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24 de mai. de 2021

O RELATO DE ARLINDO PAVAN

 

Por André Bozzetto Junior

 

 

Bento Gonçalves, 12 de julho de 1902

Prezado Senhor,

            Se minha vontade foi cumprida de acordo com o meu testamento, este manuscrito chegou às suas mãos após a minha morte. Se assim não o for, peço a gentileza para que interrompa a leitura e o desconsidere. Contudo, se minha ordem foi devidamente obedecida, recomendo que leia o texto até o final, pois creio que o relato que faço aqui é de grande importância para esclarecer um misterioso caso ocorrido há dez anos atrás lá pelas bandas da Campina Velha, do qual muita gente ouviu falar, mas que apenas uns poucos sabem da verdade. Lembro-lhe que, embora tenha tido excelentes tutores na infância, não sou um homem das letras, mas apenas um fazendeiro, e escrevo como tal. Seja tolerante, portanto, com o que julgar deficiente em minha redação. Também destaco que não gastarei tinta a papel para tentar convencer-lhe de que aquilo que afirmo aqui é verdade. Prefiro acreditar que a minha reputação é suficiente para lhe assegurar a seriedade com que traço estas linhas.

            Meu envolvimento com essa história iniciou na noite em que os senhores José Colognese e Ademar Pecatti compareceram à minha casa pedindo ajuda. Como deve saber, eles são os proprietárias das fazendas São Luís e Montes Claros, as duas maiores da região da Campina Velha. Contaram-me a assombrosa história do misterioso animal que vinha atacando por aquelas bandas. Segundo as palavras dos assustados senhores, mais de uma dezena de vacas já havia sido morta, além de quatro cavalos e quatro cães. E o pior: três pessoas já tinham sido vitimadas pelo bicho desconhecido, sendo dois capatazes da fazenda Montes Claros e até o senhor Miguel Colognese, pai de José e fundador da fazenda São Luís.

            Ao longo de onze meses, a mortandade de animais continuou, apesar de ocorrerem com intervalos de algumas semanas entre as fases de ataques. Nesse período, vários grupos de caça foram montados, tendo inclusive o senhor Pedro Paulo Escopel, Chefe de Polícia, participado da maioria deles. Nada foi encontrado. Parecia que a fera simplesmente desaparecia durante o dia, e, durante a noite, ninguém se animava a realizar buscas muito além dos limites das propriedades. Embora não admitissem, o medo tomava conta de todos e os impedia de se embrenharem no interior da floresta encoberta pela escuridão.

            Conhecendo a minha fama de hábil caçador, aqueles homens vieram até mim implorando para que eu os ajudasse a dar cabo do animal assassino. Mencionaram as histórias que circulavam pela região sobre as onças que matei e disseram que, se havia alguém capaz de pegar o bicho que tanto os atormentava, esse alguém era eu. Ofereceram-me dinheiro, juntas de boi e potros como recompensa. Sensibilizado, eu disse que iria, muito mais pela vontade de ajudar e pela curiosidade que o dito animal me despertava do que propriamente pelo pagamento. Contudo, apressei-me em dizer não achava possível que uma onça fosse a responsável pelos ataques, pois embora elas costumeiramente possam matar ovelhas e novilhos, não é comum que o façam com cavalos e gente. Nunca vou me esquecer da expressão de medo daqueles homens ao acenarem com suas cabeças, concordando comigo.

            Hospedei-me na fazenda São Luís, na qual chegamos na tarde seguinte, e sugeri que iniciássemos a caçada naquela mesma noite. Porém, o senhor José sugeriu que esperássemos para a noite posterior, onde teríamos lua cheia. Concordei, pois todos sabem que ao luar a visibilidade é muito melhor, a ponto de, por vezes, podermos até dispensar o uso de tochas e lampiões. Apenas no dia seguinte fui entender que o motivo da sugestão era outro. Percebi isso quando o senhor José ofereceu-me um revólver. Analisei-o com curiosidade e constatei espantado que ele estava carregado com balas feitas de prata. Meu anfitrião então explicou que essa arma estava em posse de seu pai na noite em que ele foi morto. Acabou contando-me também que alguns peões afirmavam ter visto um animal enorme e cinzento correndo sobre duas patas pela campina em certas noites em que ocorreram mortes de gado. Todos por ali já tinham ouvido os medonhos uivos da criatura pelas madrugadas e estavam convencidos de que se tratava de um lobisomem. Por isso a tal fera nunca era encontrada durante o dia, por mais que se vasculhasse a região com dezenas de homens e cão farejadores.

            Surpreso, respondi que não acreditava em assombração e coisas do tipo, mas se a ideia lhe agradava, eu levaria a arma comigo. Afinal, percebi que as balas estavam bem calibradas e, se fosse necessário, teriam a mesma serventia de quaisquer outras.

            Quando escureceu nos preparamos para sair e percebi com espanto que apenas José e Ademar me acompanhariam. Segundo eles, os peões estavam muito amedrontados e preferiam ser mandados embora a ter que vir conosco. Resignados, embrenhamo-nos na mata, que, naquela altura, já estava debaixo da luz esbranquiçada da lua cheia. Seguindo a lógica, andamos sempre na direção do rio, mas caminhamos por quase uma hora sem nada encontrar.

