Por André Bozzetto Junior
Interior de Santa Catarina, julho de 1899
Quando
Manuel chegou às cercanias da rústica residência, ainda faltava mais de duas
horas para o anoitecer, mas as nuvens cinzentas e melancólicas que encobriam o
céu encarregavam-se de conferir à tarde um aspecto lúgubre e sombrio. O exausto
viajante nunca tinha estado por aquelas paragens antes, mas não havia dúvidas
de que estava diante da casa que tanto procurava. Podia sentir o cheiro de
morte à distância.
A
confirmação veio quando Manuel esgueirou-se por entre os arbustos –
aproximando-se sorrateiramente – e avistou com clareza o odiado inimigo.
Daquela distância, o sujeito parecia alguém comum, entretido em afazeres
domésticos cotidianos. Ele entrava e saia de um pequeno galpão de madeira anexo
à parede sul da residência, transportando para dentro de casa o que parecia ser
grandes pedaços de carne engatados em ganchos de metal. O único indício que
chamava a atenção para a sua anômala condição era o fato de que ele trabalhava
completamente nu.
Manuel
retirou a espingarda das costas, conferiu rapidamente a munição e observou
atentamente os arredores, como se procurando por alguma inoportuna testemunha
que por ventura pudesse presenciar o que ele estava por fazer. Não havia nada e
nem ninguém. A casa diante da qual ele se encontrava era o único vestígio de
civilização em um raio de muitos quilômetros onde apenas a mata se destacava.
Receoso
de errar o disparo e com isso alardear o inimigo, Manuel aproximou-se mais
alguns passos, posicionando-se em um pequeno aclive do terreno. Contudo,
constatou que nesse curto trajeto devia ter feito algum ruído delator, pois o
seu alvo largou ao chão o pedaço de carne que trazia nos braços, olhou por
sobre o ombro em sua direção e fez menção de fugir, correndo a oeste da casa.
Porém, o homem nu não teve chance de percorrer mais do que dois ou três metros
antes de ser atingido nas costas pelo tiro proveniente da espingarda de Manuel.
Cambaleante,
o sujeito esbarrou de encontro à parede e gemeu de dor, mas no instante
seguinte se pôs a correr novamente. Manuel, por sua vez, permaneceu no mesmo
local, apenas acompanhando o trajeto do fugitivo com a mira de sua arma. Temia
que sua mão pudesse tremer no instante derradeiro e então seu esforço iria por
água abaixo. Mas naquele momento o destino parecia estar conspirando a seu
favor. Seu dedo apertou o gatilho e o estrondo do tiro ecoou pelo vale
acompanhado do grito de dor da vítima alvejada. Rapidamente, Manuel largou a
espingarda ao chão e correu na direção de seu alvo sacando o revólver da
cintura. Era no tambor desta segunda arma que se encontravam as balas de prata.
Quando
se aproximou do indivíduo que rastejava pelo chão deixando um rastro de sangue
no capinzal detrás de si, Manuel percebeu que ele trazia aquele característico
brilho inumano no olhar. O sujeito também ostentava presas pontiagudas na boca
ensanguentada e a pele do seu rosto e dorso pulsava, como se ele estivesse se
esforçando para invocar de dentro de si o monstro que só tinha condições de
emergir ao raiar da lua cheia.
De
forma decidida e até mesmo eufórica, Manuel apontou o revólver para o peito do
hediondo inimigo e disparou. Um urro que em nada se assemelhava a um lamento
humano ressoou pelos arredores acompanhado de um eco fantasmagórico, que
demorou alguns longos e perturbadores instantes até devolver o silêncio à
paisagem.
Simultaneamente
à tomada de consciência de que a jornada de vingança estava finalmente
concluída, Manuel sentiu também toda a exaustão dos meses de perseguição
aflorando de forma devastadora. A criatura odiosa que desonrou e matou sua
irmã, assassinou seu pai e fez sua mãe mergulhar na melancolia e na paranoia,
estava finalmente a caminho do inferno. Mas ele sentia-se cansado, muito
cansado.
Manuel
sequer cogitou recolher o ensanguentado cadáver do capinzal, e tomou o rumo da
rústica residência. Precisava comer algo, beber tudo que encontrasse pela
frente e dormir por algumas boas horas. Só iniciaria a viagem de volta para
casa no dia seguinte.
