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28 de jan. de 2022

O DIABO NAS TAQUARA

 

 

Por André Bozzetto Junior

 

    Isso daí aconteceu num ano em que fui trabaiá no interior de Ilópolis, a tal de “Terra da Erva-mate”. Tava na época de podá as planta e levar os gáio para moer nas ervateira e fazer a erva para o chimarrão. Como o povo toma muito chimarrão por aquelas banda, tinha bastante serviço e precisavam de gente de fora para trabaiá, como eu. Fiquemo nas terra do véio Luiz, que tinha bastante hectare de ervero pra desgaiá. Quinze dia de serviço puxado.

    No fim de semana, quem morava por perto foi pra casa, mas quem era de longe, quem nem eu, ficou pousando no galpão do véio Luiz. Além de mim, também ficou um outro vivente chamado Toninho. Na sexta-feira, fim da tarde, ele convidô pra ir tomar umas canha na bodega do Bépi, que não ficava muito longe de lá, e depois ir na zona, farreá um pouco com as quenga. Como não tinha nada pra fazê, concordei. O véio Luiz escuitô nossa conversa e disse que não era pra atalhar pelo bambuzal porque lá de noite costumava aparecer o "Diabo nas Taquara”. Eu fiquei meio desconfiado, mas o tal de Toninho disse que era muito macho, que não tinha medo nem de hôme nem de assombração, quem se alguém aparecer para se fresquear ele dá uma tunda de laço e fura o bucho com uma peixeira que ele carrega na cinta. Bancava o machão o vivente.

    Daí fumo na bodega. Os caminho era tudo no meio das roça ou pelo mato e já tava começando escurecer. Fiquei ressabiado, mas não falei nada. O Toninho andava de peito estufado que nem um galo véio. Dizia que se aparecesse mula sem cabeça ou curupira ele dava uma camaçada de pau. Quando comecemo a beber graspa no bodega, ele logo ficou bêbido e começô e encher o saco dos outro, até que deram um tapão na orêia dele e jogaram pra fora. Eu saí também, meio com vergonha e medo de apanhá junto.

    Então fumo pra zona. Já tava tudo escuro, só se enchergava um pouco da estrada por causa da lua. Quando cheguemo numa encruzilhada, o Toninho quis ir pelo bambuzal, porque era mais perto. Eu já tava me cagando de medo, quando me pareceu ter escutado um assobio vindo do meio das taquara. Acho vi um vulto passando lá no meio. Parei, com as canela tremendo que nem vara verde. O Toninho seguiu em frente, disse que se aparecesse alguém ele ia surrá como fez com os cara da bodega e sumiu no meio do bambuzal, me chamando de “cagão”, “veado” e “Maria Bonita”.

    De repente, dos meio das taquara começô uma barulheira dos inferno. Escutava umas gargalhada como se fosse de alguém meio louco da cabeça, com uma voz mais feia que de uma cadela dando cria de atravessado, e os grito desesperado do Toninho, que não parecia ter mais nada de machão naquelas hora. Também começô uns estouro no meio das taquara e uma claridão que parecia de uma fogueira andando de um lado pro outro. E não é que aquilo parecia tá vindo na minha direção?!

    Pulei pra fora da estrada e me escondi detraiz dumas capoira. Até essa hora, já tinha me mijado duas veiz de medo. E daí eu vi. O Toninho vinha correndo pela estrada, com as calça pegando fogo. Ele batia com as mão tentando apagar as labareda, das veiz rolava no chão, mas não adiantava. Então continuou correndo e gritando, com o fogo no rabo. Mas o pior era o que vinha correndo detraiz dele. Digo, “correndo” num tava, porque como um vivente poderia correr cum uma perna só?! Era um rapaizinho moreno, com uma cara feia igual um cão chupando manga e uma toquinha vermeia na cabeça. Numa mão ele tinha uma tocha, e na outra ia balançando a peixeira do Toninho, como se tivesse debochando da cara dele. E não parava com aquelas gargalhada do inferno que me fazia arrepiá até os cabelo da nuca. Eu fechei os zóio de medo, fiquei quieto igual piá cagado e, drento da minha cabeça, rezava pra Virge Maria, Menino Jesuiz de Praga, São Jorge e o Neguinho do Pastoreio me salvar. Jurei que não ia mais ficá bêbido, nem ir na zona e nem olhar mais revista de muié pelada.

