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15 de fev. de 2023

AQUILO ESTÁ VINDO

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Eu me arrependi tão logo cheguei. Antigamente o Parque era um lugar muito tranquilo e agradável. Dava para passar muitas horas caminhando pelas trilhas na mata, sentar nas sombras das grandes árvores para ler e relaxar, além de nadar nas águas calmas e refrescantes do riacho. Como quase ninguém ia lá, tudo permanecia limpo e preservado, sem gente desrespeitosa e lixo, que dá praticamente na mesma. Mas isso ficou no passado. Lixo agora é o que mais se vê no Parque aos finais de semana. Não apenas garrafas, copos plásticos, bitucas de cigarro e pacotes de tudo quanto é porcaria, mas sobretudo o lixo humano. Gente bêbada, vulgar e irritante, que não respeita nada e nem ninguém e inferniza a todos com uma espécie de competição de dejetos sonoros em caixas de som que vomitam “funk ostentação”, “sofrência”, “sertanejo universitário” e sabe-se lá quais outros tipos de diarreia auditiva impossível de se classificar como música. Não satisfeitos em tornar os espaços públicos urbanos em antros de imundice e baixarias, passaram a infestar também os últimos redutos da natureza em que era possível se vivenciar a paz. Agora tudo é zoeira e sujeira. Em nome da “diversão”, se expõe o que há de mais patético e degradante dentro de cada um.

            Como o tempo estava para chuva, acreditei que poderia ter uma manhã de sábado um pouco mais sossegada, mas estava enganado. O Parque estava quase tão cheio como de costume. O pessoal ocupava a estrutura fixa dos quiosques e ainda espalhava gazebos e tendas por todos os lados, com churrasqueiras móveis impregnando o ar com fumaça escura de carvão. Eu trazia na mochila alguns sanduíches e o meu exemplar de O Idiota, mas Dostoiévski ia ter que esperar. Decidi descansar um pouco – o Parque ficava a 7 km da cidade e eu tinha ido a pé – e logo voltaria para casa. Diante daquele deprimente show de grosseria e vulgaridade, o silêncio do meu quarto parecia muito mais convidativo e acolhedor.

            Sentado em um dos únicos bancos de madeira que ainda estavam vagos, comecei a me lembrar de uma cena presenciada um pouco antes que, agora percebo, já era um prenúncio do que estava por vir. Bem diante da entrada do Parque, passou por mim uma antiga caminhonete rural, praticamente caindo aos pedaços. Na pequena carroceria havia um colchão, algumas sacolas de roupas, potes de comida e um cachorro. Ao volante estava um senhor idoso e ao seu lado uma senhora, igualmente idosa. Eu reconheci o motorista. Era o Seu Sebastião. Ele morava em uma humilde chácara ao lado do Parque e costumava ir à cidade vender chás, mel e outros produtos naturais. A minha avó geralmente comprava dele um pouco de camomila, macela e hortelã. Quando eu era criança e o Seu Sebastião passava lá em casa, sempre me chamava de Gurizinho e me dava umas balas artesanais de mel e funcho. Naquele momento ele dirigia com expressão tensa e séria. Quando passou ao meu lado, diminuiu ainda mais a velocidade e ficou me olhando, com ar preocupado. “A gente está indo embora, Gurizinho”, disse ele, parecendo realmente me reconhecer, “Nessas matas têm coisas muito antigas que deveriam ser deixadas quietas. O que aquela gente está fazendo lá do lado do rio não vai acabar bem. Você também devia ir embora.” E assim eles se foram, com certeza, para nunca mais voltar. Pessoas simples, que viviam naquelas terras a sabe-se lá quantas gerações, partindo de forma melancólica, rompendo com suas raízes, agora condenadas ao esquecimento. Gente que aprendeu a conviver em harmonia com a natureza, expulsa pela presença iminente e sem alma do concreto e do asfalto, pelo avanço hostil de uma urbanização que consome a tudo, sem ligar para ninguém, nem para eles e nem para a natureza.

