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11 de nov. de 2025

A APARIÇÃO

 


Por Clayton Alexandre Zocarato


Lâminas de Asfalto e Fantasmas em Combustão: Metafísica, Estética e Realismo Fantástico em The Wraith (1986)

                Em 1986, o diretor Mike Marvin lançou The Wraith, um filme que, à primeira vista, poderia ser rotulado apenas como mais um exemplar da era dos “supercarros, rachas e neon” dos anos 80.

            No entanto, a despeito das suas limitações narrativas evidentes, o filme revela camadas simbólicas que justificam uma leitura mais aprofundada — envolvendo questões metafísicas, filosóficas, estéticas, de realismo fantástico, literárias, históricas, sociológicas e mesmo psicanalíticas.

            Ao colocar o protagonismo nas mãos de Charlie Sheen (no papel de Jake / The Wraith) e num contexto de ruas desertas, gangues de racha, vingança pósmorte e automóveis quase sobrenaturais, o filme articula uma fábula que vai além do simples espetáculo de ação.

            No filme,  Sheen interpreta Jake Kesey — que, ao longo da narrativa, revelase como o mistério “The Wraith”, uma entidade que regressa após um assassinato para exterminar uma gangue de dragracers que violaram normas morais e violentas.

            A atuação de Sheen, embora limitada em termos de profundidade cénica (visto que o filme privilegia mais o carro, os rachas e a estética do que o conflito interior verbalizado), assume uma função simbólica importante: ele é o mediador entre dois mundos — o mundano (a cidadedeserto de Brooks, Arizona) e o liminar (aquele que regressa da morte ou do além para cumprir uma justiça).

            Esse papel colocao numa posição filosófica: Jake/Sheen representa o sujeito que ultrapassa os limites do humano comum, que atravessa o limiar entre vida e pósvida, entre carne e metáfora, entre o visível e o invisível.

            Sua presença na tela é marcada por uma estética de distância — ele não se insere plenamente no mundo da gangue, nem no mundo legal do xerife; atua de modo espectral, silencioso, quase sem diálogo, frequentemente vestido de couro ou capacete (quando assume a identidade de The Wraith).

            Essa articulação remete à figura do “estrangeiro” ou do “forasteiro” que chega para restabelecer uma ordem perturbada.

            Sob a lente psicanalítica, Jake pode ser visto como o sujeito que encarna o retorno do recalcado: ele volta não apenas para vingarse, mas para trazer restauração simbólica à comunidade que sofreu a perda de Jamie Hankins (assassinato cometido pela gangue).

             Essa lógica de retorno e justiça remete ao que Lacan chama de “gozo” do além‑túmulo e à invasão do traumático no simbólico.

            O filme introduz elementos que escapam ao realismo estrito: o carro invencível (uma Dodge M4S Turbo Interceptor conceitual) conduzido por um piloto enigmático que parece não seguir as regras do mundo comum.

            A movimentação entre vida e morte, a identidade dupla de Jake/Wraith e Jamie, a sensação de que o herói não pertence inteiramente ao mundo dos vivos: tudo isso aponta para o realismo fantástico — no qual o extraordinário aparece no interior do mundo cotidiano, e a hesitação (conceito de Tzvetan Todorov) entre explicação racional e inexplicável permanece aberta.

            Em termos metafísicos, o filme coloca em jogo a questão do que acontece depois da morte, da justiça que não é nem da lei nem do mundo visível, e da lógica de vingança que rompe o contrato social.

            A gangue de rachas domina pelo medo e pela violência sem sentido, e Jake surge como “outro” que reintroduz um princípio moral além do visível.

             Essa figura de retorno do morto, de espírito vingador, associa‑se à tradição de ficção sobrenatural (fantasma, wraith = espectro) e também à estética do road‑movie, do racha, do asfalto e dos motores — o que configura uma hibridação que torna o filme curioso do ponto de vista estético‑filosófico.

            A estética do filme (cenários desertos do Arizona, túnel de estrada, neon, metal, explosões, som de motores) cria uma liminaridade: o mundo humano é estendido para um espaço onde as máquinas, a velocidade, a morte e o sobrenatural convergem.

            Nesse sentido, a obra se relaciona com as reflexões de Gilles Deleuze sobre zonas de indiscernibilidade — aqui entre humano e máquina, vivo e morto, vigilante e espírito — e com a provocação estética de que o real pode conter o irreal sem ruptura brusca.

            Liricamente, The Wraith emprega vários motivos clássicos: a vingança, o pacto, a metamorfose, a fuga da mortalidade.

             A estrutura narrativa lembra a fábula gótica ou pulp‑fantástica: um jovem assassinado (Jamie), uma moça traumatizada (Keri) (Sherilyn Fenn), uma gangue de predadores (Packard Walsh e seus homens), e o retorno do justo que desafia a ordem estabelecida.

            A figura de Jake/ Wraith é quase borgiana: como em Jorge Luis Borges, o universo visível está entrelaçado com um outro invisível, o espectro que revela‑se sob­jacente à realidade.

            No aspecto literário, o mundo do filme pode ser comparado ao “fantástico” descrito por Todorov ou ao “estranho” segundo Sigmund Freud — o retorno do recalcado, o familiar que se torna inquietante, o veículo conhecido que assume uma função de mediador entre mundos.

             Como Freud postula em “Das Unheimliche”*, aquilo que parecia seguro repentinamente revela‑se ameaçador.

            O carro, a estrada, o racha — elementos familiares dos anos 80 — tornam‑se veículos de vingança e de intervenção sobrenatural.

            Narrativamente, o filme situa‑se também no campo da moralidade violenta: os atos da gangue não são apenas crimes comuns, mas transgressões simbólicas (roubo de identidade através de carros, dominação sexual da moça, assassinato impune).

