22 de fev. de 2023

TECNODEMÔNIOS - O JOGADOR ON-LINE



 
“Os demônios representam os vícios humanos encarnados, e torturam aqueles que têm se entregado a tais vícios na vida terrena.” 
 
(MacGregor Mathers – Kabbalah Unveiled)

 

            Muitos dizem que o Marco é um nerd, mas eu sempre discordei. Para mim, nerd é o cara que manja de cultura pop e sabe muito sobre tecnologia e essas paradas, mas o Marco nunca soube nada sobre isso. Ele sempre foi um viciado em jogos eletrônicos, e nada mais. O cara já tem quase trinta anos e nunca teve uma namorada, nunca praticou esportes e quase nunca sai de casa. E não é por falta de oportunidade, pois, como conheço ele desde criança e sei que no fundo é um cara legal, sempre o convido para sair com a gente, mas nunca topa. Prefere ficar trancado no quarto, jogando. Não me pergunte os nomes, pois nunca fui fã dessas coisas, mas ele adora aqueles jogos de tiro em primeira pessoa, jogos de futebol – o que é estranho, porque ele nunca quis jogar uma pelada conosco na vida real – jogos de estratégia e até poker on-line.

            Uma vez a mãe arrumou um emprego para ele no setor de TI de uma empresa, mas logo foi demitido porque ficava jogando no horário de trabalho. Mais ou menos naquela mesma época ele começou a faculdade de Sistemas de Informação, mas reprovou em várias disciplinas por faltas ou por não entregar as atividades e aí acabou abandonando. A partir de então, nunca mais fez nada. Passa o dia em casa, tomando Coca-Cola e comendo biscoito recheado, sustentado pela mãe.

            E, por falar na mãe dele, às vezes ela me liga, chora e pede por favor para que eu o convide para sair, o que sempre faço, até com boa vontade, mas sem sucesso. A última vez que tentei foi na sexta-feira. Liguei para ele e disse que estávamos indo passar o final de semana no sítio da família do Carlão, que haveria várias garotas lá e talvez ele se interessasse por alguma – ou, o que seria ainda melhor: alguma se interessasse por ele. Mas, nada feito. Ele estava empolgadíssimo porque um fulano de tal, amigo de não sei quem, que era formado em Engenharia Química, havia desenvolvido uns comprimidos – ilegais, obviamente – que, quando ingeridos, faziam o cara ficar acordado por mais de 80 horas direto e ele ia usar isso para ficar jogando sem parar e “bater todos os recordes”, nas suas próprias palavras. Eu disse que isso já existia, que muitos caminhoneiros usavam e se chamava rebite. Ele discordou, falou que os comprimidos do cara estimulavam uma parte do cérebro que fazia não sei o que, e isso ia ser muito útil nos jogos. E ficava me dizendo: “Você sabe que dá para ganhar muito dinheiro jogando, né? Mas pra isso precisa ser bom pra caralho. Com esses comprimidos ninguém vai pontuar tanto quanto eu. Vou f*der com todos eles!” E para “melhorar” a mãe dele estaria viajando até segunda e não iria atrapalhar em nada. Ele estava vibrante, eufórico, parecia meio louco.

            Eu teria deixado para lá, como fiz tantas vezes – até por falta de opção – se ele não tivesse começado a me mandar umas mensagens estranhas durante o final de semana, tipo essa: “Tomei todos.19 hrs sem parar. To moendo. Botando pra fder. So essa dor de barriga do kralho!” Eu respondi dizendo que ele era louco de tomar essas merdas feitas sabe-se lá em que fundo de quintal clandestino, e que parasse de jogar antes que tivesse um treco. Mas, ele não deu a menor bola, logicamente.

            E assim continuaram as mensagens. 28 horas... 49 horas... 54 horas... Sempre comemorando a pontuação e reclamando da dor de barriga, além de outras coisas sem sentido e incompreensíveis. A última foi assim: “54 já. Ninguem nessa porra pode com o meu crbro. Ferveu. Milhoes vindo já. So isso na cabeça que não para. Dillodoker já atravessando. Repete repete repete. Tem uma coisa se mexendo dentro da minha barriga da até pra ver por baixo da camisa”.