            Era sobre isso que ele estava falando quando se referiu “ao que estavam fazendo lá do lado do rio”. Um grande condomínio de luxo. As terras na margem oposta do curso d’água não faziam mais parte do Parque, portanto, na visão dos políticos que autorizaram a obra, poderiam ser devastadas e maculadas com torres de tijolo, vidro e aço para abrigar gente rica e esnobe que certamente estaria mais preocupada com o formato da piscina e a cor das paredes do lado de dentro do que com as árvores e o rio do lado de fora. A obra, ainda em fase inicial, já deixava claro com suas máquinas e caminhões, que a concretude do sonho capitalista esmaga e transforma em pesadelo as referências daqueles com quem quase ninguém mais se importa. Seu Sebastião, com seu rosto marcado pelas rugas tristes da desilusão, que o diga.

            Fazia poucos minutos que eu havia chegado, quando um casal acompanhado de uma menina de 9 ou 10 anos de idade se aproximou e começou a organizar um piquenique no gramado ao meu lado. Logo o cara disse para a esposa: “Enquanto vocês ajeitam as coisas aqui, eu vou até lá no rio ver como estão as obras. A perfuratriz grande ia chegar hoje de manhã. Logo estou de volta”. Eu conhecia aquele sujeito. Era funcionário do Departamento de Água e Esgoto. Devia ser um dos responsáveis por fiscalizar a construção do condomínio. Como se isso fizesse alguma diferença.

            Se passaram mais alguns minutos e, como percebi que o céu estava mais escuro e a chuva logo viria, coloquei novamente a mochila nas costas e já estava pronto para refazer a caminhada de volta até a cidade, quando vi, se aproximando da direção do rio, alguém que vinha correndo, gesticulando de forma afobada e gritando algo para as pessoas que estavam ao redor. Era aquele sujeito, o cara do Departamento de Água e Esgoto. Claramente, a maioria das pessoas não dava nenhuma bola para seja lá o que fosse que ele estivesse dizendo. Muitos nem sequer ouviam, porque a poluição sonora que saía das diversas caixas JBL impregnava os arredores. Mas, conforme ele foi se aproximando – suado, afobado e apressado – consegui ouvir o que estava dizendo: “Corram! Corram! Aquilo está vindo!”. Quando ele passou por mim, pude ver o pavor estampado no seu rosto e não tive nenhuma dúvida de que, sabe-se lá o que fosse aquilo que estava vindo, devia ser algo completamente aterrorizante.

            Tão logo chegou ao local onde estavam a esposa e a filha, pegou a menina no colo e disse “Vamos, querida! Calce os tênis porque vamos precisar correr!”. Assustada, a garotinha perguntou o que estava acontecendo, mas ele nada respondeu e somente continuou ajudando a colocar o calçado de forma afoita. Quando a esposa insistiu em perguntar o motivo de tanta agitação, ele apenas resmungou: “Eu disse para aqueles babacas que não era para escavar naquele lugar!”. E mais não falou. Pegou a filha por uma mão, a esposa pela outra e assim saíram correndo na direção do estacionamento, que ficava distante uns 500 metros dali.

            Com o coração batendo acelerado e sentindo um medo que se tornava quase palpável, mesmo sem saber o porquê, não tive dúvidas e saí correndo também, assim como algumas outras poucas pessoas que notei com o canto do olho. Mal havia dado alguns passos quando percebi a terra tremendo sob os meus pés. O terremoto foi rápido, não deve ter durado mais do que 5 segundos, mas foi tão intenso a ponto de fazer com que eu e todos que consegui avistar caíssemos no chão. Escutei o barulho de árvores tombando, e um estrondo muito forte que deduzi ser um transformador de energia elétrica explodindo sobre algum poste, porque muitas das caixas de som silenciaram em seguida. Ouvi alguns palavrões, crianças chorando e expressões de incredulidade.

            Ainda estava me levantando, quando começaram os gritos. No início eram poucos, mas muito rapidamente aumentaram de quantidade e intensidade. Os primeiros pareciam vir das proximidades do rio, e logo foram subindo, para a direção onde eu estava. Então várias outras pessoas começaram a correr e dentro de instantes o pânico foi se espalhando pelo Parque. Aquilo estava vindo!