             A presença do herói espectral traz a restituição de uma ordem quebrada — algo presente em narrativas de vingança de literatura popular (como no faroeste) ou no mito.   A crítica cinematográfica identifica esse aspecto: “Death on Wheels, Love from the Beyond…” **

             Assim, o filme dialoga com formas literárias de redenção e expiação.

            O filme surgiu em meados da década de 1980, um período marcado por certa epiderme de cultura juvenil irritada, pela ascensão do consumismo automotivo, pelo domínio simbólico do carro como extensão da masculinidade, e pelo paradoxo entre liberdade (a estrada, o motor) e controle (gangues, instituições).

            Nesse contexto, a gangue de racha encarna um terrorismo simbólico local — em vez de uma ameaça externa ou global, o mal é interno, banhado por luzes de neon e couro.

            Socialmente, o filme toca na vulnerabilidade da comunidade (Brooks, Arizona) frente a forças violentas que escalam o racha, o roubo, a humilhação.

            A figura do xerife (interpretado por Randy Quaid) aparece impotente, simbolizando a falha da autoridade convencional frente à transgressão sobrenatural.

             Assim, o retorno do Wraith pode ser lido como reivindicação simbólica da comunidade contra o descontrole do consumo, da violência, da masculinidade tóxica associada aos motores.

            Historicamente, a filmagem no Arizona e a ambientação de estrada evocam o vazio pós‑industrial, o “fim do caminho” americano — desertos, auto‑estradas vazias, gangues jovens que precisam encontrar sentido no racha e no roubo.

            Em termos de cultura cinematográfica, o filme se insere no resquício da era do automóvel‑herói, do vigilante solitário em máquina potente, mas acrescenta o fantástico e o sobrenatural, o que o distingue de meros filmes “pop” dos motores.

            Do ponto de vista psicanalítico, podemos ler o Wraith como figura do ego que retorna para confrontar o superego pervertido da gangue e da comunidade que assentou sobre a violência.

             A gangue representa o pulsional descontrolado — desejo de poder, domínio, roubo, humilhação — sem freios simbólicos.

            A resposta, Jake/Wraith, vem como figura que incorpora sublimação vingativa: ele regressa não para matar sem sentido, mas para restaurar ordem — embora vernizada na forma do espetáculo de destruição automotiva.

            O carro invencível torna‑se símbolo de potência libidinal sublimada, mas também da mortalidade vencida: o Wraith atravessa obstáculos humanos, máquinas quebram‑se, mas o veículo persiste — metáfora de que a justiça atravessa o tempo.

            A identificação de Keri com o Wraith sugere igualmente a figura da mulher‑traumatizada que encontra no herói espectral um agente de libertação.

            A presença de cicatrizes no corpo de Jake (notadas no filme) indica que ele viveu um trauma que o projetou num corpo‑máquina de vingança.

            Em suma, o filme propõe — talvez sem querer de forma sofisticada — que a violência simbólica retorna transformada, e que o motor e a estrada são palco de uma dialética entre vida‑morte, desejo‑culpa, humano‑sobrenatural.

            Para situar o filme no panorama cinematográfico, vale estabelecer comparações:

            Em relação a Christine (1983, adaptação de Stephen King) — outro filme de carro possuído/assassino — The Wraith difere por colocar a vingança pós‑morte como motor central, em vez de simplesmente a possessão automotiva.

            Comparado com os filmes de “invasão” ou de vingança fantasmagórica nos anos 80, The Wraith adota uma estrutura que remete ao faroeste de vigilante solitário, mas transplantado para o asfalto e o motor.

            Com relação a filmes mais explícitos de horror sobrenatural (por exemplo, The Crow, 1994), o Wraith antecipa o tema do morto que volta para vingar‑se, embora com menos densidade narrativa e mais campo estético.

             Como aponta Mana Pop, “Anyone who’s read … The Crow … will notice the family resemblance.” (“Qualquer pessoa que tenha lido … O Corvo … vai notar a semelhança familiar.”).

            Do ponto de vista do realismo fantástico, o filme se aproxima de obras em que o extraordinário se insinua no mundo comum sem grande microexplicação — um princípio destacado por Todorov.

            Assim, a forma do carro, a cicatriz de Jake, a invisibilidade da lógica do além‑túmulo, todos são deixados em aberto, gerando o efeito de estranhamento.

             Do ponto de vista simbólico, embora o filme não se proponha explicitamente a uma reflexão filosófica complexa, ele abre janelas para leituras.

            O automóvel como corpo híbrido (máquina/ser), o motor como pulsão, o racha como desordenamento social.

            The Wraith, em seu núcleo simbólico, constitui mais do que um filme de racha e super‑carros: ele articula um híbrido entre ação, terror leve, fantasma e justiça vingativa.

            O protagonista representa um sujeito liminar, atravessado por cicatrizes e por uma justiça além do mundo dos vivos.

            A estética do filme — estrada, motor, noite, explosões — conjuga‑se ao elemento metafísico do retorno pós‑morte e à estética do realismo fantástico: o sobrenatural irrompe no mundo cotidiano sem explicações completas, mas com força simbólica.

            Esse filme revela‑se, portanto, um terreno fértil para reflexões sobre tecnologia, mortalidade, desejo vingativo, falha institucional, redenção e alteridade.

             Ao compará-lo com outras obras de carro‑terror ou vingança espectral, observa‑se que The Wraith ocupa uma posição singular — menos sofisticada, talvez, do que clássicos do fantástico, mas mais ousada em cruzar gêneros e em apostar no mito automotivo como expressão simbólica.

            The Wraith é um produto estético de seu tempo — os Estados Unidos dos anos 1980 — mas paradoxalmente se descola de sua condição puramente datada ao lançar mão de elementos que permitem uma leitura pelo viés do realismo fantástico.