    Quando tive corage de abrir os zóio, aquela visage já tinha se sumido e a estrada tava deserta de novo. Corri de volta pra fazenda do véio Luiz, cagado de medo. Quando cheguei na minha cama, me ajoelhei e rezei trinta e dois Pai Nosso e vinte e sete Ave Maria . Depois peguei no sono, de ropa e tudo. Quando acordei de manhã, Toninho não tinha voltado. E nem voltô, nunca mais. Os outro trabalhador diziam que ele tinha ido embora porque era vadio, não gostava de trabaiá no pesado. Eu não contei nada pro povo, só pro véio Luiz eu falei a verdade. Ele suspirô fundo e disse “Eu avisei”. Depois não foi mais tocado no assunto.

    O tempo passô e eu acabei descumprindo as promessa que tinha feito. Todas elas. As veiz eu ainda sonho com o Toninho correndo pela estrada, como fogo detraiz da bunda, e as veiz me parece de escutar ao longe, de madrugada, os assobio e as gargalhada daquilo que vi perseguindo ele.  Por via das dúvida, nunca mais passei perto de nenhum bambuzal de noite. Nunca se sabe.

19 de ago. de 2021

ENTRE A TRAGÉDIA E O PESADELO

 

Por André Bozzetto Junior

 

                Interior de Santa Catarina, julho de 1899

            Quando Manuel chegou às cercanias da rústica residência, ainda faltava mais de duas horas para o anoitecer, mas as nuvens cinzentas e melancólicas que encobriam o céu encarregavam-se de conferir à tarde um aspecto lúgubre e sombrio. O exausto viajante nunca tinha estado por aquelas paragens antes, mas não havia dúvidas de que estava diante da casa que tanto procurava. Podia sentir o cheiro de morte à distância.

            A confirmação veio quando Manuel esgueirou-se por entre os arbustos – aproximando-se sorrateiramente – e avistou com clareza o odiado inimigo. Daquela distância, o sujeito parecia alguém comum, entretido em afazeres domésticos cotidianos. Ele entrava e saia de um pequeno galpão de madeira anexo à parede sul da residência, transportando para dentro de casa o que parecia ser grandes pedaços de carne engatados em ganchos de metal. O único indício que chamava a atenção para a sua anômala condição era o fato de que ele trabalhava completamente nu.

            Manuel retirou a espingarda das costas, conferiu rapidamente a munição e observou atentamente os arredores, como se procurando por alguma inoportuna testemunha que por ventura pudesse presenciar o que ele estava por fazer. Não havia nada e nem ninguém. A casa diante da qual ele se encontrava era o único vestígio de civilização em um raio de muitos quilômetros onde apenas a mata se destacava.

            Receoso de errar o disparo e com isso alardear o inimigo, Manuel aproximou-se mais alguns passos, posicionando-se em um pequeno aclive do terreno. Contudo, constatou que nesse curto trajeto devia ter feito algum ruído delator, pois o seu alvo largou ao chão o pedaço de carne que trazia nos braços, olhou por sobre o ombro em sua direção e fez menção de fugir, correndo a oeste da casa. Porém, o homem nu não teve chance de percorrer mais do que dois ou três metros antes de ser atingido nas costas pelo tiro proveniente da espingarda de Manuel.

            Cambaleante, o sujeito esbarrou de encontro à parede e gemeu de dor, mas no instante seguinte se pôs a correr novamente. Manuel, por sua vez, permaneceu no mesmo local, apenas acompanhando o trajeto do fugitivo com a mira de sua arma. Temia que sua mão pudesse tremer no instante derradeiro e então seu esforço iria por água abaixo. Mas naquele momento o destino parecia estar conspirando a seu favor. Seu dedo apertou o gatilho e o estrondo do tiro ecoou pelo vale acompanhado do grito de dor da vítima alvejada. Rapidamente, Manuel largou a espingarda ao chão e correu na direção de seu alvo sacando o revólver da cintura. Era no tambor desta segunda arma que se encontravam as balas de prata.

            Quando se aproximou do indivíduo que rastejava pelo chão deixando um rastro de sangue no capinzal detrás de si, Manuel percebeu que ele trazia aquele característico brilho inumano no olhar. O sujeito também ostentava presas pontiagudas na boca ensanguentada e a pele do seu rosto e dorso pulsava, como se ele estivesse se esforçando para invocar de dentro de si o monstro que só tinha condições de emergir ao raiar da lua cheia.

            De forma decidida e até mesmo eufórica, Manuel apontou o revólver para o peito do hediondo inimigo e disparou. Um urro que em nada se assemelhava a um lamento humano ressoou pelos arredores acompanhado de um eco fantasmagórico, que demorou alguns longos e perturbadores instantes até devolver o silêncio à paisagem.