Ao
adentrar no galpão que ficava a poucos metros da porta da cozinha, o viajante
vislumbrou com repulsa, mas não necessariamente com surpresa, diversos pedaços
de cadáveres humanos mutilados e pendurados no teto por ganchos de ferro. Havia
também caixas de sal espalhadas pelo chão, constituindo um cenário que lembrava
a produção de charque, ainda que, neste caso, manufaturado de forma bizarra e
grotesca.
Na
cozinha – surpreendentemente limpa e organizada – Manuel encontrou pão, queijo
e salame, e devorou tudo avidamente, empenhando significativo esforço para não
especular a respeito da origem da matéria-prima para a produção do último.
Localizou também vários garrafões de vinho tinto cuidadosamente alinhados ao
lado da pia. Sacou a rolha de um deles e bebeu mais da metade em poucos
minutos. Depois, zanzou pelos diminutos cômodos da simplória residência até
deparar-se com a cama, que lhe pareceu limpa e convidativa. O fatigado viajante
procurou esquecer-se da natureza bestial do ser que ali dormira, e desabou por
sobre as cobertas. Quase que imediatamente mergulhou em um sono pesado e
inebriante.
***
Manuel
nunca saberia precisar por quanto tempo permaneceu adormecido. Tinha
consciência apenas de ter despertado graças a um estrondo oriundo da porta de
entrada do casebre. Sobressaltado, pegou o revólver e dirigiu-se para lá.
Percebeu que a escuridão opressiva da noite já havia expulsado por completo os
tons cinzentos da tarde moribunda. Não tinha ideia do que iria encontrar, mas
certamente jamais imaginou deparar-se com aquela visão diante de si. Era uma
moça. Aparentava ter vinte e poucos anos, possuía cabelos ruivos e
encaracolados que se estendiam em cachos até quase a cintura, e olhos verdes
tão encantadores que pareciam dotados do poder de hipnotizar. Usava um vestido
simplório, mas que delineava com perfeição as suas curvas provocantes.
Estupefato, o viajante teve certeza de que nunca antes em sua vida estivera
diante de mulher tão deslumbrantemente bela.
–
Monstro! Cafajeste! – gritou a moça – Como pudeste matar o Manuel desta forma?!
–
O que tu estás dizendo, mulher?! – retrucou o viajante, confuso e espantado na
mesma medida – Eu sou Manuel! E
aquele que matei é quem era um monstro desgramado!
–
Não. Tu és o monstro. – insistiu a garota, com um tom de voz mais contido –
Quem cuidará de mim agora? Tu cuidarás?
Manuel
não respondeu. A moça aproximou-se – caminhando de forma que pareceu
extremamente sensual aos olhos do viajante – e entrelaçou os braços ao redor de
seu pescoço.
–
Tu cuidarás de mim como ele cuidava? Fará comigo o que ele fazia? – voltou a
inquirir a garota, desta vez sussurrando ao ouvido do viajante.
Mediante
o silêncio de Manuel, a moça beijou os seus lábios de forma lasciva. O viajante
estava atordoado. Tinha quase certeza de que a visitante era na verdade um
monstro como aquele que ele matara durante a tarde. Mas as suas formas eram tão
provocantes, praticamente irresistíveis... O seu beijo era delicioso... E ele
estava há tanto tempo sem uma mulher... Talvez conseguisse aproveitar antes que
a lua cheia raiasse. Ou pudesse ficar com o revólver ao alcance da mão. Ainda
havia uma bala de prata e ele poderia utilizá-la ao menor sinal de perigo.
Não
chegou a decidir-se, ou, se decidiu não lembrava. Quando deu por si estava na
cama, comprazendo-se ao contato excitante do corpo nu da ruiva debaixo do seu.
As horas de luxúria transcorreram como em um delírio, que só cessou quando os
corpos satisfeitos e extenuados entregaram-se ao desfalecimento restaurador.