            Sem titubear, me botei a correr novamente, tentando nem olhar para os lados para não me distrair ou perder tempo. E os gritos aumentavam. Gritos de pavor, de dor, ou o que quer que fosse, mas eram gritos terríveis, de gelar o sangue. Tive a impressão de ter ouvido um som diferente, difícil de descrever, mas estranho o suficiente para me deixar ainda mais assustado. Eu corria como se não houvesse amanhã, porque talvez se aquilo me alcançasse não haveria mesmo.

            Algumas pessoas me ultrapassavam na corrida e isso fez com que eu decidisse largar a mochila para ficar mais leve e rápido. Chegando no estacionamento, as pessoas embarcavam nos carros e partiam o mais rapidamente que podiam. A pressa era tanto que alguns veículos colidiam nos outros e começava uma sinfonia de buzinas e xingamentos. Em desespero, algumas pessoas tentavam pedir carona e se enfiar nos carros das outras, mas quase ninguém colaborava, deixando para trás homens, mulheres e crianças que gritavam e choravam, apavoradas. Eu decidi não perder tempo dependendo da caridade alheia e segui para fora do Parque a pé mesmo, tentando controlar o fôlego na corrida.

            Foi então que, se sobrepondo ao choro, aos gritos e aos estrondos de árvores caindo, ouvi novamente aquele barulho, dessa vez tão alto, claro e horripilante que quase me deixei dominar pelo pavor. Não era um urro, não era um rosnado. Não sei o que era, mas com certeza não era humano e nem vindo de qualquer animal que eu conhecesse. Pela potência do som, vinha de algo grande, muito grande. Mesmo sem parar para olhar, tive a impressão de que a coisa vinha por entre a mata, pelo lado direito do portão do Parque e que, provavelmente iria atravessar a cerca e bloquear a estrada que ia em direção à cidade. Por isso, quando passei pelo portão e cheguei na rodovia, corri para o lado contrário.

            Percebi que várias pessoas tiveram ideia semelhante e seguiram na mesma direção que eu. Parece que foi o mais acertado, pois do lado oposto continuavam vindo gritos, sons que imaginei serem de carros colidindo em algo e até uma explosão. Mas, não havia motivo para diminuir o ritmo. Logo aquele som infernal ecoou novamente, logo atrás de nós. Agora eram alguns membros do nosso próprio grupo de fugitivos que gritavam apavorados, decerto porque cometeram o erro de olhar para trás e vislumbrar aquilo.

            Uma moça loira passou correndo pela minha direita como se fosse uma maratonista, mas, quase imediatamente, percebi com o canto do olho que algo se projetou na direção dela e a puxou de volta rapidamente. Seria um tentáculo?! Não tenho certeza. Só sei que ouvi o perturbador barulho de algo se partindo, um grito estridente e então alguma coisa quente e pegajosa respingou na minha nuca.

            Comecei a sentir as forças me abandonando. Percebi que não iria conseguir correr por muito mais tempo e então o meu destino seria o mesmo daqueles que iam ficando para trás, que gritavam e depois se calavam para sempre.

            Nesse meio tempo, pelo menos dois carros que vinham na nossa direção, deram meia-volta e fugiram pelo mesmo caminho de onde surgiram, sem ajudar a ninguém. Quando já estava começando a ficar sem esperanças, ouvi um ronco de motor e olhei para o lado direito. Em uma estrada de terra que seguia paralela à rodovia onde estávamos, vi uma antiga camionete F1000 se aproximando rapidamente. Ao volante estava um homem de meia idade, com um chapéu na cabeça, gesticulando que era para irmos na direção dele. Percebi que havia mais gente na cabine, e na carroceria estavam dois garotos e um velho, todos acenando e gritando em nossa direção.

            No instante seguinte, a camionete saiu da estrada de terra com uma manobra brusca, levantando uma nuvem de poeira, adentrou no acostamento e diminuiu bastante a velocidade – quase parando – para que pudéssemos alcançá-la. Reunindo minhas últimas forças, percorri os metros finais o mais rápido que pude e fui o primeiro a chegar. Várias mãos pegaram nos meus braços e me puxaram para cima da carroceria. Imediatamente, me virei e ajudei os próximos que vinham chegando a subir também. Foram apenas duas moças e dois rapazes. Dos retardatários eu ouvi só os gritos, estridentes, sofridos, devastadores.