            Simultaneamente à tomada de consciência de que a jornada de vingança estava finalmente concluída, Manuel sentiu também toda a exaustão dos meses de perseguição aflorando de forma devastadora. A criatura odiosa que desonrou e matou sua irmã, assassinou seu pai e fez sua mãe mergulhar na melancolia e na paranoia, estava finalmente a caminho do inferno. Mas ele sentia-se cansado, muito cansado.

            Manuel sequer cogitou recolher o ensanguentado cadáver do capinzal, e tomou o rumo da rústica residência. Precisava comer algo, beber tudo que encontrasse pela frente e dormir por algumas boas horas. Só iniciaria a viagem de volta para casa no dia seguinte.

            Ao adentrar no galpão que ficava a poucos metros da porta da cozinha, o viajante vislumbrou com repulsa, mas não necessariamente com surpresa, diversos pedaços de cadáveres humanos mutilados e pendurados no teto por ganchos de ferro. Havia também caixas de sal espalhadas pelo chão, constituindo um cenário que lembrava a produção de charque, ainda que, neste caso, manufaturado de forma bizarra e grotesca.

            Na cozinha – surpreendentemente limpa e organizada – Manuel encontrou pão, queijo e salame, e devorou tudo avidamente, empenhando significativo esforço para não especular a respeito da origem da matéria-prima para a produção do último. Localizou também vários garrafões de vinho tinto cuidadosamente alinhados ao lado da pia. Sacou a rolha de um deles e bebeu mais da metade em poucos minutos. Depois, zanzou pelos diminutos cômodos da simplória residência até deparar-se com a cama, que lhe pareceu limpa e convidativa. O fatigado viajante procurou esquecer-se da natureza bestial do ser que ali dormira, e desabou por sobre as cobertas. Quase que imediatamente mergulhou em um sono pesado e inebriante.

*** 

            Manuel nunca saberia precisar por quanto tempo permaneceu adormecido. Tinha consciência apenas de ter despertado graças a um estrondo oriundo da porta de entrada do casebre. Sobressaltado, pegou o revólver e dirigiu-se para lá. Percebeu que a escuridão opressiva da noite já havia expulsado por completo os tons cinzentos da tarde moribunda. Não tinha ideia do que iria encontrar, mas certamente jamais imaginou deparar-se com aquela visão diante de si. Era uma moça. Aparentava ter vinte e poucos anos, possuía cabelos ruivos e encaracolados que se estendiam em cachos até quase a cintura, e olhos verdes tão encantadores que pareciam dotados do poder de hipnotizar. Usava um vestido simplório, mas que delineava com perfeição as suas curvas provocantes. Estupefato, o viajante teve certeza de que nunca antes em sua vida estivera diante de mulher tão deslumbrantemente bela.

            – Monstro! Cafajeste! – gritou a moça – Como pudeste matar o Manuel desta forma?!

            – O que tu estás dizendo, mulher?! – retrucou o viajante, confuso e espantado na mesma medida – Eu sou Manuel! E aquele que matei é quem era um monstro desgramado!

            – Não. Tu és o monstro. – insistiu a garota, com um tom de voz mais contido – Quem cuidará de mim agora? Tu cuidarás?

            Manuel não respondeu. A moça aproximou-se – caminhando de forma que pareceu extremamente sensual aos olhos do viajante – e entrelaçou os braços ao redor de seu pescoço.

            – Tu cuidarás de mim como ele cuidava? Fará comigo o que ele fazia? – voltou a inquirir a garota, desta vez sussurrando ao ouvido do viajante.

            Mediante o silêncio de Manuel, a moça beijou os seus lábios de forma lasciva. O viajante estava atordoado. Tinha quase certeza de que a visitante era na verdade um monstro como aquele que ele matara durante a tarde. Mas as suas formas eram tão provocantes, praticamente irresistíveis... O seu beijo era delicioso... E ele estava há tanto tempo sem uma mulher... Talvez conseguisse aproveitar antes que a lua cheia raiasse. Ou pudesse ficar com o revólver ao alcance da mão. Ainda havia uma bala de prata e ele poderia utilizá-la ao menor sinal de perigo.

            Não chegou a decidir-se, ou, se decidiu não lembrava. Quando deu por si estava na cama, comprazendo-se ao contato excitante do corpo nu da ruiva debaixo do seu. As horas de luxúria transcorreram como em um delírio, que só cessou quando os corpos satisfeitos e extenuados entregaram-se ao desfalecimento restaurador.