            Fiquei realmente preocupado. Tentei ligar e ele não atendeu. Então liguei para a mãe dele também, mas não completava a ligação. Talvez estivesse no avião ou na estrada, em uma área sem sinal. Estava em dúvida, sem saber o que fazer, quando recebi uma videochamada dele. Quando atendi levei um susto. Ele estava pálido, com olheiras enormes e escuras, com os cabelos suados grudados na testa. E aquele olhar! Havia algo de muito errado naqueles olhos.

            “Cara, agora to mal pra caralho!” disse ele, “Não aguento mais! Tá vindo! Tá saindo!”

            E então ouvi um som horrível, que parecia um peido junto com algo se rasgando. Ele deu grito, que me fez arrepiar os cabelos da nuca, e pareceu começar a tossir sangue. Houve outro barulho daqueles e algo escuro e melequento espirrou contra a tela. Ele caiu da cadeira e ficou gemendo. Dava para ouvir. Então apareceu alguém, alguma coisa, mas não dava para ver direito o que era, porque a webcam ficou encoberta pela meleca. Comecei a escutar o som das teclas do computador sendo apertadas em grande velocidade e, de repente, a videochamada se encerrou. Tentei chamar de volta, mas sem sucesso.

            Apavorado, comecei a falar para o pessoal ao redor que o Marco estava mal e que precisava ir lá para socorrer. Pedi se alguém queria ir junto, mas todo mundo disse que não e ainda me xingaram por “ficar dando bola para aquele gordo escroto”.

            Entrei no carro e parti, sozinho mesmo, assustado e ao mesmo tempo com raiva da galera pela falta de apoio. No caminho, tentei ligar várias vezes para o Marco e para a mãe dele, mas ninguém atendia. O trânsito do início da noite de domingo estava ruim e levei mais de uma hora para chegar. Toquei o interfone do apartamento, mas nada de resposta. Quando alguns moradores do edifício abriram a porta do hall para sair, me enfiei para dentro e peguei o elevador.

            Toquei a campainha, bati e chamei pelo Marco. Não se ouvia som algum do lado de dentro. Cada vez mais ansioso, não pensei duas vezes e comecei a chutar a porta. Uma, duas, três, quatro vezes, e ela se abriu. O apartamento estava totalmente escuro e um fedor horrível impregnava o ar. Parecia cheiro de merda misturado com alguma outra coisa que não sabia o que era. Fui entrando e chamado pelo Marco, até chegar no quarto dele. Quando escancarei a porta, o fedor veio tão forte que pensei que ia vomitar.

            A luz do quarto estava desligada, mas pela luminosidade da tela do computador – melecada com o que parecia ser sangue – pude ver o corpo do Marco caído no chão, ao lado da cadeira. Com toda certeza, estava morto. Mas, isso não era o pior. O que me fez gritar e ter a impressão de que poderia ficar louco de vez, foi perceber que através da sua barriga rasgada e ensanguentada havia saído algo. Uma criatura formada pelo próprio intestino do Marco, mas que, de alguma maneira, tinha desenvolvido olhos, boca e dentes afiados. Para fora do abdômen dilacerado saíam tentáculos de vários comprimentos e espessuras e alguns deles apertavam sem parar os botões do mouse e do teclado do computador, para onde o monstro olhava fixamente, como se acreditasse que ainda estava jogando e não pudesse parar.

            Eu cheguei a me mijar de pavor, e gritei tanto que a coisa finalmente pareceu notar a minha presença. Mesmo sem parar de teclar, olhou para mim com aqueles olhos esbugalhados e monstruosos e moveu alguns tentáculos na minha direção. Então saí correndo, tomado pelo desespero. No corredor trombei com algumas pessoas que estavam ali – decerto atraídas pelo barulho do arrombamento e pela minha gritaria – e segui na direção das escadas. Não sei se tropecei ou resvalei nos degraus, mas acabei caindo e desci rolando até bater a cabeça com força. Essa é a última lembrança que tenho antes de apagar.