            O retorno de um morto sob a forma de um justiceiro automobilístico, a indistinção entre espectro e humano, o carro como extensão ontológica do herói e a hesitação entre explicações racionais e sobrenaturais são marcas que o aproximam das grandes inquietações da literatura fantástica.

            Voltando a Borges, especialmente em contos como “O Aleph” e “A Morte e a Bússola”, encontramos o conceito de um mundo onde o extraordinário não se impõe com grandiloquência, mas com a frieza da lógica metafísica.

             Como em The Wraith, há em Borges o gosto por protagonistas que estão deslocados do mundo ordinário, muitas vezes retornando para fechar uma história de maneira circular — como um destino que se cumpre fora do tempo cronológico. Jake Kesey ressuscita de maneira misteriosa.         

            Seu corpo, reconfigurado como uma entidade parcialmente mecânica, retorna não como o mesmo indivíduo, mas como uma instância simbólica que reconfigura a realidade. Borges escreve: “El tiempo es la sustancia de que estoy hecho. El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río.”

            Jake é exatamente essa figura: ele não volta “como era”, mas retorna como o tempo que vinga a si mesmo, como a memória do trauma que reconfigura a cidade (ou o mundo narrativo) até restabelecer uma ordem perdida.

            Assim como em “A Morte e a Bússola”, onde a solução do enigma exige uma leitura metafísica dos eventos, The Wraith só encontra coerência quando aceitamos que o filme está menos preocupado com causalidade física do que com causalidade simbólica.

            Franz Kafka, por sua vez, nos legou o universo do absurdo, da transformação involuntária e da opacidade das motivações existenciais.

             Em A Metamorfose, Gregor Samsa transforma-se em inseto sem explicação plausível; em O Processo, Josef K. é acusado por um crime não revelado e enfrenta um tribunal impassível.

            Em The Wraith, Jake morre — e retorna sem palavras para explicar sua transformação. Assim como Kafka nunca nos revela o "porquê" da metamorfose, Marvin não oferece qualquer explicação científica, religiosa ou mitológica para a reencarnação espectral de Jake. Isso é crucial.

            Jake é, como Kafka descreve em O Castelo, alguém que está “no mundo, mas não pertence a ele”.

            Seu rosto é jovem, mas seu corpo foi reconstruído; ele habita a cidade como estrangeiro, mesmo sendo, em segredo, um antigo habitante.

            Essa duplicidade, essa ambiguidade entre o pertencimento e a alienação, é tipicamente kafkiana.

            Kafka nos diz que a razão humana é impotente diante de certas forças — o tribunal, o castelo, a metamorfose. Em The Wraith, o mesmo ocorre com o espectro automobilístico.

            O xerife não pode compreender, os inimigos não podem resistir, e nem mesmo a amada reconhece o amado até que a narrativa esteja praticamente encerrada.

            Há uma lógica do absurdo que rege os eventos, com a única certeza sendo que o retorno do morto cumpre uma função que escapa à lógica racional comum.

            Tzvetan Todorov, em sua obra fundamental Introdução à Literatura Fantástica, define o fantástico não pelo evento em si, mas pelo efeito que ele causa: a hesitação entre uma explicação racional e uma sobrenatural.

            Essa hesitação é o cerne do efeito fantástico — quando nem o narrador nem o leitor (ou, no caso do cinema, o espectador) sabem ao certo se aquilo que estão vendo pertence ao plano do natural ou do extraordinário. Em The Wraith, a hesitação é total.

            Jake voltou dos mortos? Ele é um espectro, um mutante, um robô, um anjo vingador, um morto-vivo, ou uma projeção coletiva do desejo de justiça?

             O filme nunca responde. E isso é justamente o que o aproxima da teoria de Todorov. A estética do filme, com seus desertos surrealmente vazios, as luzes de neon que não iluminam nada, o carro futurista sem explicação tecnológica, tudo isso contribui para essa ambiguidade.

            Todorov escreve: “O fantástico ocupa o tempo desta incerteza. Assim que ela se decide — se o personagem opta por uma explicação ou outra —, ele deixa o terreno do fantástico para entrar no maravilhoso ou no insólito.”

            The Wraith se mantém, intencionalmente ou não, nesse limiar: jamais nos dá uma explicação completa.

            Isso o diferencia de filmes meramente sobrenaturais, onde o “espírito” é claramente identificado, ou de ficções científicas, que explicam o fenômeno por tecnologia.

            A escolha pela opacidade narrativa coloca o filme numa zona fértil da estética fantástica. A comparação com Borges permite enxergar Jake como um avatar do tempo e da memória que retorna para corrigir uma disfunção simbólica.

            Com Kafka, lemos sua condição como a do estranho transformado que precisa cumprir um destino sem que lhe seja oferecida comunicação ou redenção no sentido tradicional.

            Com Todorov, percebemos que o filme todo repousa na indecidibilidade — e é precisamente essa hesitação que permite sua leitura como exemplo tardio e cinematográfico do realismo fantástico.

            Dessa forma, The Wraith é um exemplar subestimado de um tipo específico de narrativa híbrida: entre o terror simbólico, a ficção fantástica e a fábula moralista de vingança.

            Sua estética o ancora no imaginário dos anos 1980, mas seu conteúdo o projeta como um objeto interpretável sob lentes muito mais ricas do que sua superfície sugere.       Não é exagero, portanto, dizer que The Wraith, como Borges e Kafka, habita um universo onde os mortos voltam não para dar susto, mas para revelar que o real é, por natureza, um espaço instável, onde o tempo se dobra, a identidade se dissolve, e o impossível insiste em retornar.

            Na superfície, The Wraith parece um filme sobre vingança juvenil com carros futuristas. No subsolo narrativo, no entanto, pulsa uma inquietação mais profunda: o que é um ser que morreu e voltou com um propósito? A pergunta não é apenas sobrenatural — é filosófica.