            Manuel mais uma vez despertou em um sobressalto, ouvindo sons indefinidos vindo de uma distância próxima. Atordoado, continuava sem saber quanto tempo havia se passado desde que anoitecera. Percorreu o quarto com o olhar e não encontrou mais vestígios da ruiva. Além de sua própria respiração ofegante, o único som que lhe chegava aos ouvidos era uma espécie de tétrica ladainha, um murmúrio melancólico de vozes que choravam em tom inconsolável e desesperado do lado de fora da casa.

            Curioso e amedrontado na mesma proporção, o viajante espiou através de uma fresta na janela do quarto, e a visão surreal da cena que se desenrolava no exterior espantou-o em tal medida que ele escancarou as rústicas venezianas para observar melhor. Ao redor do corpo enrijecido do ser que ele matara durante a tarde, estava posicionado um grupo de sete ou oito mulheres que – postadas de cócoras ou de joelhos – choravam a perda do amante, acariciando seu corpo ensanguentado, beijando sua boca intumescida e lambendo suas feridas.

            Se esta visão não fosse por si só suficientemente aterradora, Manuel sentiu ainda o sangue gelar-lhe nas veias ao reconhecer entre as mulheres a sua própria irmã, que chorava de forma ainda mais desacorçoada que as demais. Mas como seria possível?! Ela não havia sido seduzida e depois assassinada por aquele mesmo sujeito que ali jazia no capim orvalhado?! Não tinha sido sepultada com as mesmas vestes fúnebres que ostentava naquele momento, enquanto acariciava luxuriosamente o membro do corpo sem vida?!

            Como se em resposta às indagações internas do irmão, a moça ergueu os olhos e o encarou de maneira acintosa.

          – Manuel, seu desnaturado! – exclamou a moça – Por que fizeste isso?! Quem será o nosso macho agora?! Tu serás o nosso macho?!

           Semelhante a uma peça previamente ensaiada, todas as demais mulheres do grupo voltaram suas atenções à janela onde se encontrava o viajante e começaram a entoar em coro a mesma perturbadora indagação:

            – Tu serás o nosso macho?! Tu serás o nosso macho?! Tu serás o nosso macho?!

            Deixando de lado o cadáver que tanto cultuavam, as mulheres contornaram a casa, dirigindo-se à porta principal. Manuel não sabia o que fazer. Sequer tinha certeza de estar realmente acordado. Julgou que poderia estar tendo um pesadelo ou sendo acometido por um delírio febril, mas em qualquer das possibilidades ele igualmente se encontrava atônito e pasmo demais para esboçar qualquer reação coerente. Instintivamente, olhou pela janela uma vez mais e julgou que o cadáver de seu inimigo se parecia demais com ele próprio. O mesmo cabelo castanho claro, o mesmo nariz protuberante.

            Suas reflexões desconexas foram interrompidas quando o coro de vozes femininas passou a ressoar dentro do recinto:

            – Tu serás o nosso macho?! Tu serás o nosso macho?! Tu serás o nosso macho?!

            Subitamente, Manuel viu-se cercado e pressionado a deitar-se no frio assoalho. Mãos e lábios passaram a percorrer todo o seu corpo, provocando-lhe sensações que iam da luxúria à repulsa, e faziam sua mente vagar oniricamente por entre flashes que resgatavam imagens espectrais que iam do sagrado ao profano e culminavam no silêncio e na escuridão do nada.

*** 

            Quando voltou a abrir os olhos, Manuel constatou que já era de manhã. Seu corpo nu estava irregularmente recoberto por uma camada de sangue ressecado que não parecia ser seu, uma vez que não sentia dor alguma e nenhum ferimento se fazia evidente.

            A casa estava completamente vazia e nenhum vestígio das mulheres permanecia ali. Manuel não se sentiu motivado para desenvolver meditações investigativas sobre a noite anterior. Ele sentia-se muito bem fisicamente e sua única vontade era voltar para casa. E foi assim que ele desatou-se a correr em direção ao sul, nu e sujo como havia despertado, sem levar consigo nenhum armamento, água ou alimentos.

            Correu de forma ininterrupta durante o dia inteiro, com vitalidade e disposição espetaculares. Saltava troncos e macegas, transpunha riachos e banhados sem nunca vacilar. Atravessou sozinho quilômetros e quilômetros de mata virgem de forma extremamente leve, quase idílica, e quando os tons rubros do entardecer quase não encontravam mais forças para colorir o fim do dia, ele já havia pulado agilmente por sobre a cerca que delimita a propriedade de sua família. Podia então caminhar com tranquilidade. Estava em casa.

