23 de jul. de 2023

A CAMINHO DO INFERNO


 

Por André Bozzetto Jr

           

            Nunca fui de ficar pensando sobre sorte, azar, destino, esse tipo de coisa. Simplesmente vivi um dia de cada vez e pronto. Mas, pelo menos naquela noite eu deveria ter desconfiado de que alguma coisa estava errada. O passado devia ter me ensinado uma lição. Começou quando a guria me mandou mensagem depois da meia-noite. Disse que era para eu ir na casa dela, assim, sem mais nem menos. Eu já vinha xavecando ela há tempos, mas o negócio não avançava. Às vezes parecia que ela queria, às vezes não. Daí me mandou mensagem do nada, deixando bem claro que ia rolar. E eu fui, né! Quem não iria? Uma gata daquelas...

            Peguei o carro e encarei a estrada. Aqui preciso dizer que fazia muito tempo – uns quatro anos – que eu evitava de todo jeito transitar naquele trecho de noite. Não era por causa das lendas. Também nunca fui de acreditar em assombração. Mas acontece que eu lembrava do que aconteceu com os meus amigos e ficava nervoso. Me dava tipo uma crise de ansiedade só de pensar que era para eu estar junto na noite em que morreram. Tínhamos combinado que iríamos a um show em Chapecó no sábado de noite. Só que durante a tarde eu estava tirando um cochilo no sofá e tive um sonho muito estranho. Sonhei que já estávamos indo para o show. Betinho, Rodrigo, Barata e eu. No som estava tocando Higway to Hell, do AC/DC, o que já seria de deixar qualquer um com a pulga atrás da orelha. Só que no sonho eu fiquei empolgado com a música e quis me esticar desde o banco de trás para aumentar o volume do rádio. Com isso acabei atrapalhando o Betinho, que estava dirigindo. Ele perdeu o controle do carro – o seu famoso Gol branco rebaixado – e acabamos saindo da estrada e capotando, lá na curva da zona. Quando o carro começou a pegar fogo eu acordei de supetão, molhado de suor, parecendo que ainda ouvia os gritos de desespero dos meus amigos dentro da minha cabeça enquanto eram queimados vivos.

            Senti uma queimação no estômago e um aperto no peito. Disse para mim mesmo que o suor devia ser porque eu estava com febre, mas hoje sei que estava apenas inventando uma desculpa. Eu fiquei apavorado por causa do sonho, isso sim. Liguei para os caras e disse que não iria no show porque estava doente. Passei a noite agitado, quase sem conseguir dormir até que de manhã veio a notícia. Já imagina, né? Os caras se acidentaram na curva da zona e estavam todos mortos. Queimados.

            Eu pirei com aquilo. Contei para todo mundo sobre o sonho. Acho que alguns acreditaram, outros não. Os meus pais pensaram que eu estava ficando meio louco e me levaram em psicólogo e psiquiatra. Comecei a fazer terapia e tomar medicamento, até praticamente me convencer de que estava tudo bem, que o sonho foi apenas uma coincidência, ou talvez nem tivesse ocorrido de verdade. O choque com a notícia da morte dos meus melhores amigos teria me induzido a criar uma memória falsa, algo assim.

            Com o tempo fui me sentindo melhor e passei a evitar pensar sobre aquilo. Só continuava evitando passar pelo local do acidente à noite. Até receber a tal mensagem da guria. Mulher mexe com a cabeça da gente, né? Com a de cima e a de baixo.

            Então, lá fui eu. Era quase uma hora da madrugada e a estrada estava deserta. Até a cidade vizinha, onde a guria morava, era apenas alguns minutos, mas tinha que passar pela curva da zona. Já comecei a ficar ansioso um quilômetro antes do local, mas tentei não dar bola. Quando cheguei no ponto exato, parecia que o meu coração iria saltar pela boca, mas assim que passei começou a aliviar. Mas, só por alguns metros. Começou aquele barulho e eu já deduzi o que era. Tive que parar, porque não tinha outro jeito. E, lá estava: pneu furado. Traseiro, lado esquerdo. Eu já tinha carteira de habilitação há seis anos, dirigia todos os dias, mas nunca tinha furado um pneu antes. E aí, por mais que não queira, começa a vir muitas coisas na cabeça. A mensagem surpreendente da guria, o  pneu furado pela primeira vez, poucos metros à frente do local do acidente, a estrada vazia, com fama de ser assombrada. Sabe quando o medo começa a tomar conta da gente?