            Que tipo de existência possui alguém que já não é totalmente vivo, mas também não é completamente morto? Jake Kesey, ao retornar como The Wraith, é uma figura ontologicamente ambígua. Como nos diria Martin Heidegger, o “ser-para-a-morte” é a condição fundamental da existência humana: vivemos à sombra de nossa finitude.

            Jake, ao morrer e retornar, suspende essa lógica — ele torna-se algo além da existência ordinária, uma presença espectral que desafia a finitude e, por isso, já não está no campo do humano pleno.

             Ele está no que Derrida chamou de “hauntologia”***: o ser assombrado pela ausência e pelo retorno do que não está mais. Segundo Jacques Derrida, em Spectres de Marx, o espectro é uma figura que carrega consigo a urgência ética e o apelo da justiça: “Um espectro sempre volta para nos lembrar de uma promessa não cumprida, de uma dívida não paga.”

            Assim é The Wraith: ele não é apenas um morto que volta — ele é a encarnação de uma dívida simbólica que precisa ser saldada. A cidade, o xerife, a gangue, todos participaram ou consentiram no assassinato de Jamie Hankins (o “eu” anterior de Jake). O retorno, então, não é apenas vingança: é a busca por um realinhamento cósmico da justiça.

            No Livro X da República, Platão narra o Mito de Er, onde almas dos mortos, após passarem pelo juízo no Hades, são recompensadas ou punidas antes de retornarem ao mundo dos vivos para reencarnar.

             The Wraith pode ser interpretado à luz desse mito: Jake, injustamente assassinado, retorna ao mundo físico não apenas para punir, mas para corrigir uma assimetria cósmica. A morte injusta quebra uma ordem moral que, em termos platônicos, precisa ser reequilibrada. Mas há uma torção: em Platão, o retorno das almas é parte de um ciclo impessoal de reencarnações. Em The Wraith, o retorno é pessoal e orientado por desejo, amor e justiça.

            Há aqui uma ressonância com a ideia cristã do retorno escatológico, onde os mortos ressuscitam para o juízo final. Porém, Jake não espera o Juízo — ele o executa. Isso o torna uma figura quase apocalíptica, um anjo vingador ou “psicopompo”**** (condutor das almas), como nas mitologias greco-romanas.

            A alma e o corpo máquina: pós-humanismo e dualismo ontológico. O corpo de Jake, ao retornar, é reconfigurado. Seu “novo corpo” é o do piloto sem rosto, vestindo uma armadura negra, com um carro igualmente invulnerável.

             Isso gera uma questão filosófica essencial: a alma é o que permanece após a morte, ou o corpo reconfigurado é parte de sua nova identidade?

            Paul Ricoeur, em Soi-même comme un autre*****, argumenta que a identidade pessoal se dá numa tensão entre o idem (o mesmo) e o ipse (a continuidade narrativa).

            Jake não é mais “o mesmo” (idem), mas permanece o “ele mesmo” (ipse) porque sua narrativa interior não foi rompida — o amor por Keri, o desejo de justiça, a memória da violência. Essa concepção se liga ao debate clássico entre o dualismo cartesiano e as visões integrativas do ser.

            Jake seria, nessa chave, um ser pós-humano — onde o espírito habita um corpo intermediado por tecnologia (o traje, o carro, a ausência de ferimentos).         Isso antecipa debates contemporâneos do transumanismo: o que permanece da identidade quando o corpo é descartável?

            Em Nietzsche, especialmente em Assim Falou Zaratustra, a vontade de potência é o impulso fundamental da vida. Não é mera “vontade de viver”, mas de afirmar-se, de se impor sobre o caos. A vingança de Jake não é rancorosa: ele não tortura, não grita, não mata de forma cruel. Ele impõe o seu retorno como afirmação de si. Cada corrida contra um membro da gangue é quase ritualística — uma espécie de provação simbólica em que o Wraith se revela superior. Nietzsche também adverte contra o ressentimento: o impulso de vingar-se por fraqueza.

             Mas Jake parece operar por uma lógica distinta — seu retorno é mais próximo do que o filósofo chama de “eterno retorno do mesmo”: ele reencena o trauma para encerrá-lo, sem se submeter a ele.

            É por isso que, ao final, ele se despe do papel de Wraith e entrega o carro (símbolo de seu poder) ao irmão do morto, Billy.

            Esse ato simboliza que a justiça foi feita — e que ele pode ir embora. Nietzsche diria: ele venceu o niilismo. O tempo, em The Wraith, não é linear. O morto retorna, os culpados revivem o trauma por meio das corridas, o herói revive seu amor com Keri — mas tudo em nova chave.

            Paul Ricoeur analisa, em Tempo e Narrativa, que o tempo da ficção difere do tempo cronológico: é um “tempo refigurado”, onde a lógica da narrativa pode suplantar a cronologia do real. A presença do Wraith suspende o tempo da cidade. Cada membro da gangue que morre é repetidamente confrontado com seu próprio crime.

            O que se repete não é o evento, mas o sentido: o trauma é revisitado até que possa ser simbolicamente encerrado. Trata-se de um tempo mítico, ritualístico — muito mais próximo da narrativa religiosa ou arquetípica do que do tempo da causalidade comum. O sobrenatural como zona ética: entre o castigo e a redenção. O sobrenatural em The Wraith não é terror puro — é uma forma de ética.

             Ele surge quando o sistema legal falha: o xerife não consegue punir os criminosos, a comunidade se cala, e a vítima precisa retornar para fazer justiça com as próprias mãos (ou pneus). Isso conecta o filme a uma tradição simbólica em que o além age quando o aquém se corrompe.