            Quando a camionete voltou a pegar velocidade, agora acelerando pelo asfalto, fechei os olhos com força e me sentei no assoalho da carroceria. Não queria de jeito nenhum olhar na direção da coisa. Não queria ver o que ela fazia com as pessoas que pegava. Achava que não iria resistir a uma visão dessas e a loucura iria me dominar, se  já não estivesse dominando. Mesmo assim, com os olhos fechados e a cabeça abaixada, ouvia o pessoal ao meu lado gritando “Meus Deus! Olha o tamanho daquela coisa!”, “Que horror!” “De onde saiu aquilo?!”.

            Na medida em que o motorista pisava fundo no acelerador, uma discreta sensação de alívio parecia se manifestar. Me recostei na lateral de carroceria e, provavelmente pela exaustão e pela pressão emocional, senti que estava desfalecendo. Antes de perder os sentidos, ainda ouvia frases aleatórias das pessoas ao meu redor. “Não se preocupem. Tem dois galões de gasolina aí do lado.”, “Perdi o meu celular!”, “Será que aquela coisa vai continuar nos seguindo?”, “Onde será que foram parar os meus pais?!”. E então apaguei completamente.

            Acordei suado e com dor de cabeça. Talvez esteja com febre. Já está anoitecendo. Todo mundo ao meu redor está dormindo, menos o velho, que observa a estrada, sério e silencioso. Não faço ideia se estamos rodando desde que apaguei ou se foi feita alguma parada. Agora tenho dúvidas se tudo que eu acho que se passou realmente aconteceu. Pode ser que eu esteja delirando, que seja loucura. Gostaria de acreditar que foi apenas um pesadelo, daqueles tão traumáticos que passam a nos assombrar em noites insones, como fantasmas. Provavelmente seria melhor do que encarar a frágil e enigmática noção daquilo que eu acreditava ser a realidade.   

        Olho ao redor e não reconheço a paisagem. Vejo apenas a mata, que agora me parece sombria e ameaçadora. Não sei para onde vamos, nem o que será de nós quando chegarmos. Pensei em perguntar ao velho se ele sabe onde vai dar essa estrada, mas tenho medo que ele responda que a estrada não leva a lugar nenhum. Talvez aquilo ainda esteja em nosso encalço. Talvez ela nos alcance quando mergulharmos completamente nas trevas da noite. Talvez a coisa já tenha me pegado. Talvez toda essa escuridão que se aproxima esteja dentro da minha mente. Talvez...   

30 de ago. de 2022

O LADRÃO DE GALINHAS

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Enquanto carregava a espingarda com cartuchos retirados de uma pequena caixa de papelão, Sandoval recapitulava a estranha história em sua mente desconfiada. Tinha sido no mês passado que os problemas começaram. O sítio do Claudiomiro foi o primeiro a ter seu galinheiro atacado na calada da noite. Treze galinhas mortas, meio comidas, despedaçadas, com sangue e penas para todo o lado. Ninguém viu nada, mas parecia obra de algum bicho, ainda que não se soubesse qual. Raposa, lobo-guará e leãozinho baio não era. Esses todo mundo já sabia como agiam, e estavam ficando cada vez mais raros. Aquilo lá tinha sido ação de alguma coisa diferente.

            Naquela mesma semana, o galinheiro da fazenda do seu Anacleto também foi atacado de madrugada. Dessa vez mais de vinte galinhas foram feitas em pedaços, algumas devoradas ali mesmo. Os empregados disseram que escutaram o barulho, mas era algo tão horrível que ficaram com medo de ir olhar. Um deles correu pelos fundos da propriedade até a casa grande e acordou o patrão. Mas, até o seu Anacleto – que já está bem idoso – levantar e pegar a espingarda, o bicho tinhoso já tinha ido de volta para o mato, e ninguém conseguiu ver que desgrama era aquela.