            Em certo momento, José anunciou que estávamos nos aproximando do local onde o pai dele havia sido morto, e foi ali que as coisas aconteceram. Antes que os meus companheiros se dessem conta, ouvi o som de folhas sendo pisadas e vi um vulto se movimentando no interior da mata, como se estivesse tentando nos cercar. Adverti aos outros, mas quase que instantaneamente a fera surgiu detrás das árvores e agarrou Ademar, arrastando-o para e escuridão. Eu e José corremos naquela direção, mas bastaram alguns momentos de hesitação, onde não atiramos por receio de ferir nosso companheiro, para que a besta o destroçasse com suas presas e garras afiadas. Era uma criatura horrível, enorme e furiosa como eu jamais vira. Ela largou o corpo despedaçado de Ademar e saltou na direção de José. Apavorado, o pobre homem nem mesmo tentou atirar. Jogou sua espingarda no chão e correu em desespero na direção do rio. Confesso que, diante de visão tão pavorosa, senti vontade de fazer o mesmo.

            Porém, para a sorte de todos, esse momento de fraqueza me dominou por apenas um curto instante. Ergui minha espingarda na direção da fera, que corria à minha direita, e atirei. Disparei quatro vezes e tenho certeza que acertei todos os tiros. A besta rugiu, cambaleou, chegou mesmo a cair, mas logo se levantou com um salto e partiu velozmente para cima de mim. Deus deve ter me iluminado nessa hora, pois fui muito rápido em largar a espingarda e sacar o revólver que trazia na cintura, carregado com as balas de prata que pertenceram ao pai de José. Esperei até a fera chegar bem perto, tão perto que eu pude sentir o seu bafo fedorento em meu rosto, e então atirei. A bala acertou a besta na cabeça, pouco acima do olho esquerdo. Rosnando, ela caiu centímetros ao meu lado, de forma que aproveitei para disparar mais três vezes contra suas costas. Foi então que presenciei a cena mais impressionante da minha vida: o corpo sem vida da besta se transformou em um homem!

            Nesse instante, José já havia ajuntado sua espingarda e se aproximava desconfiadamente. Foi ele quem primeiro reconheceu a fisionomia daquele cadáver corpulento e grisalho. Acredite-me, Senhor, pois eu estava lá e também vi com os meus próprios olhos: era o padre Rômulo! Todos ficaram espantados quando, cerca de um ano antes, o vigário desaparecera sem deixar vestígios ao atravessar a floresta. Depois de meses de buscas incessantes e sem resultados, ele foi finalmente dado como morto. Porém, ali estava o sacerdote aos nossos pés, nu, ensanguentado e dessa vez, realmente sem vida.

            Como esse triste destino foi se abater sobre o padre é algo que nunca ficamos sabendo, da mesma forma que também desconhecemos o local em que ele se escondia durante o dia, de forma a não ser encontrado pelos inúmeros grupos de busca que varreram a floresta durante tanto tempo. De comum acordo, José e eu decidimos enterrar o corpo do vigário ali mesmo, e manter essa pavorosa revelação no mais absoluto segredo. Apenas nós é que deveríamos carregar este terrível fardo.

            Depois daquela noite, as mortes na região da Campina Velha cessaram por completo, embora com o passar dos anos eu tenha ouvido relatos de outras semelhantes em diversas partes do nosso Rio Grande. A ideia de um dia encontrar outra criatura como aquela no meio da mata passou a me assustar de tal forma que abandonei definitivamente minhas atividades de caça, em uma atitude que gerou muita controvérsia e desconfiança entre todos que me conheciam. As pessoas não se conformavam com o fato de que o maior caçador que já haviam conhecido simplesmente passou a odiar a ideia de se embrenhar na floresta novamente, e sempre que o assunto vinha a tona, exigiam algum tipo de explicação de minha parte, algo que me recusei a fazer durante todo esse tempo, mas o faço agora, através deste manuscrito, ao saber que não me restam mais muitos dias de vida.

            Rogo para que dê crédito às minhas palavras e compreenda minha atitude, Prezado Senhor, e, se possível, inclua meu nome em suas orações noturnas. Espero ter, depois de morto, a paz que vem me faltando nesses últimos dez anos de minha vida.

            Que Deus o abençoe!

             Ass: Arlindo Pavan

10 de mai. de 2021

O CREPÚSCULO DE UM ÍDOLO


 

Por André Bozzetto Junior

 

“O mais corajoso dentre nós só raramente tem a coragem de afirmar aquilo que sabe verdadeiramente...” (Nietzsche)

 

            Eu nem me lembro ao certo quantos lobisomens já exterminei ao longo desta jornada. Sei apenas que foram vários... Mais de dez, provavelmente. O primeiro deles foi há muitos anos atrás e tratou-se do desgraçado que assassinou a minha noiva. A sensação de alívio e bem-estar que senti ao mandar aquele monstro nojento para o inferno foi indescritivelmente prazerosa, mas breve, muito breve. A partir de então, tenho me sentido permanentemente impelido a buscar novamente por aquela emoção, como se só ela pudesse aplacar a dor e a revolta que me foi imposta na noite em que presenciei minha adorável companheira sendo destroçada por uma besta licantrópica. Desde aquela época, venho empregado a maior parte do meu tempo e do meu dinheiro em uma permanente caçada a essas odiosas criaturas.

            O último caso a chamar a minha atenção por apresentar claros indícios de atividade licantrópica dizia respeito a uma minúscula e remota comunidade rural localizada no extremo oeste de Santa Catarina. O lugarejo foi notícia há alguns anos atrás quando um “animal misterioso” atacou e matou mais de uma dúzia de pessoas no intervalo de poucos meses e depois simplesmente desapareceu de forma tão súbita quanto surgiu, sem ter sido abatido, capturado ou ao menos devidamente identificado. Desde então, não houve mais relatos de mortes, mas ao longo do tempo várias pessoas foram dadas como desaparecidas depois de terem se aventurado naquela região. Eu já tinha conhecimento de um caso bem parecido ocorrido no interior do Rio Grande do Sul e, analisando a similaridade da situação, estava convencido de que havia um lobisomem aterrorizando aquela localidade.