            Acordei aqui, deitado na maca, dentro de uma ambulância. Do lado de fora dá para perceber as luzes coloridas das viaturas da polícia. Escuto dois estrondos que parecem de tiros, vindos lá de cima. Se ouve gritos e choro. Será a voz da mãe do Marco? Pergunto aos paramédicos o que está acontecendo, mas eles não respondem, apenas me olham com expressões perturbadas.

            A ambulância parte, com a sirene ligada. Sinto meu corpo tremer só de pensar no horror que ficou para trás, lá em cima, no apartamento escuro e tomado por aquele fedor infernal.

 

Por André Bozzetto Jr 
 
   

15 de fev. de 2023

AQUILO ESTÁ VINDO

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Eu me arrependi tão logo cheguei. Antigamente o Parque era um lugar muito tranquilo e agradável. Dava para passar muitas horas caminhando pelas trilhas na mata, sentar nas sombras das grandes árvores para ler e relaxar, além de nadar nas águas calmas e refrescantes do riacho. Como quase ninguém ia lá, tudo permanecia limpo e preservado, sem gente desrespeitosa e lixo, que dá praticamente na mesma. Mas isso ficou no passado. Lixo agora é o que mais se vê no Parque aos finais de semana. Não apenas garrafas, copos plásticos, bitucas de cigarro e pacotes de tudo quanto é porcaria, mas sobretudo o lixo humano. Gente bêbada, vulgar e irritante, que não respeita nada e nem ninguém e inferniza a todos com uma espécie de competição de dejetos sonoros em caixas de som que vomitam “funk ostentação”, “sofrência”, “sertanejo universitário” e sabe-se lá quais outros tipos de diarreia auditiva impossível de se classificar como música. Não satisfeitos em tornar os espaços públicos urbanos em antros de imundice e baixarias, passaram a infestar também os últimos redutos da natureza em que era possível se vivenciar a paz. Agora tudo é zoeira e sujeira. Em nome da “diversão”, se expõe o que há de mais patético e degradante dentro de cada um.

            Como o tempo estava para chuva, acreditei que poderia ter uma manhã de sábado um pouco mais sossegada, mas estava enganado. O Parque estava quase tão cheio como de costume. O pessoal ocupava a estrutura fixa dos quiosques e ainda espalhava gazebos e tendas por todos os lados, com churrasqueiras móveis impregnando o ar com fumaça escura de carvão. Eu trazia na mochila alguns sanduíches e o meu exemplar de O Idiota, mas Dostoiévski ia ter que esperar. Decidi descansar um pouco – o Parque ficava a 7 km da cidade e eu tinha ido a pé – e logo voltaria para casa. Diante daquele deprimente show de grosseria e vulgaridade, o silêncio do meu quarto parecia muito mais convidativo e acolhedor.

            Sentado em um dos únicos bancos de madeira que ainda estavam vagos, comecei a me lembrar de uma cena presenciada um pouco antes que, agora percebo, já era um prenúncio do que estava por vir. Bem diante da entrada do Parque, passou por mim uma antiga caminhonete rural, praticamente caindo aos pedaços. Na pequena carroceria havia um colchão, algumas sacolas de roupas, potes de comida e um cachorro. Ao volante estava um senhor idoso e ao seu lado uma senhora, igualmente idosa. Eu reconheci o motorista. Era o Seu Sebastião. Ele morava em uma humilde chácara ao lado do Parque e costumava ir à cidade vender chás, mel e outros produtos naturais. A minha avó geralmente comprava dele um pouco de camomila, macela e hortelã. Quando eu era criança e o Seu Sebastião passava lá em casa, sempre me chamava de Gurizinho e me dava umas balas artesanais de mel e funcho. Naquele momento ele dirigia com expressão tensa e séria. Quando passou ao meu lado, diminuiu ainda mais a velocidade e ficou me olhando, com ar preocupado. “A gente está indo embora, Gurizinho”, disse ele, parecendo realmente me reconhecer, “Nessas matas têm coisas muito antigas que deveriam ser deixadas quietas. O que aquela gente está fazendo lá do lado do rio não vai acabar bem. Você também devia ir embora.” E assim eles se foram, com certeza, para nunca mais voltar. Pessoas simples, que viviam naquelas terras a sabe-se lá quantas gerações, partindo de forma melancólica, rompendo com suas raízes, agora condenadas ao esquecimento. Gente que aprendeu a conviver em harmonia com a natureza, expulsa pela presença iminente e sem alma do concreto e do asfalto, pelo avanço hostil de uma urbanização que consome a tudo, sem ligar para ninguém, nem para eles e nem para a natureza.