            Contudo, não tardou para que a escuridão noturna se apossasse furtivamente da paisagem, trazendo com ela uma sensação de hostilidade febril que passou a fustigar o coração de Manuel. Ele se encontrava a poucas dezenas de metros da secular residência familiar, e podia mesmo imaginar a figura da mãe sentada ao lado do fogão à lenha com a cuia de chimarrão em uma mão e o terço em outra. Teve vontade de correr até ela e contar que o sujeito infame que havia desgraçado a paz e a harmonia daquela casa estava morto.

            Porém, este impulso inicial foi rapidamente substituído por outro, muito mais intenso e perturbador. Tal sensação avassaladora se desencadeou quando os olhos ágeis de Manuel encontraram a jovem Soninha, que, com um cesto de roupas em mãos, se dirigia da sanga para a casa dos criados. Ele nunca antes havia destinado maiores atenções àquela moça rude e simplória, mas naquele momento – em que seu corpo era invadido por uma sensação de fervor inebriante – sentiu uma vontade quase que incontrolável de abraçá-la e de beijá-la, mas também de machucá-la e devorá-la.

            Entregando-se ao tormento que revirava sua mente e sua alma, Manuel desatou-se a correr desabaladamente na direção da moça. Quando ele a alcançou, sentia que sua humanidade havia o abandonado, cedendo lugar a uma bestialidade lasciva e feroz. De maneira brutal, arrastou a criada para o interior da mata e a fez chorar e gritar enquanto se fartava de sua carne e de seu sangue, tendo apenas a lua cheia por testemunha.

***

              – O que fizeste, Manuel?! – exclamou a voz chorosa, em tom de desespero – O que fizeste com a pobre da Soninha?!

          A familiaridade da voz fez com que Manuel despertasse sobressaltado. A luminosidade matinal fustigou seus olhos e ele demorou alguns segundos para se situar. Estava deitado na relva que costeava a margem do pequeno córrego que atravessava a propriedade da família. Seu corpo nu estava imundo, e não havia dúvidas de que grande parte da crosta ressecada que se aderia a sua pele era derivada de sangue. Quando finalmente compreendeu o que se passava, fitou alarmado o melancólico semblante da mãe maculado pelas lágrimas abundantes.

            – Tu és um desgraçado, Manuel! – vociferava a anciã, em meio aos soluços – Ao invés de matar as lobas tu te deitaste com elas! Agora a coisa ruim está dentro de ti também! Que desgraça, minha Virgem Maria! Que desgraça!

            Manuel queria dizer algo, qualquer coisa, mas as palavras simplesmente lhe fugiam na medida em que o seu coração sangrava de remorso.

            – Veja o que fizeste com a pobre Soninha! – exclamava a idosa, apontando para os restos do cadáver mutilado e parcialmente submerso no córrego – Ah, se o teu pai estivesse vivo! Iria se despedaçar de tanto desgosto! Que deus tenha piedade de nós!

            Sem mais acrescentar, a matriarca deu as costas ao filho e partiu em direção a casa, chorando inconsolavelmente. Incapaz de esboçar qualquer outra reação, Manuel deitou-se em posição fetal e desatou-se a chorar também, possuído por um nefasto turbilhão de sentimentos que oscilavam do ódio ao remorso, do medo à autopiedade. Permaneceu assim, imerso em sentimentos sombrios por um intervalo de tempo que não saberia precisar, até que teve sua atenção atraída para os estridentes gritos femininos que vinham da direção da casa. Intrigado, Manuel levantou-se, ainda que de forma desnorteada, enxugou as lágrimas com a parte externa das mãos e depois se pôs a caminhar na direção da residência familiar.

            Quando já estava bem próximo, avistou duas criadas postadas diante do estábulo, olhando para dentro com feições chorosas e decompostas. Ao notar a aproximação daquele homem de aparência tão bizarra e ameaçadora, a dupla de empregadas voltou a gritar de forma estridente, e em seguida partiu correndo desesperadamente em direção ao campo.

            Tomado pela angústia, Manuel adentrou no estábulo e sentiu o sangue gelar-lhe nas veias ao vislumbrar o corpo da mãe balançando mansamente em uma viga do teto, suspenso por uma corda atada ao pescoço. Estupefato com a chocante cena de suicídio tão tetricamente montada diante de seus olhos, ele sentiu a sua mente já debilitada ceder ao mais genuíno desespero e, desta forma, partiu novamente em uma desabalada corrida por entre a mata, chorando, gritando e amaldiçoando a si próprio.