Manuel
mais uma vez despertou em um sobressalto, ouvindo sons indefinidos vindo de uma
distância próxima. Atordoado, continuava sem saber quanto tempo havia se
passado desde que anoitecera. Percorreu o quarto com o olhar e não encontrou
mais vestígios da ruiva. Além de sua própria respiração ofegante, o único som
que lhe chegava aos ouvidos era uma espécie de tétrica ladainha, um murmúrio
melancólico de vozes que choravam em tom inconsolável e desesperado do lado de
fora da casa.
Curioso
e amedrontado na mesma proporção, o viajante espiou através de uma fresta na
janela do quarto, e a visão surreal da cena que se desenrolava no exterior
espantou-o em tal medida que ele escancarou as rústicas venezianas para
observar melhor. Ao redor do corpo enrijecido do ser que ele matara durante a
tarde, estava posicionado um grupo de sete ou oito mulheres que – postadas de
cócoras ou de joelhos – choravam a perda do amante, acariciando seu corpo
ensanguentado, beijando sua boca intumescida e lambendo suas feridas.
Se
esta visão não fosse por si só suficientemente aterradora, Manuel sentiu ainda
o sangue gelar-lhe nas veias ao reconhecer entre as mulheres a sua própria
irmã, que chorava de forma ainda mais desacorçoada que as demais. Mas como
seria possível?! Ela não havia sido seduzida e depois assassinada por aquele
mesmo sujeito que ali jazia no capim orvalhado?! Não tinha sido sepultada com
as mesmas vestes fúnebres que ostentava naquele momento, enquanto acariciava
luxuriosamente o membro do corpo sem vida?!
Como
se em resposta às indagações internas do irmão, a moça ergueu os olhos e o
encarou de maneira acintosa.
–
Manuel, seu desnaturado! – exclamou a moça – Por que fizeste isso?! Quem será o
nosso macho agora?! Tu serás o nosso macho?!
Semelhante a uma peça previamente ensaiada, todas as demais mulheres do grupo voltaram
suas atenções à janela onde se encontrava o viajante e começaram a entoar em
coro a mesma perturbadora indagação:
–
Tu serás o nosso macho?! Tu serás o nosso macho?! Tu serás o nosso macho?!
Deixando
de lado o cadáver que tanto cultuavam, as mulheres contornaram a casa,
dirigindo-se à porta principal. Manuel não sabia o que fazer. Sequer tinha
certeza de estar realmente acordado. Julgou que poderia estar tendo um pesadelo
ou sendo acometido por um delírio febril, mas em qualquer das possibilidades
ele igualmente se encontrava atônito e pasmo demais para esboçar qualquer
reação coerente. Instintivamente, olhou pela janela uma vez mais e julgou que o
cadáver de seu inimigo se parecia demais com ele próprio. O mesmo cabelo
castanho claro, o mesmo nariz protuberante.
Suas
reflexões desconexas foram interrompidas quando o coro de vozes femininas
passou a ressoar dentro do recinto:
–
Tu serás o nosso macho?! Tu serás o nosso macho?! Tu serás o nosso macho?!
Subitamente,
Manuel viu-se cercado e pressionado a deitar-se no frio assoalho. Mãos e lábios
passaram a percorrer todo o seu corpo, provocando-lhe sensações que iam da
luxúria à repulsa, e faziam sua mente vagar oniricamente por entre flashes que resgatavam imagens
espectrais que iam do sagrado ao profano e culminavam no silêncio e na
escuridão do nada.
***
Quando
voltou a abrir os olhos, Manuel constatou que já era de manhã. Seu corpo nu
estava irregularmente recoberto por uma camada de sangue ressecado que não
parecia ser seu, uma vez que não sentia dor alguma e nenhum ferimento se fazia
evidente.
A
casa estava completamente vazia e nenhum vestígio das mulheres permanecia ali.
Manuel não se sentiu motivado para desenvolver meditações investigativas sobre
a noite anterior. Ele sentia-se muito bem fisicamente e sua única vontade era
voltar para casa. E foi assim que ele desatou-se a correr em direção ao sul, nu
e sujo como havia despertado, sem levar consigo nenhum armamento, água ou
alimentos.