            Era sobre isso que ele estava falando quando se referiu “ao que estavam fazendo lá do lado do rio”. Um grande condomínio de luxo. As terras na margem oposta do curso d’água não faziam mais parte do Parque, portanto, na visão dos políticos que autorizaram a obra, poderiam ser devastadas e maculadas com torres de tijolo, vidro e aço para abrigar gente rica e esnobe que certamente estaria mais preocupada com o formato da piscina e a cor das paredes do lado de dentro do que com as árvores e o rio do lado de fora. A obra, ainda em fase inicial, já deixava claro com suas máquinas e caminhões, que a concretude do sonho capitalista esmaga e transforma em pesadelo as referências daqueles com quem quase ninguém mais se importa. Seu Sebastião, com seu rosto marcado pelas rugas tristes da desilusão, que o diga.

            Fazia poucos minutos que eu havia chegado, quando um casal acompanhado de uma menina de 9 ou 10 anos de idade se aproximou e começou a organizar um piquenique no gramado ao meu lado. Logo o cara disse para a esposa: “Enquanto vocês ajeitam as coisas aqui, eu vou até lá no rio ver como estão as obras. A perfuratriz grande ia chegar hoje de manhã. Logo estou de volta”. Eu conhecia aquele sujeito. Era funcionário do Departamento de Água e Esgoto. Devia ser um dos responsáveis por fiscalizar a construção do condomínio. Como se isso fizesse alguma diferença.

            Se passaram mais alguns minutos e, como percebi que o céu estava mais escuro e a chuva logo viria, coloquei novamente a mochila nas costas e já estava pronto para refazer a caminhada de volta até a cidade, quando vi, se aproximando da direção do rio, alguém que vinha correndo, gesticulando de forma afobada e gritando algo para as pessoas que estavam ao redor. Era aquele sujeito, o cara do Departamento de Água e Esgoto. Claramente, a maioria das pessoas não dava nenhuma bola para seja lá o que fosse que ele estivesse dizendo. Muitos nem sequer ouviam, porque a poluição sonora que saía das diversas caixas JBL impregnava os arredores. Mas, conforme ele foi se aproximando – suado, afobado e apressado – consegui ouvir o que estava dizendo: “Corram! Corram! Aquilo está vindo!”. Quando ele passou por mim, pude ver o pavor estampado no seu rosto e não tive nenhuma dúvida de que, sabe-se lá o que fosse aquilo que estava vindo, devia ser algo completamente aterrorizante.

            Tão logo chegou ao local onde estavam a esposa e a filha, pegou a menina no colo e disse “Vamos, querida! Calce os tênis porque vamos precisar correr!”. Assustada, a garotinha perguntou o que estava acontecendo, mas ele nada respondeu e somente continuou ajudando a colocar o calçado de forma afoita. Quando a esposa insistiu em perguntar o motivo de tanta agitação, ele apenas resmungou: “Eu disse para aqueles babacas que não era para escavar naquele lugar!”. E mais não falou. Pegou a filha por uma mão, a esposa pela outra e assim saíram correndo na direção do estacionamento, que ficava distante uns 500 metros dali.