            Este alucinado estado de torpor dominou-o por um tempo indefinível, mantendo-o alheio à realidade que se passava ao seu redor. Os frangalhos de sua consciência só começaram a se recompor no instante em que ele parou diante de um local que lhe era peculiarmente conhecido. Estava novamente em frente ao isolado casebre onde matara o demoníaco inimigo responsável por transformar sua vida em um inferno. Estranhamente, naquele momento ele sentiu-se confortável ali.

            Manuel banhou-se nas águas límpidas da pequena vertente localizada próxima à entrada da cozinha, depois adentrou na rústica residência e deitou-se na cama que pertencera ao seu odioso rival. Adormeceu quase que instantaneamente, sendo arrastado por um sono que era ao mesmo tempo pesado e agitado, povoado por imagens bizarras, ora idílicas e poéticas, ora profanas e blasfemas, mas que, de qualquer forma, ele não conseguia ordenar de forma cronológica e nem mesmo distinguir quais eram lembranças de experiências reais e quais eram meras ilusões doentias de sua mente transtornada.

***

            Quando voltou a abrir os olhos, Manuel percebeu que era dia, embora não soubesse precisar se era ainda o mesmo dia no qual chegara até aquele local, ou se era algum outro dia qualquer. Olhou pela janela e não avistou nenhum vestígio do cadáver do inimigo abatido. Tampouco havia ao seu redor qualquer indício que acusasse, ainda que de forma sutil, a existência das espantosas mulheres que o visitaram em uma noite anterior. Nenhum sinal da ruiva deslumbrante, nem de sua irmã ou de qualquer outra.

           Intrigado, Manuel dirigiu-se ao galpão externo e surpreendeu-se ao constatar que não havia mais nenhum cadáver mutilado pendurado em ganchos metálicos. Será que as mulheres-lobo teriam removido tudo, ou isso sequer havia estado ali algum dia? Seria possível que os acontecimentos recentes tivessem sido apenas fruto de um pesadelo delirante? Será que nada daquilo era real? Ao mesmo tempo em que tinha medo, Manuel queria acreditar que pelo menos algumas partes daquela macabra tragédia eram verdadeiras. Mas quais partes? A morte vingativa do inimigo que destruíra sua família? A noite voluptuosa com a ruiva? A orgia com o grupo de amantes desconsoladas? A selvageria que ele perpetrara com Soninha? O suicídio da mãe? Ele não sabia. Talvez um pouco de cada uma delas, talvez nenhuma.

            Enquanto zanzava freneticamente de um lado para o outro do casebre, com uma sensação de angústia beirando os limites daquilo que era humanamente tolerável, Manuel cogitou uma outra possibilidade: e se ele estivesse delirando ou sendo acometido por um pesadelo doentio naquele exato momento? Se todo o demais fosse verdadeiro, com exceção daquele preciso lapso de tempo? E se ele despertasse a qualquer momento e concluísse que nada daquilo era real? Poderia haver um pesadelo dentro de outro pesadelo?

            Por absoluta incapacidade de vislumbrar outras alternativas, Manuel continuou andando em círculos e roendo as unhas no interior da cozinha. Do lado de fora, a escuridão aproximava-se a passos largos. Tudo o que ele queria era que a noite chegasse depressa e a lua cheia lhe trouxesse respostas... O brilho pálido da verdade libertadora, ou o pesado fardo das sombras eternas.


31 de mai. de 2021

AVOA, VINGANÇA!

 

 

Por Alan Cassol

 

            Era clara aquela noite na zona rural de Nova Erechim. Clara era a visão das estrelas. Cintilante sorria a Lua sobre a velha casa de telhado laranja. Bom, não posso deixar de lembrar das pegadas deixadas quando eu subia com os calçados embarrados. O telhado era a fuga para um paraíso desconhecido, uma espécie de lar onde eu ainda não sabia, mas procurava encontrá-lo olhando para o horizonte escuro, exceto quando avistava a luz do lampião do velho Ricardo, um vizinho distante, mas à noite tudo parecia perto e audível.       