Correu
de forma ininterrupta durante o dia inteiro, com vitalidade e disposição
espetaculares. Saltava troncos e macegas, transpunha riachos e banhados sem
nunca vacilar. Atravessou sozinho quilômetros e quilômetros de mata virgem de
forma extremamente leve, quase idílica, e quando os tons rubros do entardecer
quase não encontravam mais forças para colorir o fim do dia, ele já havia
pulado agilmente por sobre a cerca que delimita a propriedade de sua família.
Podia então caminhar com tranquilidade. Estava em casa.
Contudo,
não tardou para que a escuridão noturna se apossasse furtivamente da paisagem,
trazendo com ela uma sensação de hostilidade febril que passou a fustigar o
coração de Manuel. Ele se encontrava a poucas dezenas de metros da secular
residência familiar, e podia mesmo imaginar a figura da mãe sentada ao lado do
fogão à lenha com a cuia de chimarrão em uma mão e o terço em outra. Teve
vontade de correr até ela e contar que o sujeito infame que havia desgraçado a
paz e a harmonia daquela casa estava morto.
Porém,
este impulso inicial foi rapidamente substituído por outro, muito mais intenso
e perturbador. Tal sensação avassaladora se desencadeou quando os olhos ágeis
de Manuel encontraram a jovem Soninha, que, com um cesto de roupas em mãos, se
dirigia da sanga para a casa dos criados. Ele nunca antes havia destinado
maiores atenções àquela moça rude e simplória, mas naquele momento – em que seu
corpo era invadido por uma sensação de fervor inebriante – sentiu uma vontade
quase que incontrolável de abraçá-la e de beijá-la, mas também de machucá-la e
devorá-la.
Entregando-se
ao tormento que revirava sua mente e sua alma, Manuel desatou-se a correr
desabaladamente na direção da moça. Quando ele a alcançou, sentia que sua
humanidade havia o abandonado, cedendo lugar a uma bestialidade lasciva e feroz.
De maneira brutal, arrastou a criada para o interior da mata e a fez chorar e
gritar enquanto se fartava de sua carne e de seu sangue, tendo apenas a lua
cheia por testemunha.
***
–
O que fizeste, Manuel?! – exclamou a voz chorosa, em tom de desespero – O que
fizeste com a pobre da Soninha?!
A
familiaridade da voz fez com que Manuel despertasse sobressaltado. A
luminosidade matinal fustigou seus olhos e ele demorou alguns segundos para se
situar. Estava deitado na relva que costeava a margem do pequeno córrego que
atravessava a propriedade da família. Seu corpo nu estava imundo, e não havia
dúvidas de que grande parte da crosta ressecada que se aderia a sua pele era
derivada de sangue. Quando finalmente compreendeu o que se passava, fitou
alarmado o melancólico semblante da mãe maculado pelas lágrimas abundantes.
–
Tu és um desgraçado, Manuel! – vociferava a anciã, em meio aos soluços – Ao
invés de matar as lobas tu te deitaste com elas! Agora a coisa ruim está dentro de ti também! Que desgraça, minha Virgem
Maria! Que desgraça!
Manuel
queria dizer algo, qualquer coisa, mas as palavras simplesmente lhe fugiam na
medida em que o seu coração sangrava de remorso.
–
Veja o que fizeste com a pobre Soninha! – exclamava a idosa, apontando para os
restos do cadáver mutilado e parcialmente submerso no córrego – Ah, se o teu
pai estivesse vivo! Iria se despedaçar de tanto desgosto! Que deus tenha
piedade de nós!
Sem
mais acrescentar, a matriarca deu as costas ao filho e partiu em direção a
casa, chorando inconsolavelmente. Incapaz de esboçar qualquer outra reação,
Manuel deitou-se em posição fetal e desatou-se a chorar também, possuído por um
nefasto turbilhão de sentimentos que oscilavam do ódio ao remorso, do medo à
autopiedade. Permaneceu assim, imerso em sentimentos sombrios por um intervalo
de tempo que não saberia precisar, até que teve sua atenção atraída para os
estridentes gritos femininos que vinham da direção da casa. Intrigado, Manuel
levantou-se, ainda que de forma desnorteada, enxugou as lágrimas com a parte
externa das mãos e depois se pôs a caminhar na direção da residência familiar.
