior porque, em síntese, isso seria decorrente de forças que constituem o mundo e atuam sobre a vida humana buscando o aprisionamento da consciência e o consequente impedimento do despertar para a verdade superior. Na mitologia gnóstica, essas energias contrárias ao desenvolvimento da humanidade são personificadas sob a designação de arcontes, emanações do deus inferior responsável pela criação do nosso plano material, comumente referido como Demiurgo.

            Obviamente, deve-se estar atento para não incorrermos no equívoco da generalização, mas é fácil perceber como uma parcela significativa de nossa sociedade contemporânea está profundamente enredada nas ilusões exteriores. Vidas inteiras dedicadas ao trabalho em tempo integral, não apenas em busca do óbvio e necessário sustento, mas do status e dos engodos supérfluos proporcionados pelo dinheiro; apego insano à aparência física, que extrapola os limites do saudável e incorre no arquétipo dos “ratos de academia”, abuso de substâncias químicas, dietas degradantes, e os cada vez mais comuns procedimentos estéticos de natureza cirúrgica, que muitas vezes desencadeiam graves efeitos colaterais, de consequências físicas e psicológicas. E o que dizer da necessidade psicótica de aparecer, de ser visto, de ser notado, mesmo que seja pelos motivos mais torpes e absurdos? A busca desenfreada pela ilusão-mor de nossa época – a aprovação on-line – manifestada em números de likes e views não apenas cria, mas também “empodera” tecnodemônios com capacidade de escravização e destruição sem precedentes. E isso apenas arranha a superfície do grande lago negro da contemporaneidade. Todos sabemos que, quanto mais submergirmos, mais pútrido será o lodo que encontraremos lá embaixo.

            Naturalmente, o quadro que pintamos aqui – e que pode parecer um tanto pessimista aos olhos de alguns – decorre do desequilíbrio. Desde sempre as mais diversas tradições esotéricas abordaram a vital necessidade de se dedicar igual atenção aos quatro níveis fundamentais da nossa existência [físico, intelectual, emocional e espiritual] muito bem representados nos quatro elementos alquímicos – respectivamente: Terra, Ar, Água e Fogo. Quando se foca apenas nos aspectos exteriores, buscando-se majoritariamente os resultados concernentes ao nível físico, inevitavelmente, consequências sobrevêm. Para os adeptos do gnosticismo, a profunda introspecção, que transcende os limites da percepção física e intelectual, atingindo os níveis emocional e – principalmente – espiritual é o caminho para se chegar ao equilíbrio.

            Hoeller afirma que, para os junguianos e o pensamento da psicologia profunda, os interesses espirituais e religiosos são, em última análise, baseados em um impulso humano universal para a totalidade, uma vez que os diferentes componentes da nossa natureza tendem a buscar um processo de progressiva unificação (chamado por Jung de "individuação") que tem como meta a totalidade. O olhar interior que visa equilibrar os aspectos espiritual e emocional ao intelectual e físico em busca de uma integração é – ainda que em uma de suas facetas mais simplistas – a gnose.

            Smoley argumenta que quando a alma é iluminada pela gnose – depois que o espírito é estimulado em um ser humano, seja pela experiência de conversão ou simplesmente pelo movimento silencioso de um desejo interior – ele deve então proceder ao confronto com as forças do mundo [os arcontes, da mitologia]. Nesse nível, o indivíduo já dominou seus desejos carnais e as oscilações da psique no que tange à realidade exterior, de tal forma que “isso dá acesso a um tremendo poder, e é um estágio em que o miraculoso começa a se manifestar” mesmo nas situações cotidianas. O autor afirma, contudo, que são poucos o que atingem esse nível. “Talvez ninguém nesta Terra seja capaz de manter um estado de iluminação perfeita em todos os momentos. Até os praticantes mais avançados provavelmente têm um vislumbre da gnose e depois voltam às preocupações do mundo”. “Quando alguém percebe que isso aconteceu,” pondera ele, “levanta-se e começa de novo”, acrescentando ainda que para a maioria, entretanto, essa iluminação deve ser nutrida por um programa de prece, meditação e estudo por toda a vida, “aliado aos inevitáveis rigores da tentativa de viver uma vida decente e ética”. Como diz Cristo, “portanto, orai e vigiai sempre” (Lucas 21:36).   

            Em tempo, ainda que a gnose só possa ser obtida de maneira individual, a iluminação interior não é o fim do caminho. Talvez o grande ponto de virada para o indivíduo em busca da expansão da consciência seja o entendimento de que, à medida em que se aperfeiçoa, sua presença deve aperfeiçoar também a realidade ao seu redor. Smoley diz que “o melhor caminho para o progresso é tornar-se útil para o trabalho”, para o bem-estar da coletividade, uma vez que “conforme a percepção espiritual se aprofunda, fica cada vez mais claro que o progresso é impossível, a não ser que se esteja trabalhando para os outros e para a humanidade como um todo”, pois, em última instância, “não podemos nos desenvolver sozinhos, porque não existimos sozinhos”. Ainda que, sob muitos aspectos, isso pareça uma utopia, é possível que quando o equilíbrio interior da maioria se refletir no equilíbrio exterior da coletividade possamos então concluir que a verdade está, ao mesmo tempo, lá dentro e também lá fora.

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