            Fui até o porta-malas disposto a trocar o pneu tão rápido quanto um “pit stop” de Fórmula 1. Mas, é claro, o estepe estava completamente vazio. Eu nunca tinha lembrado de calibrar aquela porra desde que comprei o carro, três anos antes. Agora, me lembrando, percebo que não era verdade o que eu falei antes, sobre não acreditar nessas coisas de destino. Provavelmente eu sempre acreditei sim, mas negava, evitava ficar pensando porque tinha medo. Me esforçava para aceitar quando os médicos diziam que o sonho e tudo o mais eram apenas coisa de trauma, confusão da minha mente. Só que, naquela hora, tudo veio à tona e o medo foi virando pânico.

            Fiquei pensando no que fazer. Fechar o carro e ir a pé? Ainda faltava uns cinco quilômetros e a escuridão era quase total. Me trancar no carro e aguardar alguém passar para então pedir ajuda? Ali? Do ladinho do local onde os meu amigos fritaram até a morte? Sem chance. Ir até a zona em busca de socorro? Não ia adiantar. Estranhamente já estava fechada. Até o famoso letreiro vermelho de neon estava desligado. E o celular? Totalmente sem sinal.

            Se havia alguma outra opção naquele momento, não sei, porque não deu tempo de pensar. Vi faróis se aproximando, na descida. Cheguei a acreditar que era a minha salvação. Alguém iria parar, me ajudar e pronto, tudo resolvido. Só que não. Conforme o carro ia chegando mais perto, comecei a sentir uma sensação estranha. Era como se o ar de repente tivesse ficado mais pesado e aquele sentimento de pavor estivesse de volta com força total. Comecei sentir um cheiro forte de coisa queimada. E então eu ouvi. Highway to Hell tocando a todo volume no interior do veículo. Era um Gol branco e rebaixado que estava estacionando ali, bem ao meu lado. A película preta no para-brisa, as rodas cromadas. Era inconfundível.

                Eu não queria, realmente não queria, mas não consegui evitar. Olhei para dentro do carro e lá estavam Betinho, Rodrigo e Barata. Queimados, descarnados, mutilados, com os ossos à mostra, e ainda assim vivos – mortos-vivos – estendendo o que havia sobrado de seus braços na minha direção e gritando meu nome.

            Depois disso eu só lembro de partes do que aconteceu. Embarquei no meu carro, dei um cavalo de pau no meio da pista e toquei de volta na direção de casa. Fui acelerando tudo que dava, chorando e gritando de pavor. O pneu furado foi se despedaçando pelo caminho, perdendo lascas de borracha até se desmanchar. Daí foi aquela faisqueira da roda esmerilhando no asfalto, fazendo um barulhão infernal.

            Os meus pais e o meu irmão contam que larguei o carro no meio da rua, entrei gritando e me enfiei debaixo da cama. Não me lembro direito dessa parte. Dizem que fiquei três dias e três noites praticamente sem sair do quarto. Precisavam levar a comida e os remédios até lá, porque eu me recusava a sair a não ser para ir rapidamente ao banheiro.

            Com o carro, o estrago foi grande. Do pneu não sobrou nada, nem sequer um pedaço de arame. A roda já era. Entortou, lixou, se foi. O eixo estragou também e deu mais alguns problemas que não estou lembrando. Custou um dinheirão para arrumar tudo. No asfalto na frente de casa ficou um verdadeira canaleta no local onde o metal veio esmerilhando o chão. Tá lá até hoje e segue a se perder de vista.

            É claro que quase ninguém acreditou na minha história. Uns acham que eu estava drogado, outros pensam que eu tive um surto. Já faz um ano que isso aconteceu e agora eu tomo ainda mais comprimidos do que antes. Não saio mais na rua. Tranquei a faculdade e pedi demissão do emprego. Às vezes faço uns bicos, consertado ou formatando computadores para conhecidos, aqui em casa mesmo.

            No fundo não sei ao certo o que pensar sobre tudo isso. Acho que os remédios me deixam um pouco confuso. Em alguns dias tenho certeza que tudo foi real, em outros quase me convenço que poderia ser só coisa da minha cabeça mesmo. Eu liguei para a guria um tempo depois daquela noite e ela me disse que nunca me mandou mensagem nenhuma. E o pior é que nem tenho como conferir, porque perdi o celular no desespero de fugir daquele lugar. Meu irmão e meu pai foram até lá, procuraram, mas não acharam.