            Essa lógica aparece no Antigo Testamento, nos profetas que anunciam o castigo divino, e nos filmes contemporâneos como O Corvo (1994) ou Ghost (1990), em que o retorno dos mortos visa restaurar a ordem.

            Mas em The Wraith, há uma peculiaridade: o sobrenatural não é explicado por Deus, nem por pacto demoníaco, nem por ciência. Ele é. A ausência de explicação metafísica explícita amplia sua força simbólica: o retorno do justo é, por si, inevitável.

            The Wraith é mais do que um filme B de vingança: é um estudo simbólico sobre a persistência da identidade além da morte, sobre a justiça que não se realiza nos tribunais, sobre o corpo que se torna máquina, sobre o amor que sobrevive ao fim, sobre o tempo que se dobra sobre si mesmo.

            A figura do Wraith, ao unir o sobrenatural com uma lógica moral, estética e filosófica, transforma-se num operador narrativo que nos obriga a rever nossos conceitos de vida, de justiça e de permanência do eu.

             Ao invés de oferecer explicações, o filme apresenta lacunas — e é nessas lacunas que o pensamento filosófico encontra seu espaço. Nas palavras de Derrida: “A vida é assombrada. A história é assombrada. O pensamento é assombrado. Não há pensamento sem espectro.” E talvez The Wraith nos lembre disso da forma mais literal e simbólica possível.

 

Notas: 

*O termo vem do ensaio “Das Unheimliche” (1919) de Sigmund Freud, onde ele investiga o sentimento peculiar que surge quando algo é ao mesmo tempo familiar e estranho — algo que deveria ter permanecido oculto mas retorna, provocando desconforto. Freud parte da palavra heimlich, que em alemão significa “doméstico, familiar, íntimo”, mas que também carrega um segundo sentido: “escondido, secreto”. O prefixo “un-” transforma-a em unheimlich — aquilo que, sendo familiar, se torna estranho por reaparecer de maneira deslocada. Assim, o inquietante é o retorno do que foi reprimido — uma familiaridade distorcida, uma memória que volta de forma incômoda.

**“Morte sobre Rodas, Amor do Além…” - Death on Wheels, Love from the Beyond” soa como uma fusão de dois motivos clássicos do gótico moderno: a estrada como símbolo do destino, do movimento entre vida e morte; o amor que ultrapassa a morte, o vínculo que resiste mesmo quando o corpo desaparece.

*** O termo “hauntologia” é fascinante e cheio de camadas — ele mistura filosofia, crítica cultural e teoria da música. Aqui vai um resumo detalhado: Criado pelo filósofo Jacques Derrida em seu livro Spectres de Marx (1993).

É um trope linguístico com “ontologia”: enquanto ontologia é o estudo do ser, hauntologia trata do “ser assombrado” ou do retorno de espectros.

**** A palavra vem do grego: psyche (alma) + pompos (guia, condutor).

***** Soi-même comme un autre” é um livro filosófico do pensador francês Paul Ricœur, publicado em 1990, cujo título se traduz literalmente como: “A si mesmo como outro”.

31 de out. de 2025

HALLOWEEN

 

           "Halloween e Michael Myers: a máscara do medo na cultura contemporânea"

 Por Clayton Alexandre Zocarato

                 

            Desde o final da década de 1970, o Halloween deixou de ser apenas uma festividade de raízes celtas, marcada por rituais de colheita e crenças sobre o retorno dos mortos, para tornar-se um fenômeno globalmente mediado pela cultura cinematográfica.          Nenhum personagem sintetiza melhor essa transfiguração cultural do medo do que Michael Myers, o assassino mascarado da franquia Halloween (1978–presente), concebida por John Carpenter.

            A figura de Myers não é apenas um artefato de entretenimento, mas um espelho perturbador das angústias modernas — uma síntese do mal como força anônima, silenciosa e inevitável.

            Sob essa ótica, o personagem transcende o cinema de horror e passa a ocupar o imaginário coletivo como metáfora do vazio existencial e da violência latente nas estruturas sociais e psicológicas do Ocidente contemporâneo.

            O contexto histórico do surgimento de Halloween é crucial para compreender sua força simbólica.

            O final dos anos 1970 nos Estados Unidos foi um período de crise de valores: a Guerra do Vietnã havia deixado marcas profundas, o escândalo Watergate corroera a confiança nas instituições, e o sonho americano parecia ruir diante do desencanto pós-moderno.

             Em meio a essa atmosfera de incerteza, o terror cinematográfico floresce como válvula de escape e reflexão.

            Michel Foucault, ao discutir a relação entre poder e medo, observou que o controle social opera não apenas por coerção, mas pela internalização do pavor — e é exatamente isso que Carpenter captura.

            Myers não precisa justificar seus atos; sua ausência de motivação o torna o símbolo perfeito da banalidade do mal descrita por Hannah Arendt. Ele mata porque o mal, em sua forma mais pura, não necessita de causa: ele simplesmente é.

            A máscara branca de Michael Myers constitui, talvez, o elemento mais emblemático dessa representação.

             Sem expressão, ela reflete o vazio do sujeito moderno, fragmentado e despersonalizado.

            Se Nietzsche anunciava a “morte de Deus” e o consequente colapso das referências morais, Myers representa o que resta após esse colapso: o niilismo encarnado. Ele é o homem sem vontade, sem desejo, sem dor — uma presença silenciosa que paira sobre a vida cotidiana e a destrói com frieza maquinal.

            O horror de Halloween não reside na violência explícita, mas na constatação de que o mal é impessoal, inescapável e, sobretudo, familiar.

            A trilha sonora composta pelo próprio John Carpenter intensifica esse aspecto filosófico e emocional. Minimalista, construída sobre notas repetitivas e insistentes em compasso 5/4, ela ecoa o ritmo mecânico da perseguição e a inevitabilidade da morte.     Adorno e Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento, argumentaram que a cultura de massa tende a reproduzir a lógica da repetição industrial; a música de Halloween não foge a isso, mas inverte seu sentido.