            Com o coração batendo acelerado e sentindo um medo que se tornava quase palpável, mesmo sem saber o porquê, não tive dúvidas e saí correndo também, assim como algumas outras poucas pessoas que notei com o canto do olho. Mal havia dado alguns passos quando percebi a terra tremendo sob os meus pés. O terremoto foi rápido, não deve ter durado mais do que 5 segundos, mas foi tão intenso a ponto de fazer com que eu e todos que consegui avistar caíssemos no chão. Escutei o barulho de árvores tombando, e um estrondo muito forte que deduzi ser um transformador de energia elétrica explodindo sobre algum poste, porque muitas das caixas de som silenciaram em seguida. Ouvi alguns palavrões, crianças chorando e expressões de incredulidade.

            Ainda estava me levantando, quando começaram os gritos. No início eram poucos, mas muito rapidamente aumentaram de quantidade e intensidade. Os primeiros pareciam vir das proximidades do rio, e logo foram subindo, para a direção onde eu estava. Então várias outras pessoas começaram a correr e dentro de instantes o pânico foi se espalhando pelo Parque. Aquilo estava vindo!

            Sem titubear, me botei a correr novamente, tentando nem olhar para os lados para não me distrair ou perder tempo. E os gritos aumentavam. Gritos de pavor, de dor, ou o que quer que fosse, mas eram gritos terríveis, de gelar o sangue. Tive a impressão de ter ouvido um som diferente, difícil de descrever, mas estranho o suficiente para me deixar ainda mais assustado. Eu corria como se não houvesse amanhã, porque talvez se aquilo me alcançasse não haveria mesmo.

            Algumas pessoas me ultrapassavam na corrida e isso fez com que eu decidisse largar a mochila para ficar mais leve e rápido. Chegando no estacionamento, as pessoas embarcavam nos carros e partiam o mais rapidamente que podiam. A pressa era tanto que alguns veículos colidiam nos outros e começava uma sinfonia de buzinas e xingamentos. Em desespero, algumas pessoas tentavam pedir carona e se enfiar nos carros das outras, mas quase ninguém colaborava, deixando para trás homens, mulheres e crianças que gritavam e choravam, apavoradas. Eu decidi não perder tempo dependendo da caridade alheia e segui para fora do Parque a pé mesmo, tentando controlar o fôlego na corrida.

            Foi então que, se sobrepondo ao choro, aos gritos e aos estrondos de árvores caindo, ouvi novamente aquele barulho, dessa vez tão alto, claro e horripilante que quase me deixei dominar pelo pavor. Não era um urro, não era um rosnado. Não sei o que era, mas com certeza não era humano e nem vindo de qualquer animal que eu conhecesse. Pela potência do som, vinha de algo grande, muito grande. Mesmo sem parar para olhar, tive a impressão de que a coisa vinha por entre a mata, pelo lado direito do portão do Parque e que, provavelmente iria atravessar a cerca e bloquear a estrada que ia em direção à cidade. Por isso, quando passei pelo portão e cheguei na rodovia, corri para o lado contrário.

            Percebi que várias pessoas tiveram ideia semelhante e seguiram na mesma direção que eu. Parece que foi o mais acertado, pois do lado oposto continuavam vindo gritos, sons que imaginei serem de carros colidindo em algo e até uma explosão. Mas, não havia motivo para diminuir o ritmo. Logo aquele som infernal ecoou novamente, logo atrás de nós. Agora eram alguns membros do nosso próprio grupo de fugitivos que gritavam apavorados, decerto porque cometeram o erro de olhar para trás e vislumbrar aquilo.

            Uma moça loira passou correndo pela minha direita como se fosse uma maratonista, mas, quase imediatamente, percebi com o canto do olho que algo se projetou na direção dela e a puxou de volta rapidamente. Seria um tentáculo?! Não tenho certeza. Só sei que ouvi o perturbador barulho de algo se partindo, um grito estridente e então alguma coisa quente e pegajosa respingou na minha nuca.