            Depois o negócio mudou. Nas três semanas seguintes, outros galinheiros de fazendas dos arredores foram “visitados” altas horas da noite, mas não houve mais matança. As galinhas simplesmente sumiram. Não todas, mas várias. E, por desgraça, ninguém nunca via o desnaturado responsável pela safadeza. Nem sequer os cachorros das propriedades conseguiam intimidar. O povo começou a falar que isso não era coisa de bicho, mas sim de gente, daquele tipo bem sem vergonha. Era um ladrão de galinha, filho de uma égua! Mas, e nas propriedades do Claudiomiro e do seu Anacleto, por que matar as bichinhas ao invés de roubar? Devia ser por sacanagem, vingança de alguém que tinha raiva deles e queria assustar. Talvez algum ex-empregado ou um vizinho invejoso. Então as galinhas não teriam sido meio devoradas como se pensou no início, mas apenas estripadas e mutiladas, provavelmente com uma peixeira. Tinha que ser obra de um patife bem desavergonhado!

            Na realidade, todo mundo dava algum palpite, mas ninguém tinha certeza de nada. Algumas pessoas falavam de um mendigo, um andarilho, ou algo assim, que estava perambulando pelas redondezas há alguns dias. Era comum aparecer gente de fora pedindo emprego nas fazendas, mas aquele só pedia comida e bebida. Já tinha sido posto a correr de várias propriedades por andar espreitando, e se desconfiava que pudesse ser ele quem andava roubando as galinhas da região. Sandoval já tinha visto o sujeito pelas estradas, mais de uma vez. Era velho, sujo, maltrapilho e tinha cara de quem não era nada confiável. Poderia muito bem ser ele o  ladrão safado.

            A inquietação de Sandoval piorou quando, há dois dias atrás, foi dar comida para suas galinhas e percebeu que quatro haviam sumido do galinheiro. Seria a sua vez de ser vítima do larápio? Não iria admitir! Na noite anterior ele tinha bebido alguns copos de vinho a mais, e mesmo que os cachorros tivessem latido, ou se fizesse algum outro barulho, não teria como ouvir por causa do sono profundo. Mas, dali para diante, pretendia se manter muito atento e fazer o que fosse preciso para que o gatuno sem vergonha tivesse o que merecia.

            Naquela tarde, Sandoval foi para a cidade resolver alguns negócios, e, quando voltou, deu de cara com o andarilho dentro de sua propriedade, mais especificamente, na estradinha de terra entre a casa e o galinheiro. “Aí está o larápio desavergonhado!” resmungou ele, saltando da caminhonete sentindo o sangue lhe ferver nas veias. Sem pensar duas vezes, partiu para cima do mendigo e, não lhe dando tempo de dizer qualquer coisa, o atingiu com um soco que o derrubou na estrada poeirenta, para em seguida lhe desferir uma saraivada de violentos pontapés.

            Enquanto o velho maltrapilho gemia, quase se engasgando com o próprio sangue que lhe inundava a boca, Sandoval o arrastou pela gola do casaco imundo e o jogou para fora da porteira do sítio.

            – Suma daqui, seu ladrão vagabundo! – gritou Sandoval, um instante antes de dar meia volta e retornar para o interior de sua propriedade – Se aparecer de novo nas minhas terras, vai levar é chumbo!

            Naquela mesma noite, Sandoval pegou no sono na poltrona da sala. Não havia bebido tanto vinho, então se acordou de supetão quando seu velho cachorro Tufão começou a latir e uma agitação anormal teve início lá pelos lados do galinheiro. Desconfiado, retirou a espingarda do suporte na parede e a lanterna da gaveta da cômoda.

            – Será que mesmo depois de uma surra daquelas o vagabundo teve coragem de voltar aqui para me roubar?! – resmungou sozinho Sandoval, enquanto se dirigia de forma atenta, mas rápida, em direção ao galinheiro.

        Talvez por ter percebido que chamou a atenção, ou simplesmente por já ter pego o que queria, o ladrão não estava mais no galinheiro quando o fazendeiro chegou lá. Porém, o cacarejar das aves roubadas e o som de galhos quebrando fez com que Sandoval apontasse o facho da lanterna na direção da mata, de forma que ele pode ver ao longe – ainda que por um breve momento – o indivíduo que corria entre as árvores levando uma galinha em cada mão.