            Ela transforma a repetição em instrumento de angústia, revelando a alienação estética do mundo moderno.

            Cada tecla do sintetizador parece ressoar como um batimento cardíaco universal, lembrando-nos de que o medo é, antes de tudo, um estado de consciência aprisionada.

            No plano cultural, o Halloween cinematográfico tornou-se também um ritual moderno de catarse coletiva.

             Assim como os antigos ritos pagãos buscavam exorcizar os temores do desconhecido, os filmes de terror funcionam hoje como laboratórios simbólicos da morte e da moralidade. Sigmund Freud, em O Estranho (Das Unheimliche), descreve o terror como o retorno do reprimido — aquilo que o sujeito tenta ocultar, mas que inevitavelmente ressurge.

             Michael Myers é exatamente essa figura do retorno: ele volta, incessantemente, a cada sequência, a cada remake, a cada nova geração de espectadores.

             Sua imortalidade não é física, mas cultural; ele é o inconsciente coletivo do medo, reencenando o trauma de uma sociedade que não sabe lidar com sua própria violência.

            No aspecto social, o sucesso duradouro de Halloween e de personagens similares reflete a transformação do medo em mercadoria.

            O capitalismo tardio, conforme analisado por Fredric Jameson, estetiza a experiência e transforma até mesmo o pavor em produto.

             O que antes era o domínio do sagrado e do místico — a noite em que os mortos retornam — converte-se em espetáculo comercial, impulsionado por campanhas publicitárias e merchandising.

            A máscara de Myers, vendida em massa durante o Halloween real, encarna a ironia pós-moderna: usamos o rosto do assassino para brincar, dançar e rir, neutralizando o horror através do consumo.

            No entanto, essa banalização não elimina o poder simbólico da obra. Ao contrário, ela revela a capacidade do cinema de horror de operar como crítica cultural disfarçada.

            O personagem de Michael Myers denuncia, em sua mudez, a falência da comunicação humana em uma era saturada de ruídos.

            Sua impassibilidade lembra a alienação descrita por Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo: o homem moderno, perdido entre imagens e simulacros, já não distingue o real do ficcional. Myers é o simulacro perfeito — uma sombra que atravessa a tela e se insinua na vida cotidiana, confundindo a fronteira entre o medo representado e o medo vivido.

            Do ponto de vista histórico, Halloween marca uma ruptura estética com o horror clássico das décadas anteriores. Se o cinema de monstros dos anos 1930 e 1940 — Frankenstein, Drácula, O Lobisomem — buscava o extraordinário e o grotesco, Carpenter desloca o terror para o espaço doméstico.

            As ruas suburbanas, as casas iluminadas e os quintais de Illinois tornam-se palcos da violência.

            É o terror cotidiano, o mal que habita o lar, o vizinho, a normalidade. Tal mudança reflete, segundo o filósofo Jean Baudrillard, a hiper-realidade do fim do século XX: o horror não está mais fora, mas dentro da vida ordinária, dissolvido no tecido da civilização. Michael Myers é o produto dessa dissolução — o assassino que poderia ser qualquer um.

            Musicalmente, o tema de Halloween tornou-se um dos ícones sonoros mais reconhecíveis da história do cinema, funcionando como signo cultural independente do próprio filme.

            Sua estrutura minimalista influenciou não apenas trilhas posteriores de terror, mas também a música eletrônica e o rock industrial, estabelecendo uma ponte entre o cinema e a cultura pop.

            A simplicidade da melodia sugere um retorno ao essencial: o medo como pulsação rítmica, como repetição que captura o corpo antes mesmo da mente.

            Pierre Schaeffer, teórico da música concreta, afirmava que o som, despido de sua origem, adquire poder de evocação pura; Carpenter faz exatamente isso, reduzindo o horror a sons primários, quase matemáticos, que nos devolvem à experiência arcaica do pavor.

            Filosoficamente, a figura de Michael Myers permite múltiplas leituras. Pode ser vista como o “homem sem qualidades” de Robert Musil, o sujeito moderno desprovido de identidade e sentido.

            Ou como o “homem unidimensional” de Herbert Marcuse, aprisionado pela racionalidade instrumental e pela repressão dos desejos.

            Em Myers, o silêncio é absoluto: ele não fala, não explica, não hesita. Ele age. Sua violência é a do sistema que produz e consome corpos sem significação.

            Por isso, talvez, ele permaneça tão perturbador — porque encarna o medo essencial de uma sociedade que já não encontra transcendência nem propósito.

            Historicamente, o sucesso de Halloween também impulsionou o subgênero “slasher”, que se tornaria dominante nas décadas seguintes com Friday the 13th, A Nightmare on Elm Street e outros.

            Porém, enquanto muitos imitadores reduziram o horror a fórmulas comerciais, o original de Carpenter conserva uma dimensão quase metafísica.

             O silêncio das ruas, a ausência de trilha em certos momentos, o olhar subjetivo da câmera — tudo contribui para um sentimento de vigilância e destino. Michel de Certeau, ao discutir o espaço urbano, dizia que o olhar transforma o cotidiano em território simbólico.

            Em Halloween, o subúrbio americano é o novo labirinto de Minotauro, e Michael Myers, o monstro que nos obriga a confrontar o que está escondido sob o verniz da normalidade.

            No campo cultural, o personagem também se tornou matéria de reinvenções e debates sobre o mal.

             As releituras contemporâneas, especialmente as dirigidas por David Gordon Green entre 2018 e 2022, atualizam o mito para discutir trauma, memória e masculinidade tóxica.

            Laurie Strode, sobrevivente original, ressurge como símbolo de resistência e reconstrução identitária.