            Viajando pelo oeste catarinense, deixei para trás a última cidade logo depois do meio-dia e perambulei durante toda a tarde por estradas de terra esburacadas e costeadas apenas por mata, exceção feita a uma ou outra pequena propriedade agrícola de aparência desolada e melancólica que esporadicamente se avistava na margem do caminho. Chamou a minha atenção o fato de que durante todo o trajeto apenas em duas ocasiões avistei pessoas pelos arredores e em ambas as circunstâncias ela pareceram me observar de forma desagradável e até mesmo hostil.

            Quando finalmente cheguei ao núcleo comunitário da vila de agricultores, o entardecer já se pronunciava no horizonte e a decadência daquilo que avistei ganhava assim contornos ainda mais fantasmagóricos, uma vez que nada havia ali além de uma pequena igreja e um galpão que fazia às vezes de bar e salão de festas. Ambas as edificações se encontravam em péssimas condições de conservação. A igreja, particularmente, aparentava tamanho desleixo que passava a impressão de que poderia ruir e desabar a qualquer momento. Nenhuma residência era visível nos arredores, o que me fez entender que os habitantes da região viviam em sítios de localização ainda mais remota e só se reuniam no núcleo comunitário ocasionalmente. Naquele momento em especial, havia apenas três ou quatro homens no interior do bar e, tão logo estacionei meu carro diante do prédio, passaram a me encarar de uma forma que interpretei como sendo um misto de surpresa e desconfiança.

            Ao me aproximar da entrada do recinto, avistei sem dificuldades os profundos sulcos na parte de fora da porta de madeira, que para mim logo indicaram uma evidência da presença de um licantropo na área, uma vez que aquele tipo de arranhão tão singular não poderia ter sido produzido por outra espécie de animal. Do lado de dentro do prédio, quase deixei escapar um sorriso de satisfação quando percebi que o lado interno da porta e as janelas eram reforçados por grossas dobradiças e robustas barras de ferro. De imediato compreendi que aquele local deveria ser utilizado com relativa frequência pelos moradores da região como uma espécie de abrigo coletivo, capaz de protegê-los nas noites de lua cheia de uma evidente ameaça licantrópica. Acreditei assim que a minha intuição havia sido certeira.

            Simulando descontração, me aproximei do balcão, pedi uma cerveja e comecei a interrogar os poucos presentes sobre as cascatas e demais belezas naturais que, graças a uma antiga matéria de uma revista, eu soube que existiam na região. Acrescentei ainda que morava em Florianópolis e que tinha me deslocado até ali a passeio, uma vez que a minha intenção era passar vários dias perambulando pelo oeste do Estado. Com certa relutância, aqueles homens rudes me explicaram – com um sotaque muito carregado – que as tais cascatas ficavam em lugares de difícil acesso e que, obviamente, eu só conseguiria chegar até elas durante o dia.

            Aproveitando a deixa, expliquei que pretendia passar a noite acampado nos arredores e que partiria para o meu passeio ecológico na manhã seguinte. Conforme eu previa, os caras ficaram inquietos ao ouvir a minha ideia e – com perceptível embaraço – acabaram me dizendo que não era seguro pernoitar em um acampamento e sugeriram que eu permanecesse no bar até o fim do expediente e depois ficasse hospedado na casa do morador mais próximo. Prontamente, agradeci pela gentileza e depois evitei levar a conversa adiante. Era noite de lua cheia e eu estava convencido de que, mais cedo ou mais tarde, o assunto do lobisomem inevitavelmente viria à tona e, se tudo corresse conforme o planejado, eu poderia meter uma bala de prata na cabeça do desgraçado e finalmente livraria aquela pobre gente do tormento que os assombrava.

            Pedi algo para comer e me serviram um prato minguado com pão, queijo e salame e ainda assim parecia ser o que de melhor tinham a me oferecer. Sentei em uma mesa próxima da porta e fiquei observando o movimento enquanto comia. Na mesma velocidade em que a noite chegava, mais e mais pessoas apareciam no bar. Invariavelmente, todas olhavam para mim com expressões graves e de certa forma apreensivas. Pensei que estavam simplesmente constrangidas com a minha presença, decerto imaginando que explicações me dariam quando o licantropo começasse a espreitar pelos arredores. Novamente, apenas simulei indiferença.

            Quando terminei de comer, o bar já estava completamente lotado. Devia haver pelo menos umas cinquenta pessoas ali dentro e o clima de tensão que se construiu era tamanho que no interior do recinto ouviam-se apenas murmurinhos, cochichos furtivos entre aquelas pessoas que me observavam de uma forma que já era praticamente acintosa. Aquela incômoda situação passou a me transmitir uma sensação de velada ameaça, mas, infelizmente, quando cogitei me levantar e fazer algo, já era tarde demais. Alguém se aproximou furtivamente pelas minhas costas e desferiu um violento golpe na minha cabeça, fazendo com que eu perdesse os sentidos.