            Era janeiro. Não era incomum a tv passar filmes da série “Sexta Feira 13” nas noites sábado. E foi numa noite de sábado que assisti Jason Voorhees arrancando uma cabeça com apenas com um soco. Meus dois primos: Cássio e Leandro, os irmãos, viam comigo. Minha avó já estava na cama. Meu tio, com seu palheiro vertendo cinza sobre as almofadas, dormia e acordava como se estivesse em um pesadelo melhor que sua realidade ébria e cancerígena. A garrafa de 51 sempre deitada sobre as pernas.

            Quando senti que nenhum deles daria falta de um menino de 7 anos, porque os olhos dos primos não desgrudavam da TV e o tio só renasceria do pesadelo - ou da vida - na manhã seguinte quando a vó o acordaria com um tapa no joelho para buscar lenha, como acontecia todo domingo. Escalei a pitangueira e saltei para o telhado. O som das corujas me fascinava. Pensava se os animais noturnos não sentiam medo do escuro, mas era o meu medo deles sentirem medo que me preocupava; entendo hoje. Lá em cima estava tudo calmo. Pensava no que seria de mim no futuro. Na verdade, eu queria uma luz que me fizesse seguir para uma estrada de teclas de piano, onde tudo seria música para acalmar os animais noturnos. Cada passo seria um chamado sonoro para uma nova realidade, bem longe de qualquer lugar que trouxesse lembranças de uma breve vida isolada de qualquer sinal de afeto. Mas uma luz apareceu naquela noite de janeiro. A luz do velho Ricardo balançava em um trote que parecia ser em direção ao paiol de sua propriedade.

            Fiquei observando a luz do lampião até ela parar de se mover. Um brilho saia da janela do paiol. Velho Ricardo nunca ia até lá à noite, mas não achei estranho, afinal, por que seria? O que me fez gelar o estômago foi o silêncio dos animais, algo que também nunca acontecia, mas isso sim foi estranho. O mundo se calou no interior da minúscula Nova Erechim. Alguns instantes depois da luz se aquietar perto da janela do paiol, ela começou a piscar, mas foi de um jeito que pareceu ser alguém passando e voltando na frente dela. O mais estranho foi quando ela subiu pro segundo andar do paiol, que cobria metade do espaço, sem que a escada fosse usada, e eu sabia muito bem onde a escada ficava. Não resisti à curiosidade que me dominou como se fosse “aquela” canção que eu tanto procurava. Desci do telhado, dei a volta por trás da casa para ninguém me ver, fui ao porão, peguei o lampião alimentado por querosene e me coloquei no rumo do paiol do Ricardo. E aquele silêncio.

            A poeira da estrada de chão contrastava com a luz do lampião. Naquela época não chovia há mais de 20 dias. A colheita estava comprometida. O banho de rio era resumido em pequenas poças. Nada parecia ser real para mim. A vida era aquela estrada escura e cheia de pedregulhos traiçoeiros, mas havia um agravante naquele momento: barulho de asas batendo sobre a minha cabeça. Aquele som constante me acompanhou até a porteira do rancho do velho Ricardo e parou. Passei o lampião pelo arame farpado e pulei para o lado de dentro me apoiando na estaca de madeira que servia de alicerce para o cercado. A porta do paiol estava escancarada. Fui entrando lentamente e não foi preciso mais que dois passos para avistar o velho Ricardo caído perto da janela lateral, a janela que brilhou para mim.

            Hesitei por uns 2 minutos até que tive coragem de me aproximar. Chamei pelo nome dele. Nada. Chamei de novo: nada. Comecei a suar e pensei em sair correndo, mas desisti da ideia e me agachei ao lado de Ricardo. Os olhos estavam abertos e imóveis. Nenhum sinal de movimento. Peguei na mão dele para tentar levantá-lo, puxá-lo, ou sei lá o que eu queria fazer naquele momento. Constatei: estava diante de um defunto.

            Ricardo perdeu o filho dois anos antes daquele dia. Henrique, de 28 anos, estava voltado de Nova Erechim a pé, a distância era de 3 quilômetros até o rancho de seu pai, e quase 4 da casa de minha vó. Ele foi atropelado, e seu algoz sequer parou para socorrê-lo. Nunca souberam quem o atropelou. Aquilo decretou o fim da vontade de viver do velho Ricardo. Anos antes, de infarto, a esposa partiu da existência terrestre, e o choro foi em dobro por conta de um resultado positivo para câncer de pulmão. Era Ricardo e Henrique, agora, não era mais ninguém.