            Apesar da distância, da escuridão e do rápido momento em que o ladrão foi iluminado pela lanterna, Sandoval não teve dúvidas: era um menino, de doze, ou treze anos, no máximo. Talvez fosse filho daquela gentalha que vivia do outro lado do rio, uns três quilômetros ao sul. De qualquer forma, não adiantava tentar segui-lo e nem ir tomar satisfação no barraco da família. O ideal era pegar no flagrante e, com isso, ter justificativa para lhe aplicar uma boa surra. Era isso que Sandoval pensava. Daria uma surra e tanto no moleque, pelas galinhas roubadas e pelo fato de ele ter batido à toa no mendigo. Não que ele se importasse com um andarilho vagabundo ou estivesse com remorso, mas apenas porque odiava se sentir enganado.

            Era com esses pensamentos em mente – e com a espingarda recém-carregada escorada na poltrona – que Sandoval bebia vinho e aguardava pelo retorno do ladrãozinho salafrário. Sim, porque eles sempre retornam. A tentação de se obter algo sem precisar trabalhar e nem pagar é muito grande. Ainda mais nesse caso, onde Sandoval julgava ser visto como um simples velhote beberrão e solitário, fácil de se passar a perna. Ah, mas aquele moleque safado não perderia por esperar!

            E foi com esse estado de ânimo que o fazendeiro acabou pegando no sono na poltrona, embora não quisesse. Mais tarde, acordou sobressaltado, sem saber por quanto tempo estivera dormindo. O velho relógio de parede marcava que tinham se passado cinco minutos da meia-noite. Lá fora, Tufão latia furiosamente. Sandoval levantou da poltrona e se aproximou da janela a tempo de ver o cachorro correndo na direção do galinheiro. Com toda certeza, o ladrão havia voltado!

            Com a arma em mãos, o fazendeiro abriu a porta e saiu, tentando ser o mais silencioso possível. Dessa vez havia poucas nuvens no céu e a lua cheia se encarregava de iluminar palidamente a paisagem, de forma que a lanterna era dispensável. De repente, um grito terrível ecoou pelo ar, fazendo o sangue de Sandoval lhe gelar nas veias. Foi um berro realmente muito assustador, mas rápido, sendo logo interrompido e substituído por uma espécie de rosnado animalesco e igualmente pavoroso.

            Enquanto ouvia também o barulho das galinhas cacarejando e se debatendo – parecendo apavoradas – Sandoval viu Tufão passar correndo por ele, ganindo desesperadamente. Pela porta entreaberta, ele viu o aterrorizado cachorro entrar na sala e se enfiar debaixo do sofá, como se sua vida dependesse de um bom esconderijo.

           Mesmo sentindo suas mãos tremendo sensivelmente enquanto seguravam a espingarda, Sandoval continuou andando lentamente na direção do galinheiro, mais motivado pela raiva e pela mórbida curiosidade do que propriamente pela coragem. Quando finalmente chegou, viu as galinhas em pânico, se jogando contra as tábuas e os arames, mas também viu algo mais. Era o menino. Mas, ele não estava roubando. Na verdade, não roubaria nada, nunca mais, pois seu corpo estava estirado em meio a uma poça de sangue no gramado, tão terrivelmente mutilado que o fazendeiro teve certeza de que aquilo que o atacou jamais seria um ser humano. Aquilo era coisa do Tinhoso em pessoa!

            Finalmente se deixando dominar pelo mais completo pavor, Sandoval se virou para correr de volta na direção da casa, mas não teve tempo. Algo surgiu das sombras e o agarrou pela parte de trás do pescoço, suspendendo-o no ar e em seguida o arremessando a dois ou três metros de distância. O fazendeiro aterrissou de costas no chão, sentindo, além da dor, o fôlego lhe abandonando. A espingarda havia voado para longe, de modo que a sua única chance seria tentar levantar e correr, mas não seria possível. Aquela coisa enorme e peluda surgiu sobre ele rosnando e o atingiu com um golpe na cabeça, que quase o fez desmaiar.