            Não sei quanto tempo fiquei desacordado, mas quando despertei logo percebi que estava deitado na relva, do lado de fora do bar. Constatei prontamente que os meus agressores permaneciam trancados no interior do recinto, me observando através das frestas das janelas. Quase ao mesmo tempo, escutei também um rosnado vindo do interior escuro da mata circundante e então julguei ter compreendido tudo: eu estava desempenhando o papel de uma espécie de oferenda. Cansados de serem infernizados pela besta licantrópica que habitava a região e incapazes de encontrar uma forma eficaz de se livrarem dela, aqueles indivíduos rústicos e ignorantes apelaram para uma solução provisória: para evitar que os membros da comunidade fossem devorados pelo monstro, procuravam saciá-lo, oferecendo a ele banquetes ocasionais constituídos pela carne e pelo sangue de viajantes incautos que tinham a infelicidade de aparecer por ali durante os ciclos da lua cheia. Porém, comigo seria diferente.

            Sem suspeitar de que eu já desconfiava da verdade, os caipiras nem devem ter se dado ao trabalho de me revistar atentamente, pois embora o revólver e a espingarda estivessem no interior do meu carro – que já tinha sido removido dali – eu ainda trazia presa ao tornozelo a pistola calibre 22 devidamente carregada com projéteis de prata.

            Quando os arbustos se dobraram mediante a presença do monstro horrendo que se aproximava rosnando de forma ameaçadora, permaneci encolhido junto ao chão, fingindo estar petrificado pelo pavor. Discretamente, saquei a pistola e, tentando manter a frieza, aguardei pelo momento certo de entrar em ação.

            Acostumado a abater vítimas indefesas e tomadas pelo medo, o lobisomem se aproximou de mim de forma lenta e sem a ferocidade que é característica desse tipo de criatura, como se estivesse convencido de que não seria preciso nenhum esforço para me reduzir a pedaços. Quando ele já estava perto o suficiente para me permitir sentir o fedor nauseante que exalava do seu corpo asqueroso, decidi que hora de agir. De maneira decidida, me levantei com a pistola em punho e a apontei para a cabeça do monstro. Sem pestanejar, disparei três tiros certeiros que perfuraram a face medonha da criatura, fazendo com que ela caísse morta soltando apenas um grunhido que me pareceu muito mais de surpresa do que propriamente de dor. Segundos depois, o que estava caído diante de mim já não era mais um monstro gigantesco e bizarro, mas sim um homem de meia idade de aparência extremamente comum, o que me fez refletir novamente – ainda que apenas por um breve instante – sobre o quanto é perturbador saber que podemos estar diariamente em contato com um lobisomem sem jamais suspeitar que ele possa ser um de nossos vizinhos, o padeiro do bairro ou o bêbado esquisito que avistamos de vez em quando no boteco da esquina.

            Eu ainda estava distraído com esses pensamentos quando ouvi o barulho da porta do bar sendo aberta às minhas costas. Antes mesmo que eu pudesse me virar, um disparo ecoou pela noite e senti meu corpo sendo atirado ao chão com uma dor muito intensa no ombro direito. Surpreendido e debilitado pelo tiro, apaguei novamente.

            Quando despertei pela segunda vez, acreditei que já tinham se passado muitas horas e constatei de imediato que alguma coisa extremamente ruim havia acontecido. Eu me sentia de uma forma como jamais havia me sentido antes e essa sensação era tão indescritível quanto terrivelmente perturbadora. Apavorado, percebi que meu pescoço estava preso por uma corrente incrivelmente grossa e pesada, cuja outra extremidade estava firmemente fixada em um pilar de concreto. Só então me dei conta de que estava no interior da decadente igreja local e que toda a população da comunidade deveria estar ali, me observando com expressões perversas e doentias que eram realçadas pela luz fantasmagórica das tochas e das velas que iluminavam de forma tétrica o ambiente.

            Como se querendo aumentar ainda mais o meu desespero, o dono do bar local se aproximou e apontou o dedo para um ponto específico às minhas costas. Quando me virei, dei de cara com o corpo nu e crucificado do antigo lobisomem suspenso em sua forma humana no alto de uma parede. Percebi que, além dos ferimentos provocados pelos tiros disparados por mim, ele ostentava também um profundo corte na garganta, de onde visivelmente havia escorrido muito sangue. Foi apenas nesse momento que me lembrei do meu próprio ferimento. Como não estava sentindo dor alguma, levei a mão ao ombro e tive a impressão de que a lesão já estava praticamente cicatrizada. Creio ter sido nesse momento que passei acidentalmente a minha outra mão pelo rosto e percebi que ele estava lambuzado por uma grande quantidade de sangue que, aparentemente, não era meu. Depois de alguns instantes de angustiante reflexão, comecei a literalmente chorar de desespero. O enigma tinha sido desvendado.

            – Você matou a nossa divindade! – gritou o bodegueiro, apontando para mim de forma ameaçadora – Pois então agora ficará no lugar dela!

            Sim, uma divindade. Era isso que o lobisomem representava para aquela comunidade miserável e esquecida por todos. Um ídolo pagão e profano que desempenhava a função de manter aqueles indivíduos unidos em torno de um objetivo comum: a realização periódica de assassinatos de teor ritualístico que funcionavam como um culto blasfemo e perverso a algo que eles consideravam extraordinário... Algo que eles temiam e respeitavam na mesma proporção e que, de certa forma, os tornava especiais.

            É evidente que, enquanto eu permaneci desacordado, aqueles desgraçados me fizeram ingerir o sangue do lobisomem abatido. Agora este fluído vital amaldiçoado corre pelas minhas veias e a hedionda energia licantrópica pulsa em meu interior, se apossando a cada segundo de um pedaço maior da minha mente e da minha alma. Sinto que a lua cheia está raiando e com ela o monstro também emergirá das profundezas do meu ser. Estou condenado, para sempre.