            Olhando para aquele corpo no chão, me transportei para um mundo onde não havia dor e culpa, porque tudo era silencioso e o ar amaciava os pulmões com um sopro doce e frio. A morte não era novidade para mim. Talvez a minha necessidade de sair daquele lugar era o desejo de reencontrar meus pais me esperando sobre uma plataforma, e, logo depois, me levar para um portal brilhante, adentrando numa atmosfera sem maldade, sem brigas, sem agressão. Uma dúvida pairou e voltei para o paiol. “Como o lampião foi parar no andar de cima?” – pensei. Subi pela escada e lá estava a luz, mas ela não estava sozinha. Uma coruja me fitou. Os olhos dela estavam vermelhos, mas foram voltando à forma normal aos poucos. Com seus olhos amarelos e brilhantes, ela alçou voo e sumiu na noite. Lembro de ter ficado com muito medo, o que me fez tomar o rumo da casa da vó, correndo.

            O silêncio daquela noite permitia ouvir meus batimentos cardíacos. Estava correndo, trotando. “O que vou dizer? Como vou explicar que o Ricardo estava morto? Foi a coruja que levou o lampião para cima?” Meus olhos estavam embaçados pelo suor e lágrimas, eu estava cego, meu lampião ficou para trás. Subitamente, bati em alguma coisa e cai. Sangue escorria do joelho esquerdo. “Bruno, meu pai morreu!” – disse Leandro. “Ele não morreu, seu maldito. Estamos indo à cidade chamar a ambulância” – a voz esperançosa era do Cássio, o mais novo. Ainda estava deitado quando eles disseram para eu correr ajudar a vó, que estava sozinha com meu tio. Os dois sumiram dentro da escuridão. Se para a dor ou para a esperança, nem eles sabiam.

            Cheguei em casa ofegante. Demorei 2 minutos para conseguir falar alguma coisa. Minha vó estava sentada no sofá, segurando a mão do meu tio. Ele estava morto. Leandro estava certo. Ouvi o chirriar da coruja. Fui para fora da casa e a avistei sobre um galho da pitangueira. De novo ela me fitou com os olhos vermelhos. Ela saiu do galho e pousou do meu lado. Caminhou em círculos, olhou mais uma vez, com os olhos amarelados e brilhantes, e sumiu na noite não mais silenciosa. Era possível ouvir o coaxo dos sapos e a água correndo na sanguinha. A vida noturna voltara ao normal, como se a morte fosse o despertador.

            Na manhã seguinte, com a ambulância levando o corpo do meu tio e do velho Ricardo para o necrotério, fui eu quem buscou a lenha para o fogão. Fui eu quem preparou as malas. Fui eu que deixei na memória as faces vermelhas e ensopadas de Leandro e Cássio para até nunca. O beijo na testa de minha avó foi o último adeus. Fui levado para a “casa de crianças órfãs”, de onde saí aos 16 anos para trabalhar em uma fábrica de ração para animais. No trajeto entre a casa da avó e Nova Erechim, tive a companhia dela voando lá longe, mas como se estivesse acompanhando para ter certeza de que eu ficaria bem. “Chegou o dia, estou saindo desse lugar”.

            Anos depois, já adulto, retornei à Nova Erechim para regularizar alguns documentos. É claro que nunca mais vi a coruja, mas aquele olhar nunca saiu de mim. O paiol do velho Ricardo. O lampião flutuando e piscando. Tudo foi um aviso, um chamado. No cartório, que funcionada no mesmo prédio da delegacia, consegui convencer a me deixarem olhar o atestado de óbito do meu tio, do velho Ricardo e, já que estava na mesma sala, por que não o boletim de ocorrência do Henrique.

            Descrevo aqui um pequeno trecho da ocorrência:

 (...) O veiculo perdeu o controle após atropelar a vítima, saiu da estada, derrubou algumas dezenas de pés de milho e esmagou um tronco apodrecido no chão. Nas entranhas do tronco, um ninho de coruja, com dois filhotes já sem vida. Ao lado, uma garrafa de cachaça Pirassununga 51contendo o liquido ainda intacto (...)

            Tudo ficou claro sobre quem havia atropelado Henrique. Mas o que reluto em acreditar, com as faculdades mentais ainda em saudável funcionamento, é se, de fato, a coruja esteve por trás disso tudo. Hipoteticamente pensando, ela foi responsável pelo alivio da dor do velho Ricardo, da justiça contra meu tio e da minha saída daquele lugar. Imagino se foi as vezes que ela me observou no telhado procurando um horizonte, ou se foi só vingança. Quem sabe, foi de uma mãe que perdeu os filhos, para um filho que perdeu os pais. De qualquer maneira, obrigado, velha coruja. Que você também esteja em paz.