            Comecei a sentir as forças me abandonando. Percebi que não iria conseguir correr por muito mais tempo e então o meu destino seria o mesmo daqueles que iam ficando para trás, que gritavam e depois se calavam para sempre.

            Nesse meio tempo, pelo menos dois carros que vinham na nossa direção, deram meia-volta e fugiram pelo mesmo caminho de onde surgiram, sem ajudar a ninguém. Quando já estava começando a ficar sem esperanças, ouvi um ronco de motor e olhei para o lado direito. Em uma estrada de terra que seguia paralela à rodovia onde estávamos, vi uma antiga camionete F1000 se aproximando rapidamente. Ao volante estava um homem de meia idade, com um chapéu na cabeça, gesticulando que era para irmos na direção dele. Percebi que havia mais gente na cabine, e na carroceria estavam dois garotos e um velho, todos acenando e gritando em nossa direção.

            No instante seguinte, a camionete saiu da estrada de terra com uma manobra brusca, levantando uma nuvem de poeira, adentrou no acostamento e diminuiu bastante a velocidade – quase parando – para que pudéssemos alcançá-la. Reunindo minhas últimas forças, percorri os metros finais o mais rápido que pude e fui o primeiro a chegar. Várias mãos pegaram nos meus braços e me puxaram para cima da carroceria. Imediatamente, me virei e ajudei os próximos que vinham chegando a subir também. Foram apenas duas moças e dois rapazes. Dos retardatários eu ouvi só os gritos, estridentes, sofridos, devastadores.

            Quando a camionete voltou a pegar velocidade, agora acelerando pelo asfalto, fechei os olhos com força e me sentei no assoalho da carroceria. Não queria de jeito nenhum olhar na direção da coisa. Não queria ver o que ela fazia com as pessoas que pegava. Achava que não iria resistir a uma visão dessas e a loucura iria me dominar, se  já não estivesse dominando. Mesmo assim, com os olhos fechados e a cabeça abaixada, ouvia o pessoal ao meu lado gritando “Meus Deus! Olha o tamanho daquela coisa!”, “Que horror!” “De onde saiu aquilo?!”.

            Na medida em que o motorista pisava fundo no acelerador, uma discreta sensação de alívio parecia se manifestar. Me recostei na lateral de carroceria e, provavelmente pela exaustão e pela pressão emocional, senti que estava desfalecendo. Antes de perder os sentidos, ainda ouvia frases aleatórias das pessoas ao meu redor. “Não se preocupem. Tem dois galões de gasolina aí do lado.”, “Perdi o meu celular!”, “Será que aquela coisa vai continuar nos seguindo?”, “Onde será que foram parar os meus pais?!”. E então apaguei completamente.

            Acordei suado e com dor de cabeça. Talvez esteja com febre. Já está anoitecendo. Todo mundo ao meu redor está dormindo, menos o velho, que observa a estrada, sério e silencioso. Não faço ideia se estamos rodando desde que apaguei ou se foi feita alguma parada. Agora tenho dúvidas se tudo que eu acho que se passou realmente aconteceu. Pode ser que eu esteja delirando, que seja loucura. Gostaria de acreditar que foi apenas um pesadelo, daqueles tão traumáticos que passam a nos assombrar em noites insones, como fantasmas. Provavelmente seria melhor do que encarar a frágil e enigmática noção daquilo que eu acreditava ser a realidade.   

        Olho ao redor e não reconheço a paisagem. Vejo apenas a mata, que agora me parece sombria e ameaçadora. Não sei para onde vamos, nem o que será de nós quando chegarmos. Pensei em perguntar ao velho se ele sabe onde vai dar essa estrada, mas tenho medo que ele responda que a estrada não leva a lugar nenhum. Talvez aquilo ainda esteja em nosso encalço. Talvez ela nos alcance quando mergulharmos completamente nas trevas da noite. Talvez a coisa já tenha me pegado. Talvez toda essa escuridão que se aproxima esteja dentro da minha mente. Talvez...   