            Ao contrário do que eu almejava em minha arrogância e pretenso altruísmo, o ciclo de horror que impera nessa região abandonada por Deus não terminou, mas apenas mudou de nível. Um antigo ídolo tombou, um novo ídolo surgiu, a maldição continua... E o culto também. 


19 de abr. de 2021

OS DESEJOS PROIBIDOS

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Valdemar aproximou-se da borda da muralha e olhou para o lado de fora. Lá embaixo havia uma charrete parada diante do portão. Ele logo reconheceu o homem que segurava as rédeas da condução. Era Juvenal, seu irmão mais velho.

            – Abram essa coisa! Depressa! – esbravejou Juvenal, impaciente.

            Poucos segundos depois, o pesado e rústico portão de cedro foi aberto e a charrete adentrou o enorme pátio cercado da propriedade. De dentro do coche, Helena observava com grande interesse a alta muralha construída com robustas toras de madeira e que formava um círculo em torno do terreno no qual se encontravam a casa grande, a residência dos empregados, o estábulo, o chiqueiro, o galinheiro e o celeiro.

            – Fez tudo que te pedi? Mandou embora as mulheres? – perguntou o ansioso Juvenal, tão logo desceu da charrete.

            – Sim – respondeu Valdemar. – Rodrigo levou a mãe, as irmãs e também as empregadas para a fazenda do Coronel Teodoro. Saíram ao amanhecer, então já devem estar chegando lá.

            – Ótimo! – exclamou o visitante. – E quantos homens ficaram aqui?

            – Além de mim e do José, ficaram mais dois.

            – E os outros peões?

            – Um foi com o Rodrigo levar as mulheres, e os outros dois estão no campo cuidando do gado.

            – A que distância eles estão?

            – A uns dez quilômetros no sentido leste.

            – Quem bom! Acho que, se ficarem lá, não correm perigo.

            Valdemar se aproximou de Juvenal, colocou a mão sobre seu ombro e falou em tom bastante singelo:

            – Meu irmão, sabe que eu te respeito muito... Fiz tudo que me pediu assim que recebi sua mensagem... Mas agora creio que mereço saber o que está acontecendo.

            – Certo, Valdemar, tem razão. Mas antes, será que tu terias um bom vinho para tirar a poeira da garganta do teu velho irmão?

            – Mas é claro! Tenho no porão alguns garrafões que vieram direto de Caxias do Sul! Vamos até a casa grande!

            – Muito bem! Mas antes precisamos acomodar Helena. Ela está no coche.

            – Helena?! Mas por que a trouxe?!

            – Prometo que depois te explicarei tudo... – disse Juvenal, com indisfarçável constrangimento.

            Valdemar consentiu com um aceno de cabeça e em seguida se dirigiu ao rapaz que conversava com os peões perto do portão.

             – José, venha até aqui! Cumprimente seu tio Juvenal e depois leve a sua prima até a cozinha da casa grande. Faça para ela um bom chimarrão e prepare algo para comer.

            O jovem cumprimentou o tio de maneira discreta e respeitosa, seguindo logo depois na direção da charrete para chamar Helena.

            Valdemar ordenou que os peões desatrelassem os cavalos da charrete e levassem-nos ao estábulo. Em seguida, seguiu com Juvenal na direção da casa grande.

            Do lado de fora da grande muralha de madeira, alguém permanecia oculto em meio à vegetação, esperando pacientemente pelo por do sol.

 *

            Cheio de agitação, Juvenal caminhava em círculos defronte a janela da sala de estar, bebericando uma taça de vinho. Valdemar estava sentado diante dele, observando-o com indisfarçável desconfiança.

            – Tudo bem, meu irmão... – disse Juvenal. – Vou te contar tudo, desde o início.

            – Até que enfim, tchê! Estou ansioso para saber que diabo está acontecendo! – exclamou Valdemar.

            – Pois que seja – consentiu Juvenal – Essa barbaridade toda começou a cerca de um mês, naquela semana em que fui caçar com os rapazes. Creio que os peões da minha fazenda estavam entretidos demais com a lida do campo e as empregadas não foram atenciosas como pedi, pois em uma tarde em que Helena estava sozinha no pomar, um vivente apareceu não sei de onde e se aproximou dela. Tu conheces muito bem a Vanda, minha esposa... Sabe que ela não é prendada como se esperaria. Decerto não preveniu direito a guria para casos como este.

            – Meu irmão! Tu estás querendo dizer que... Que esse sujeito desonrou a minha sobrinha?!

            Juvenal estava tão constrangido que sequer conseguia olhar no rosto do irmão. Apenas consentiu com um aceno de cabeça.

            – Jesus Cristo! – exclamou Valdemar, levantando-se da cadeira. – Mas quem é esse vivente que parece não ter medo de ser castrado?!

            – Parece ser um estrangeiro, um italiano que surgiu por aquelas bandas não se sabe a troco de quê – disse Juvenal. – Mas isso não é o pior, meu irmão... Para que tu tenhas ideia da situação, te conto que depois daquela tarde a desgramada da Helena começou a sair às escondidas todas as noites para se encontrar com sujeito no meio do mato. Quando os peões descobriram, arrastaram a guria de volta para casa e preveniram o vivente para que sumisse da região antes que eu voltasse da caçada.

             – Pois deviam ter mandado chumbo nele ali mesmo!