            Tal reconfiguração dialoga com o pensamento de Judith Butler sobre a performatividade do gênero e o corpo como espaço político: Laurie transforma o corpo traumatizado em campo de luta e afirmação.

            Assim, a máscara de Myers — símbolo do opressor — é contraposta ao rosto marcado, mas humano, da sobrevivente.

            Em última instância, o fenômeno Halloween evidencia a permanência do mito em tempos de desencanto.

            Se, como sugeriu Joseph Campbell, os mitos são narrativas arquetípicas que estruturam o inconsciente coletivo, Michael Myers é o mito moderno do retorno eterno da morte.

            Sua presença constante nas telas, reeditada, reinventada, reciclada, confirma o diagnóstico de Nietzsche sobre o eterno retorno: o horror se repete porque o ser humano precisa revivê-lo para reconhecê-lo.

            O cinema de Carpenter, portanto, não é apenas entretenimento — é ritual, é filosofia, é espelho.

            Ao longo de quase cinco décadas, Halloween consolidou-se como uma das expressões mais profundas da relação entre medo e cultura.

            Sua estética simples, sua música hipnótica e seu personagem enigmático transcenderam o gênero, convertendo-se em alegoria da própria condição humana.   Michael Myers, mascarado e silencioso, continua caminhando — não apenas pelas ruas de Haddonfield, mas pela memória coletiva do Ocidente.

             Ele é o símbolo de uma sociedade que teme olhar para dentro de si, porque sabe que o verdadeiro monstro habita no interior.

             Halloween nos recorda que o medo não é o oposto da razão, mas seu reflexo mais fiel — e que, talvez, só compreendendo o horror possamos compreender o que resta de humano em nós.

            Michael Myers não é apenas um personagem de ficção; ele é um dispositivo simbólico que expõe a fragilidade das categorias modernas do bem e do mal.

            Slavoj Žižek, ao refletir sobre o cinema de horror, argumenta que o monstro é o retorno material do que a ideologia tenta reprimir.

            Em Myers, essa tese se torna quase literal: ele representa aquilo que a cultura americana — sustentada em mitos de pureza, moralidade e família suburbana — se recusa a ver.

            A cada aparição, Myers rompe a fachada do “american way of life”, mostrando o vazio que pulsa sob a superfície do conforto e da normalidade. Ele é a figura lacaniana do “Real”: aquilo que não pode ser simbolizado, o trauma que resiste à linguagem e retorna incessantemente para assombrar o sujeito.

            Jacques Lacan, ao discutir o conceito de das Ding (a Coisa), descreve o núcleo inominável do desejo humano, aquilo que nos atrai e repele simultaneamente. Myers é essa “Coisa” que retorna — o desejo e o medo amalgamados em um só corpo.

             Ele não deseja o prazer, mas a repetição; não busca a morte alheia por vingança, mas por compulsão. A repetição, em Lacan, é o que tenta simbolizar o trauma, e é exatamente essa lógica que estrutura a franquia Halloween: cada novo filme é uma reencenação do mesmo ato primordial, uma tentativa sempre fracassada de dar sentido ao sem-sentido. O horror, portanto, é a pedagogia do vazio.

            Ao mesmo tempo, o sucesso duradouro da figura de Michael Myers revela a necessidade social do mito em um mundo desencantado.

            Edgar Morin, em O Espírito do Tempo, afirmou que o cinema é a mitologia moderna: ele cria deuses e demônios adaptados à sensibilidade tecnológica da era industrial. Myers é um desses novos deuses — um deus negativo, sem palavra, sem rosto, sem promessa.

             Ele é o símbolo da transcendência impossível, da espiritualidade ausente, da morte como única permanência. Em sua mudez, ecoa o silêncio de um mundo que perdeu a fé, mas ainda teme o abismo.

            Byung-Chul Han, ao analisar a sociedade contemporânea em A Sociedade do Cansaço e A Agonia do Eros, descreve o desaparecimento da alteridade e a crise da experiência.

            Vivemos cercados por imagens e estímulos, mas incapazes de encontro real. Myers, nesse contexto, é o retorno brutal do Outro.

             Ele invade o espaço seguro da casa, do corpo, do cotidiano, lembrando-nos de que a alteridade radical — o desconhecido, o diferente — ainda existe, mesmo que tentemos bani-la através da tecnologia, do consumo e do espetáculo.

             Ele é o que resta de real em uma civilização saturada de simulações.

            Albert Camus via na figura de Sísifo a metáfora da condição humana: a busca incessante por sentido em um mundo indiferente.

             Em Halloween, o ciclo eterno de mortes e retornos de Myers repete essa lógica absurda. Ele é Sísifo ao contrário — em vez de empurrar a pedra da existência, ele a faz rolar sobre os outros, impondo o peso da finitude como destino comum.

            A ausência de motivação transforma sua violência em gesto filosófico: o absurdo tornado carne.

            O espectador, diante disso, não teme apenas o assassino, mas o reconhecimento de que a vida, em última instância, é o território do incompreensível.

            Jean-Paul Sartre, ao definir o homem como “condenado à liberdade”, afirmava que a angústia nasce da responsabilidade absoluta sobre nossas escolhas.

            Michael Myers é a negação dessa liberdade: ele é o homem sem escolha, pura facticidade. Contudo, sua ausência de vontade provoca no espectador uma forma de angústia ainda maior — o medo de ser dominado pela própria ausência de sentido.       Assim, Myers encarna o extremo oposto do existencialismo: a completa desumanização, o ser reduzido a ato, a ausência de consciência. Sua existência é pura facticidade mecânica — o “em-si” sartreano levado ao extremo da monstruosidade.

            Do ponto de vista sociológico, o ciclo de consumo e revival da franquia Halloween também pode ser interpretado à luz de Zygmunt Bauman.