            Um dia eu assisti um filme que falava sobre a possível existência de realidades paralelas por onde a nossa consciência poderia transitar, muitas vezes sem que a gente se desse conta. Achei intrigante e fui pesquisar na internet. Até comprei uns livros sobre o assunto. Então li que existem teorias sobre essas múltiplas realidades alternativas, onde diferentes versões de nós mesmos levam vidas que podem ser muito parecidas ou muito diferentes daquela que consideramos “a verdadeira”. Se realmente há casos onde se pode passar de uma para outra, fico me perguntando se não existe uma versão onde eu causei o acidente que levou à morte os meus amigos e, de alguma forma, transferi minha consciência para cá, nessa dimensão onde não fui ao show com eles e, assim, não morri. Há quem acredite que certos lugares são mais propícios a se passar de uma realidade para outra, como se fossem portais dimensionais. Será que aquele trecho da estrada, que já ganhou até apelidos como “Estrada da Morte” e “Rota do Inferno” não é um desses? Será que todas as histórias de assombração sobre aquele lugar não têm ligação com isso? Será que os meus amigos mortos não atravessaram de uma dimensão para a outra com a intenção de me buscar, já que causei a morte deles e “fugi” para outra realidade? Aquele sonho estranho poderia muito bem ter sido isso, um lapso de consciência que me transferiu daquela dimensão para esta.

         Não sei se algum dia vou encontrar a resposta. Não sei se em algum momento vou conseguir lidar melhor com isso tudo. Terei uma vida normal novamente? No momento acho difícil. Assim que anoitece tomo meu remédio para dormir e vou para a cama, com muito medo de acordar no meio da madrugada ouvindo Highway to Hell e vendo meus amigos mortos me chamando para partir com eles a caminho do inferno.

3 de jul. de 2023

O ESTRANHO FUGITIVO

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Esse tipo de fugitivo é dos mais estranhos, porque sua fuga começa quando não há ninguém lhe perseguindo. Na verdade, ele gostaria que houvesse. Ser perseguido, ser notado, ser almejado – por mais paradoxal que seja – é estar vivo e, às vezes, ele se sente morto.

            O estranho fugitivo não foge de algum lugar ou indivíduo específico, mas sim da realidade. Ele olha ao redor e o que vê lhe parece hostil, não porque lhe ameaça, mas porque o ignora. A sensação de não pertencimento o instiga a partir. Ele não sabe ao certo para onde. A escuridão das dúvidas lhe oprime e o medo do escuro reverbera o medo do desconhecido. Fugir para um lugar novo não parece seguro. E se o novo for pior do que o antigo? E se lá ele se sentir ainda mais vazio, mais frio, mais sozinho, mais perdido? Não, definitivamente, as incertezas do futuro não são atraentes para esse perfil de fugitivo. Mas, se o presente lhe hostiliza e o futuro lhe amedronta, para onde mais ele pode fugir? Então, nesse paradoxo, se desvela a sua mais marcante característica: o estranho fugitivo é aquele que quer fugir para o passado.

            Mas, é claro, o passado que ele almeja é um passado idealizado, um recorte composto somente pelos momentos bons – alguns notadamente reais, outros consciente ou inconscientemente exagerados e superestimados, e outros ainda que existem apenas em sua mente.

            Na encruzilhada em que o fugitivo se encontra há várias rotas de fuga, mas todas são efêmeras, porque no passado não há permanência. Tal qual a areia de uma ampulheta, escorre sempre de forma inexorável. Seu destino é desvanecer.

            Ouvir recorrentemente as músicas que serviram de trilha sonora aos grandes momentos, rever os filmes clássicos que marcaram época, jogar os velhos videogames que sedimentaram a diversão de toda uma geração. Rememorações prazerosas, porém fugazes. Miragens fadadas a desaparecer na aridez de um deserto interior onde já não brilha mais sol nenhum. Tudo que era, tudo que houve, já não está mais lá. Não há mais troca de discos de vinil e fitas K7. As locadoras de vídeo morreram melancólicas e vazias, com não mais do que alguns poucos nostálgicos para chorar suas memórias em meio a fitas VHS empoeiradas e DVDs riscados. Jogos de 8 e 16 bits? Todos humilhados e trucidados pelas armas modernas de guerreiros moldados em gráficos realistas, de telas de PC e consoles de última geração, altamente treinados por horas infindáveis de partidas on-line. Para contar a História dessa fase idílica perdida, não há mais sítios arqueológicos lá fora. Os resquícios, as fontes históricas jazem agora em HDs, “nuvens on-line” e streamings. O passado virou pó e o futuro é virtual. Para o presente sobrou só um buraco, escuro, triste e vazio.