            – Concordo – disse Juvenal, enchendo sua taça de vinho. – Mas o negócio foi ficando cada vez pior. Na manhã seguinte essa mesma dupla de peões que tinha enxotado o estrangeiro apareceu morta na beira do rio. Os dois homens estavam estraçalhados, como se tivessem sido atacados por uma onça. Uma onça gigante, pelo tamanho do estrago. Quando eu e fiquei sabendo do ocorrido, dei uma surra na sem-vergonha da Helena e mantive-a trancada no quarto, dia e noite. Fiquei tão furioso que cobri de bofetadas também a Vanda, pra ver se ela aprendia a ser uma mãe mais atenciosa. Na noite seguinte, o tal sujeito apareceu no gramado diante da minha casa! Quando uma das empregadas me avisou, saí atirando em companhia de um peão e do meu filho Maurício. Acho que não acertamos nenhum tiro, pois antes de desaparecer no meio do mato, ele ainda gritou com aquele sotaque irritante que iríamos nos arrepender muito por impedi-lo de se aproximar da Helena. De lá pra cá ele não foi mais visto, mas outros dois peões apareceram mortos, além de doze cabeças de gado.

            – Mas que barbaridade! – exclamou Valdemar – Tu achas que isso é obra do sujeito? Será que ele também tem alguma coisa com o caso de todas aquelas minhas vacas que foram despedaçadas há meses atrás?

            – Olha, meu irmão... Vou te dizer o que penso... – sussurrou Juvenal, se aproximando de Valdemar. – Aquele vivente não parece um sujeito normal! Quando vi os olhos dele... Pareciam olhos de bicho, não de gente!

            – Eu não entendo o que tu queres dizer!

            – Estou começando a acreditar que o estrangeiro tem parte com o diabo!

            – Parte com o diabo?!

            – Sim! Os antigos diziam que quem fazia pacto com o capeta ficava endemoniado... Meio homem e meio... Outra coisa. Entende porque pedi pra levar embora as mulheres e segurar contigo alguns homens armados?  Acho que o bicho ruim vai aparecer, procurando pela Helena... Então a gente enche ele de chumbo!

            – Mas, meu irmão... Tu acreditas mesmo nisso?

            – Valdemar, pense um pouco! Uma onça poderia ter matado três vacas, ou talvez quatro. Mas somando as minhas e as suas já foram mais de vinte, em poucos meses. E os quatro homens?! Estavam despedaçados, com as tripas espalhadas pelo chão e os ossos das pernas roídos! Uma onça não faz isso!

            – Tu não pensaste em ir até o povoado para falar com o padre Rômulo?

            – Padre Rômulo?! – exclamou Juvenal, com espanto. – Meu irmão, quando foi a última vez que tu foste ao povoado?

            – Bem, foi antes de construirmos a muralha. Acho que faz mais de três meses.

            – Percebe-se! Então, tenho que te dar a infeliz notícia: O padre Rômulo está desaparecido há várias semanas. Sumiu enquanto atravessava a floresta. Estava indo à minha casa, depois que eu lhe enviei uma mensagem dizendo que precisava encontrá-lo com urgência.

            Valdemar permaneceu alguns instantes calado e imóvel, como se pasmado com as informações que recebera. Em seguida, virou-se e tomou o rumo do interior da residência.

            – Aonde tu vais? – perguntou Juvenal.

            – Pegar a minha espingarda! – respondeu Valdemar, sem olhar para trás.

            Juvenal permaneceu na sala, observando através da janela a escuridão da noite se apossando dos últimos resquícios do dia que se esvaia em tons avermelhados. Poucos minutos depois, quase no mesmo instante em que Valdemar retornou trazendo sua espingarda, um dos peões entrou pela porta principal de forma alvoroçada.

            – Coronel Valdemar! Um vivente surgiu de dentro do mato e está plantado lá na frente do portão! – disse o ofegante empregado.

            Valdemar e Juvenal se entreolharam afoitos e saíram em direção ao pátio, seguidos pelo peão. De forma apreensiva, subiram as escadas que levavam até a borda interna da muralha e se posicionaram ao lado do outro empregado que permanecia lá, olhando com desconfiança para fora.

            – É ele! É o desgraçado do qual eu estava falando! – gritou Juvenal, tão logo vislumbrou o homem que se encontrava do lado externo.

            Diante do portão, estava parado um rapaz que em nada se assemelhava aos sujeitos que estavam do outro lado da grande divisória de madeira. Era loiro, tinha olhos azuis e vestia roupas aristocráticas, bem diferentes das tradicionais pilchas e bombachas tão usuais entre os habitantes da região. Também chamava a atenção uma grande cicatriz que ele ostentava no lado esquerdo da face.

            – Coronel Juvenal! De nada adianta o senhor achar que pode esconder Helena de mim... – disse o desconhecido, com um sotaque tão carregado que chegava a dificultar a compreensão de suas palavras. – Nós temos uma ligação muito forte. Deixe-a vir até mim, para o bem de todos que se encontram detrás desta muralha.

            – Mas que vivente mais lacaio! – gritou Valdemar, engatilhando sua espingarda – Além de desonrar a minha sobrinha ainda tem coragem de vir até aqui desafiar o meu irmão e ameaçar a minha gente?!

            Nesse instante, uma súbita gritaria fez com que as atenções se voltassem para o pátio interno da propriedade. Era Helena que corria na direção do portão, sendo perseguida pelo atrapalhado José, que tentava contê-la.