            Em Medo Líquido, Bauman descreve a modernidade como uma era em que o medo se torna difuso, global, sem objeto definido. Myers simboliza esse medo líquido: não há lugar onde ele não possa estar, não há razão que o delimite.

            Ele é o medo desterritorializado, a encarnação da insegurança existencial. Por isso, sua figura se adapta a cada tempo — o mesmo rosto vazio que, nos anos 1970, denunciava o mal reprimido da família tradicional, hoje reflete as ansiedades digitais, o anonimato, a solidão e a violência estrutural da era das redes.

            É interessante observar como, nas últimas décadas, o Halloween se transformou em um espaço de convivência paradoxal entre a morte e a celebração.

            As festas, fantasias e decorações macabras convertem o medo em estética, e o horror em prazer visual. Walter Benjamin já advertia, em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica, que a reprodutibilidade transforma o sagrado em mercadoria.

            A imagem de Michael Myers, multiplicada em máscaras, memes e produtos, perde sua aura — mas, paradoxalmente, ganha onipresença.

             Essa difusão do medo como consumo revela a contradição central da pós-modernidade: o terror é desejado, o mal é estilizado, e o vazio é vendido como experiência estética.

            Nessa perspectiva, o Halloween cinematográfico é também um espelho político. O subúrbio branco e ordenado de Haddonfield, onde a narrativa se desenrola, simboliza a América idealizada — limpa, controlada, previsível.

            A irrupção do assassino rompe essa ilusão, revelando a violência latente que sustenta a ordem. Frantz Fanon, em Os Condenados da Terra, descreve como o poder colonial projeta o mal no Outro para manter a pureza do centro.

            Myers, nesse sentido, é a projeção reversa: o mal que emerge do próprio centro, da própria branquitude, da própria normalidade. Ele destrói não por vir de fora, mas por nascer de dentro.

            Há também uma dimensão teológica invertida em Michael Myers. Se o cristianismo tradicional personifica o mal em figuras demoníacas externas ao homem, Carpenter o reconfigura como ausência total de transcendência. Myers não é o Diabo — ele é o vazio deixado pela morte de Deus.

             A máscara, nesse contexto, torna-se o símbolo da teologia negativa: não há rosto porque não há essência.

             Emmanuel Lévinas, ao refletir sobre a ética do rosto, afirmava que o rosto do outro nos convoca à responsabilidade. Myers, sem rosto, é a negação da ética — o Outro que não interpela, apenas destrói. Diante dele, o sujeito não encontra alteridade, mas abismo.

            A filosofia contemporânea do medo, especialmente em pensadores como Paul Virilio e Hans Jonas, também encontra eco na estética de Halloween. Virilio via o medo como consequência da aceleração tecnológica — a consciência de que o progresso gera novos riscos.

            Myers é uma figura lenta, quase imóvel, e justamente por isso assustadora: ele representa a resistência do terror à velocidade, o retorno do arcaico no seio da modernidade.

             Hans Jonas, em O Princípio Responsabilidade, defendia que o medo poderia ter função ética, como consciência do perigo coletivo.

             No entanto, no universo de Carpenter, o medo é paralisante, não moralizador — ele revela a impotência da humanidade diante de suas próprias criações simbólicas.

            Se ampliarmos a leitura para a dimensão antropológica, podemos compreender o Halloween como ritual de inversão.

            Como apontou Mircea Eliade, toda sociedade necessita de momentos de suspensão das normas — tempos do caos que reafirmam a ordem.

            O cinema de terror ocupa esse papel nas sociedades seculares: ele cria espaços simbólicos de transgressão controlada.

             Assistir a Halloween é, portanto, participar de um rito moderno em que a morte é domesticada, o pavor é estetizado e o caos é ritualizado para garantir a continuidade da vida social. Michael Myers é o sacerdote desse novo culto — o mediador entre o medo e o prazer.

            Ao longo das décadas, o personagem evoluiu sem mudar — paradoxo que reforça sua força arquetípica.

             Cada reinterpretação, de Rob Zombie a David Gordon Green, tenta decifrar o enigma de sua origem, mas fracassa, porque sua essência é precisamente a ausência de essência. O horror do inexplicável é o motor que mantém vivo o mito.

            Como observou Umberto Eco, os mitos modernos sobrevivem não pela coerência narrativa, mas pela multiplicidade de leituras que permitem.

            Myers pode ser lido como trauma, como crítica social, como metáfora existencial ou como puro artifício estético — e é exatamente nessa ambiguidade que reside seu poder.

            Em última análise, Halloween e seu protagonista constituem um espelho multifacetado da condição humana.

            A máscara de Myers devolve ao espectador o reflexo de si mesmo — não o herói, mas o vazio, a ausência de sentido, o medo de ser nada.

            Camus escreveu que “não há destino que não possa ser superado pelo desprezo”. Contudo, diante de Myers, o desprezo não basta; o horror resiste porque é estrutural, porque é humano.

             O cinema de Carpenter, com sua economia de meios e profundidade simbólica, antecipa a crise contemporânea da subjetividade: o sujeito reduzido a imagem, a emoção transformada em mercadoria, o medo convertido em espetáculo.

            Talvez por isso, ao fim de cada nova versão, Michael Myers nunca morre completamente.

            Ele é o retorno do reprimido cultural, o lembrete incômodo de que o progresso técnico não elimina a sombra.

            Como diria Jung, “aquilo a que resistimos, persiste”.

            E assim, o assassino mascarado continua a caminhar pelas telas, atravessando gerações, culturas e paradigmas, reafirmando que o medo é o idioma universal da existência.

             Se o século XXI é a era do vazio e da exaustão, então Michael Myers é seu ícone — não apenas o vilão do Halloween, mas o retrato simbólico da humanidade que se olha no espelho e já não reconhece o próprio rosto.