            Sentindo o sangue escorrer pelo rosto, Sandoval fez menção de tentar se pôr em pé, mas foi mais uma vez brutalmente golpeado. Percebeu então que alguns dentes estavam quebrados. Talvez o maxilar também. Caído no chão úmido pelo orvalho da noite e dominado pela dor, o fazendeiro conseguiu vislumbrar a face hedionda e animalesca da criatura que o encarava cheia de ódio e, em meio àqueles traços monstruosos, teve a impressão de distinguir algo de conhecido, algo que lembrava o rosto do andarilho que ele espancara ali mesmo, naquele local, dois dias antes. Ele queria gritar, de dor e desespero, mas as garras afiadas e bestiais que se cravaram em sua garganta lhe sufocaram a voz, para sempre.  

18 de abr. de 2022

A NOITE DOS ZUMBIS CAIPIRAS

 

A Noite dos Zumbis Caipiras 
Autor: André Bozzetto Jr
Ilustração de capa: Vinícius da Silva (Vinz)
Ilustração de contracapa: Christiano Carstensen Neto
Ilustrações internas: Christiano Carstensen Neto
152 páginas (formato pocket)
Ano: 2022
Uma publicação do selo Relatos Noturnos

Sinopse:

Era para ser um sábado de diversão movido a música, sexo e drogas para um grupo de jovens universitários que decide acampar às margens de uma floresta em uma área distante e isolada na remota zona rural da região Sul. Porém, a chegada do perturbado e violento ex-namorado de uma das garotas e a repentina aparição de uma horda de zumbis famintos por carne humana transforma tudo em uma desesperada e frenética luta pela sobrevivência. Quando o terror irrompe, o velho Bento, profundo conhecedor da região e da realidade local, se torna a única esperança de fuga em meio ao caos.

Uma história com ação ininterrupta, ironia, sangue e tripas, ao melhor estilo dos filmes do gênero da década de 80, mas em um contexto tipicamente brasileiro.

Recomendado para maiores de 16 anos. Contém linguagem obscena, conteúdo sexual, consumo de drogas e violência extrema.
 
Para adquirir o novo livro de André Bozzetto Jr na Amazon, clique AQUI. Ou, se preferir a versão em eBook Kindle pelo preço promocional de apenas R$ 6,66 clique neste outro link AQUI.
 

 Para conhecer a HQ "Sangue e Vinho Tinto", que apresenta a cena inicial do prólogo do livro no traço do ilustrador Christiano Carstensen Neto, clique AQUI.

E por fim, dê Play no vídeo abaixo e assista a live de lançamento do livro no canal Milhas e Milhas, do grande Cássio Witt - "O Mestre do Terror"!



17 de mar. de 2022

SANGUE E VINHO TINTO: A HQ DOS ZUMBIS CAIPIRAS

 


Para fazer download da HQ em alta resolução clique AQUI.


 
Enquanto o livro A Noite dos Zumbis Caipiras estava sendo desenvolvido, o autor André Bozzetto Jr e o ilustrador Christiano Carstensen Neto decidiram se aventurar em outras mídias, mais especificamente no fascinante universo das histórias em quadrinhos, e desenvolveram uma sangrenta versão em preto e branco para a cena inicial do livro, incluída em seu prólogo.
 
A HQ intitulada “Sangue e Vinho Tinto” foi publicada em julho de 2021 na edição de número 72 da clássica Calafrio, uma das mais conceituadas revistas de terror brasileiras de todos os tempos, atualmente sendo editada pela Ink&Blood Comics*. 
 
 A Noite dos Zumbis Caipiras está chegando. Seguem abaixo a capa, contracapa com sinopse e algumas informações gerais.
 

  

A Noite dos Zumbis Caipiras 
Autor: André Bozzetto Jr
Ilustração de capa: Vinícius da Silva (Vinz)
Ilustração de contracapa: Christiano Carstensen Neto
Ilustrações internas: Christiano Carstensen Neto
152 páginas (formato pocket)
Ano: 2022
Uma publicação do selo Relatos Noturnos
Recomendado para maiores de 16 anos. Contém linguagem obscena, conteúdo sexual, consumo de drogas e violência extrema.
 
 
 
* Para adquirir edições da Calafrio e também de outras cultuadas revistas como Mestres do Terror e Terror Negro, é possível entrar em contato diretamente com o editor através do e-mail: revistacalafrio@gmail.com