            – Ângelo! Ângelo, meu amor! – exclamava a moça. – Abram esse portão e me deixem sair!

            Do lado de fora da muralha, o rapaz começou a rir de forma provocativa tão logo ouviu a voz da moça chamando pelo seu nome. Possuído pelo ódio, Valdemar não hesitou, apontou sua espingarda na direção do indesejado visitante e atirou. A bala atingiu Ângelo no ventre, fazendo-o gritar e curvar-se levando as mãos ao ferimento, de onde já começava a verter o sangue que manchava de vermelho a sua camisa branca. Cambaleante, ele correu da forma mais rápida que pode para dentro da mata.

            – Coronel Valdemar! Deixe-nos ir atrás daquele verme! – exclamou um dos peões.

            – Sim, vão! – ordenou o patrão. – E de preferência tragam o sujeito vivo para que a gente possa castrá-lo antes de cortar a sua garganta! Ele vai ver o que acontece com quem se mete com as mulheres da nossa família!

            Com rapidez, os dois empregados desceram as escadas, abriram o pesado portão e saíram empunhando suas armas no encalço do fugitivo. Segundos depois já haviam desaparecido em meio à escuridão da mata.

            A dupla de irmãos dirigiu-se então até Helena, que naquele momento chorava de forma estridente, sendo amparada por José.

            – Sua rapariga desgramada! – gritou Juvenal, atingindo a filha com uma forte bofetada no rosto. – Será que nunca mais vai parar de me fazer passar vergonha?!

            Com a violência do golpe, a moça caiu ao chão levando as mãos ao rosto e chorando de forma ainda mais desesperada.

            – José, pegue a sua prima e leve-a para quarto de visitas. Confira se as janelas estão bem trancadas e passe a chave na porta! – ordenou Valdemar.

            O rapaz obedeceu a ordem do pai de imediato, ajudando Helena a se levantar e conduzindo-a para o interior da casa grande. Juvenal observava a cena sem conseguir disfarçar o grande constrangimento que o afligia.

            – Fique tranquilo, meu irmão! – disse Valdemar, colocando a mão sobre o ombro de Juvenal. – A Helena é teimosa feita uma égua xucra, mas logo a gente a amansa. E quanto ao estrangeiro, pode ter certeza que ele é um homem comum, igual a nós! Com uma bala no bucho ele não vai longe. Logo os peões vão voltar trazendo ele de arrasto e então veremos o quão macho ele é com um facão no meio dos bagos!

            – Ainda não estou convencido disso. – murmurou Juvenal, observando o clarão da lua cheia que começava a raiar por detrás das colinas conferindo um tom suave e prateado à paisagem dos pampas.

 *

            No interior da casa grande, José já havia acomodado Helena no quarto de visitas e conferido as janelas. Estava prestes a sair e chavear a porta por fora, conforme a orientação do pai, quando a moça – que até então permanecera calada e cabisbaixa – apressou-se em sua direção.

            – Primo José, posso te fazer uma pergunta? – indagou Helena, em um tom de voz suave e delicado.

            – Claro, prima. O que é? – disse o rapaz, de forma encabulada.

            Helena deu mais dois passos na direção de José, encarando-o de forma ostensiva e posicionou seu rosto a poucos centímetros do dele.

            – Tu já andas te iniciando com as empregadas?

            O rapaz enrubesceu com a pergunta da prima. Sentiu-se muito constrangido com sua ousadia e petulância ao tocar em um assunto como aquele de forma tão direta. Mas, ao mesmo tempo sentiu-se também invadido por uma grande excitação. Desde que Helena chegara ele tinha reparado em como ela havia se tornado uma moça extremamente sensual, onde os olhos verdes e os longos cabelos castanhos conferiam um realce todo especial à sua beleza. Naquele momento, José estava convencido de que homem algum ficaria imune aos seus encantos, e com ele não seria diferente.

            – O que é isso, prima?! Deixe de fazer pergunta besta! – exclamou José, tentando em vão não deixar transparecer o quanto estava encabulado.

            De forma brusca, Helena apoiou sua mão esquerda no peito do rapaz, empurrando-o contra a parede, ao mesmo tempo em que introduzia a mão direita entre as suas pernas. Em seguida, a moça encostou seus lábios de forma lasciva na orelha do aparvalhado primo e sussurrou:

            – Ah, José, tu não queres fazer da tua prima a tua mulherzinha...?

            O contato da pele macia e o perfume adocicado dos cabelos da moça contribuíram de forma decisiva para romper a resistência do desconcertado rapaz. No instante seguinte os dois já estavam sobre a cama, compartilhando da tarefa de arrancar o vestido o mais rapidamente possível do corpo de Helena.

 *

            Próximos ao portão, Valdemar e Juvenal fumavam e caminhavam em círculos, de forma impaciente e apreensiva.

            – Não entendo porque estão demorando tanto! – exclamou Valdemar. – ferido do jeito que estava, aquele peralta não poderia ter ido muito longe!

            – Eu te disse, meu irmão! – retrucou Juvenal. – O sujeito não é normal!

            Como se endossando esta última afirmação, naquele exato instante uma série de gritos angustiantes começou a ressoar do lado de fora da muralha.

            – Coronel Valdemar! Coronel Valdemar, abra o portão, pelo amor de Deus! – suplicava a voz vinda de fora.

            Sem perder tempo, os irmãos abriram o robusto portão e vislumbraram diante de si a terrificante visão de um dos peões que se aproximava rastejando, repleto de lacerações, coberto de sangue e sem parte da perna direita, que havia sido mutilada na altura do joelho. Faltavam-lhe também alguns dedos de ambas as mãos.