            Mas essas são as rotas secundárias, obscuras, lembradas por poucos e frequentadas por quase ninguém. A grande freeway que conduz ao “Eldorado” litorâneo do passado é acessada in loco. O estranho fugitivo é um viajante irredutível e o seu ponto de chegada nunca está lá na frente, mas sempre ali atrás. Trafega na contramão do trânsito ordinário, navega no contrafluxo da correnteza. E quando finalmente chega ao seu destino em busca do antigo, se defronta com o novo.

            A busca é pelas paisagens de ontem, mas elas já foram soterradas pelas de hoje. Onde havia aquela casa de estilo peculiar, emanando imagens de existência pitoresca, agora há um arranha-céu de face espelhada, que reflete apenas a frieza do trivial. Aquele prédio antigo, tão singular, tão cheio de história, foi posto abaixo e no seu lugar irrompeu outro, maior e mais moderno, mas que não é cenário de nenhuma crônica, não instiga nenhum devaneio. Uma torre de concreto e ferro desinteressada no que ficou para trás e indiferente ao que está por vir. Monumento indolente, não representa nada, porque foi erigido para ser apenas mais um entre tantos outros.

               Outdoors decrépitos e rasgados tomam o lugar onde antes havia a sombra aconchegante de árvores frondosas. Fachadas de redes de farmácias se impõe onde antes estava o comércio tradicional, que foi julgado ultrapassado e teve que fechar as portas há muito tempo. Muros altos e pichados, cercas elétricas e intimidadoras escondem a lembrança de onde existiam gramados verdejantes para crianças brincarem e varandas aconchegantes para casais se sentarem ao final da tarde. Cores – que eram vivas porque tinham vida – foram encobertas por tons monocromáticos e melancólicos.

            O estranho fugitivo descobre que sua fuga nunca será um sucesso, pois seu refúgio é uma utopia. Anseia por aquilo que não existe mais. Procura o que não pode mais ser encontrado. Anda em círculos, mas nunca chega onde deseja, pois, tal qual um ouroboros, está sempre mordendo a própria cauda.

            Ainda há frestas por onde ele consegue vislumbrar resquícios do que era, focos de resistência que se impõe ante o avanço implacável do porvir. Uma banca de jornal de onde vieram os gibis que embalaram fantasias, um restaurante que sediou refeições memoráveis, uma praça que aconchegou momentos singelos, mas marcantes. Sobrevivem, porém, diferentes. A catarse só pode ser parcial, porque se nem as fotos resistem ao desgaste inflexível do tempo, as paisagens muito menos.

            E os habitantes desse refúgio idealizado? A maioria partiu para sempre e só vai existir em memórias tênues enquanto alguém ainda se lembrar deles. Alguns ainda estão lá, mas mudaram, porque quiseram, porque precisaram ou simplesmente porque foram arrastados  pelo fluxo impiedoso do tempo, que não poupa nada e nem ninguém, sentenciando todos à ruína e ao esquecimento, mais cedo ou mais tarde. É claro que ainda há um ou outro outsider que reluta bravamente em entregar os pontos e ceder à maré metamorfoseante de contemporaneidade, mas estes heróis de outras épocas hoje estão reduzidos a observadores nostálgicos de impérios que já ruíram. O poder está nas mãos de outros e o único status que lhes restou foi o de “fora da lei”. Não aceitam o papel de prisioneiros, mas também estão condenados, pois o tempo é um adversário contra o qual não adianta querer lutar e do qual não há como escapar. Para não ser esmagado por ele, só o que resta é seguir o fluxo.

            Essa é a grande lição que o estranho fugitivo aprende em sua jornada. Ele é obrigado a seguir em frente, mas pode escolher onde, como e com quem quer fazer isso. Sempre haverá uma porta aberta, sempre haverá um meio de continuar, sempre haverá alguém com quem compartilhar o percurso. A estrada está lá, basta decidir como percorrê-la. A busca é o desafio e o prêmio não está no fim, mas no trajeto. Tentando fugir, ele descobriu que é livre.