7 de fev. de 2023

TECNODEMÔNIOS - O APLICATIVO DE NUDES

 

         

“Os demônios representam os vícios humanos encarnados, e torturam aqueles que têm se entregado a tais vícios na vida terrena.” 
 
(MacGregor Mathers – Kabbalah Unveiled)

 

            Já passava da meia-noite quando o garoto adentrou alvoroçadamente no quarto da irmã mais velha com o celular em mãos.

            – Que susto, Bernardo! – reclamou Betina, que ainda estava acordada, manuseando o notebook sobre a cama – Como é que você vai se metendo no meu quarto assim, uma hora dessas?!

            – Mana, preciso te pedir uma coisa... – disse o garoto, ignorando a bronca da irmã e aparentando estar ansioso e constrangido ao mesmo tempo.

            – Pedir o que, moleque?! Você já devia estar dormindo! Amanhã cedo tem aula.

            – Você tem alguma nude para me passar? – questionou Bernardo, com voz trêmula.

            – Meu Deus! – gritou Betina, quase partindo para cima do garoto – Isso é coisa que se peça para a própria irmã, seu tarado?! Era só o que me faltava: um irmão pervertido! Vou contar pra mãe e você vai ver!

            – Não é nada disso! – se defendeu Bernardo, gaguejando – Não é para mim, não. É que eu preciso enviar para esse aplicativo.

            – Que aplicativo?! Que história é essa?! – perguntou a garota, parecendo cada vez mais irritada.

            – O nome do aplicativo é Dillodoker: Burning Nudes. – explicou o garoto, inquieto – Funciona assim: você pode baixar um nude de alguém que está lá e em troca tem que enviar outro, dentro de 3 minutos e 33 segundos. Mas tem que ser uma foto original, porque se for baixada da internet eles rastreiam e bloqueiam.

            – Que absurdo! – esbravejou Betina – Você nem tem idade para essas putarias! Onde baixou essa merda de aplicativo?!

            – Só tem na Deep Web. – respondeu Bernardo, sem disfarçar o constrangimento.

            – Na Deep Web?! – gritou a garota, levando as mãos à cabeça – Você é louco?! Nesse negócio só tem psicopata e pedófilo! Eu disse que o pai devia ficar de olho no que você andava acessando.

            – Os meus colegas de aula também acessam. – tentou justificar o garoto.

            – Porque são uns retardados igual a você!

            – Olha, mana... – disse o cada vez mais ansioso Bernardo, apontando para o celular – Quando você baixa uma foto abre uma contagem regressiva para enviar uma de volta... e agora já está quase acabando!

            – Eu não vou lhe passar nude nenhum, seu babaca! – gritou Betina, dando um tapa no ombro do irmão – Por que não manda uma foto sua, hein, seu depravado!

            – Eu já mandei... antes.

            A discussão entre os irmãos foi subitamente interrompida quando o smartphone de Bernardo começou a emitir uma luminosidade vermelha que ficava piscando enquanto um som de bipe passou a soar de forma cada vez mais acelerada, como se fosse um alerta.

            – Falta menos de 10 segundos... – disse o garoto, de forma tensa – E o telefone está esquentando pra caramba...

            – O que acontece quando o tempo zerar? – perguntou Betina, pela primeira vez parecendo realmente preocupada.

            – Não sei... – respondeu Bernardo, arregalando os olhos em uma expressão de pavor.

            E não houve tempo para mais nada. O celular explodiu de forma aterradora nas mãos do garoto e imediatamente as chamas se alastraram pelas mangas do seu pijama. 

        Quando os pais invadiram o quarto, atraídos pelo insólito estrondo, tiveram suas narinas tomadas pelo repulsivo fedor de carne e cabelos queimados que impregnava o ambiente. Horrorizados, viram Betina, encolhida em um canto, chorando de forma estridente e Bernardo, com o corpo completamente envolto pelas chamas, trombando de encontro às paredes, gritando em agonia.

 

                                                                           Por André Bozzetto Jr