            – Aquele gringo é o tinhoso, Coronel! É o tinhoso! – exclamava o homem, com as últimas forças que lhe restavam – Se o senhor visse o que ele fez com o Arlindo...! Que Deus os proteja, porque ele está vindo...! Ele está...

            Incapaz de resistir por mais tempo, o peão exalou seu último sopro de vida e calou-se para sempre. Apavorados, os irmãos entreolharam-se por uma fração de segundos e correram para o lado interno da muralha. Estavam tão apressados e concentrados em trancar o portão que sequer se preocuparam em arrastar o corpo do empregado para dentro.

 *

            No interior da casa grande, o quarto de hóspedes fervilhava de desejos e luxúria. Com seu corpo quente e suado colado ao de José, Helena não cessava de falar-lhe ao ouvido todas as excitantes idéias que lhe vinham à mente:

            – Primo... Tu vais fazer comigo tudo aquilo que o Ângelo faz? Tu vais, primo...?

            José não se preocupava em responder, pois estava imerso em um turbilhão de sensações tão intensas que inebriavam quase que por completo sua racionalidade. Porém, ele teve a vaga impressão de ter percebido algo diferente no tom de voz da prima. Algo inquietantemente diferente.

            – Tu vais me morder, primo? Vais me morder do jeito que o Ângelo me morde...?

            Essa última frase soou tão grave e áspera aos ouvidos de José que ele chegou a ter um sobressalto. Abriu os olhos e, de forma impulsiva, segurou Helena pelos ombros e afastou-a do seu corpo. Foi somente nesse momento que ele prestou atenção nas cicatrizes de mordidas que ela possuía na base do pescoço, no seio esquerdo, na barriga e na parte interna das coxas. Mas isso ainda não era o mais assustador. Sob a tênue luz do luar que entrava através dos vidros da janela, o perplexo rapaz viu a prima se converter em algo inumano e horrendo, que em nada se assemelhava com a moça sedutora e deslumbrante com quem ele havia se deitado alguns minutos antes.

            O monstro que antes fora Helena saiu de cima da cama, que começava a ceder sob o seu peso, e emitiu um urro ameaçador na direção de José. Naquele momento o rapaz já estava com lágrimas nos olhos e, mesmo estando nu, se precipitou para o corredor na intenção de chegar até o seu próprio quarto, onde costumava deixar uma de suas armas. Porém, não conseguiu dar mais do que três ou quatro passos antes que o lobisomem o alcançasse e dilacerasse sua garganta com uma única e vigorosa mordida, que fez com que seu sangue espirrasse de encontro às paredes e manchasse de vermelho os antigos retratos de família que ali se encontravam emoldurados.

 *

            Do lado de fora da casa grande, Juvenal e Valdemar não ouviram nem os urros do monstro e nem o grito de agonia de José, pois estavam entretidos demais com os barulhos não menos sinistros que vinham do outro lado do portão.

            – Virgem Santíssima! Aquela coisa já está ali fora! – exclamou Juvenal, cheio de horror.

            – Seja lá o que for, pelos barulhos deve estar comendo o corpo do peão! – assentiu Valdemar, igualmente terrificado.

            – Precisamos de mais armas! Rápido, tchê!

            – Sim! Vamos até a casa grande chamar o José e pegar uma espingarda pra ti também!

            Os dois homens correram na direção da casa principal. Quando estavam a pouco mais de dois metros de seu objetivo, a porta da frente da residência veio abaixo e através dela surgiu o lobisomem. Os irmãos ficaram pasmos e sem ação diante da terrificante visão.

            – Cristo! O que é isso?! Como é possível?! – exclamou Valdemar, um segundo antes de o monstro atingi-lo com uma patada que lhe arrancou a espingarda das mãos e em seguida com outra tão violenta que dilacerou seu rosto de tal forma que os ossos da face ficaram descarnados e expostos.

            Ao vislumbrar o corpo do irmão tombar sem vida, Juvenal ansiou sair correndo, mas não passou disso, um inútil anseio. O lobisomem agarrou-o pelo pescoço, suspendendo-o no ar e depois o arremessou à distância, fazendo-o estatelar-se no chão. Antes que o atordoado homem pudesse se levantar, a besta fechou suas garras poderosas em torno do seu tornozelo direito e saiu arrastando-o na direção do portão da propriedade que, naquele instante, já começava a ceder sob as pancadas da criatura que o golpeava com violência pelo lado de fora.

            Sem largar a perna de Juvenal, que gritava em desespero, o lobisomem que o segurava ajudou a atacar o portão, de forma que dentro de poucos instantes a robusta estrutura não resistiu às avarias e tombou sob o impacto dos golpes. O luar iluminou então o tétrico momento em que os dois monstros ficaram frente a frente, entreolharam-se com afeição e depois voltaram suas atenções para o apavorado homem que ali se encontrava, a mercê de sua fúria voraz.

            A partir de então as bucólicas paisagens noturnas dos pampas gaúchos foram invadidas por uma bizarra e intensa sinfonia de gritos e uivos que ecoaram para além das árvores seculares e campos de pastos verdejantes, chegaram até as propriedades vizinhas e ajudaram a alimentar os boatos sobre pessoas que se transformavam em lobisomens e vagavam por entre as sombras atacando incautos nas noites de lua cheia.

 

* Conto publicado originalmente no livro Amor Lobo - Crônicas de Amor, Sangue e Lobisomens, de 2013.