Quando
já estava bem próximo, avistou duas criadas postadas diante do estábulo,
olhando para dentro com feições chorosas e decompostas. Ao notar a aproximação
daquele homem de aparência tão bizarra e ameaçadora, a dupla de empregadas
voltou a gritar de forma estridente, e em seguida partiu correndo
desesperadamente em direção ao campo.
Tomado
pela angústia, Manuel adentrou no estábulo e sentiu o sangue gelar-lhe nas
veias ao vislumbrar o corpo da mãe balançando mansamente em uma viga do teto,
suspenso por uma corda atada ao pescoço. Estupefato com a chocante cena de
suicídio tão tetricamente montada diante de seus olhos, ele sentiu a sua mente
já debilitada ceder ao mais genuíno desespero e, desta forma, partiu novamente
em uma desabalada corrida por entre a mata, chorando, gritando e amaldiçoando a
si próprio.
Este
alucinado estado de torpor dominou-o por um tempo indefinível, mantendo-o
alheio à realidade que se passava ao seu redor. Os frangalhos de sua
consciência só começaram a se recompor no instante em que ele parou diante de
um local que lhe era peculiarmente conhecido. Estava novamente em frente ao
isolado casebre onde matara o demoníaco inimigo responsável por transformar sua
vida em um inferno. Estranhamente, naquele momento ele sentiu-se confortável
ali.
Manuel
banhou-se nas águas límpidas da pequena vertente localizada próxima à entrada
da cozinha, depois adentrou na rústica residência e deitou-se na cama que
pertencera ao seu odioso rival. Adormeceu quase que instantaneamente, sendo
arrastado por um sono que era ao mesmo tempo pesado e agitado, povoado por
imagens bizarras, ora idílicas e poéticas, ora profanas e blasfemas, mas que,
de qualquer forma, ele não conseguia ordenar de forma cronológica e nem mesmo
distinguir quais eram lembranças de experiências reais e quais eram meras
ilusões doentias de sua mente transtornada.
***
Quando
voltou a abrir os olhos, Manuel percebeu que era dia, embora não soubesse
precisar se era ainda o mesmo dia no qual chegara até aquele local, ou se era
algum outro dia qualquer. Olhou pela janela e não avistou nenhum vestígio do
cadáver do inimigo abatido. Tampouco havia ao seu redor qualquer indício que
acusasse, ainda que de forma sutil, a existência das espantosas mulheres que o
visitaram em uma noite anterior. Nenhum sinal da ruiva deslumbrante, nem de sua
irmã ou de qualquer outra.
Intrigado,
Manuel dirigiu-se ao galpão externo e surpreendeu-se ao constatar que não havia
mais nenhum cadáver mutilado pendurado em ganchos metálicos. Será que as
mulheres-lobo teriam removido tudo, ou isso sequer havia estado ali algum dia?
Seria possível que os acontecimentos recentes tivessem sido apenas fruto de um
pesadelo delirante? Será que nada daquilo era real? Ao mesmo tempo em que tinha
medo, Manuel queria acreditar que pelo menos algumas partes daquela macabra
tragédia eram verdadeiras. Mas quais partes? A morte vingativa do inimigo que
destruíra sua família? A noite voluptuosa com a ruiva? A orgia com o grupo de
amantes desconsoladas? A selvageria que ele perpetrara com Soninha? O suicídio
da mãe? Ele não sabia. Talvez um pouco de cada uma delas, talvez nenhuma.
Enquanto
zanzava freneticamente de um lado para o outro do casebre, com uma sensação de
angústia beirando os limites daquilo que era humanamente tolerável, Manuel
cogitou uma outra possibilidade: e se ele estivesse delirando ou sendo
acometido por um pesadelo doentio naquele exato momento? Se todo o demais fosse
verdadeiro, com exceção daquele preciso lapso de tempo? E se ele despertasse a
qualquer momento e concluísse que nada daquilo era real? Poderia haver um
pesadelo dentro de outro pesadelo?
Por
absoluta incapacidade de vislumbrar outras alternativas, Manuel continuou
andando em círculos e roendo as unhas no interior da cozinha. Do lado de fora,
a escuridão aproximava-se a passos largos. Tudo o que ele queria era que a
noite chegasse depressa e a lua cheia lhe trouxesse respostas... O brilho
pálido da verdade libertadora, ou o pesado fardo das sombras eternas.