16 de ago. de 2022

A LENDA


 

Por Maria Ferreira Dutra

 

            Meu dia foi bem cansativo, mas produtivo, consegui terminar dois trabalhos. Já estou com outros na cabeça e entre essa noite e amanhã consigo terminar. Preciso me alongar, horas nessa cadeira velha e desconfortável acaba com as minhas costas. Que horas são!? 20h:31m. Vou tomar um banho e fazer um café. Morar só tem as suas vantagens, faço o meu tempo. Almoço, janto, acordo ou durmo a hora que eu quiser. Nada melhor que tomar um banho gostoso. 

            Caramba! O registro  do chuveiro está difícil de rodar! Apertei demais no último banho por conta do pinga, pinga. Ufa! Consegui abrir! Que coisa boa é sentir a água caindo em meu corpo e o cheiro do sabonete maracujá e capim-limão me trás  boas recordações. E a sete anos  desde que meu amor se foi, nunca troquei a fragrância.

            Durante os doze anos que vivemos juntos. Não tivemos filho. Não foi uma escolha nossa. O destino quis assim. Mas superamos isso e vivemos felizes até que um glioma  astrocitomas foi detectado em seu cérebro levando a minha felicidade embora definitivamente.

            Esses quase dez minutos de banho me fizeram super bem. Adoro camisetas brancas e shorts largos  para passar a noite, sempre que saio do banho, me visto com o corpo ainda molhado, pois me dá uma sensação refrescante por um bom tempo. Não acredito! Depois de tomar banho e me arrumar me deu vontade de evacuar. Que desgraça de papel vagabundo! Rasgou e sujei a minha mão. Preciso trocar essa toalha de mão, está bem encharcada!  Vou para a cozinha preparar o meu lanche. Um copo de água na cafeteira elétrica, duas fatias de pão de forma, dois ovos mexidos, isso é o suficiente para me alimentar.   

            – O que foi Paçoca?  Por que está me olhando com essa cara? Está com fome? Eu não coloquei a sua ração!?  Pare de gemer assim. Me solta, me solta! O que está acontecendo com você?  Para de latir! Você está no cio ou quer  fazer as suas necessidades? Pronto! Saia, saia! Eu já abri a porta! Para de me puxar para fora seu cachorro doido! 

            Eu nunca gostei de cachorro dentro de casa mas meu coração o acostumou assim e desde que ele se foi, eu sempre o mantive dentro de casa, não quis mudar nada, queria a sua presença em tudo, nada foi mudado. Esse cachorro acuado, não sai do meu pé, está com medo do quê? Pediu para sair e não saiu, está colado em mim.

            Bem agora que estou  com o  estômago forrado vou voltar a escrever mais um capítulo da minha história.  Onde parei? Ah Lembrei. O momento em que eu volto do meu café da noite. Então arrasto a cadeira me sento a mesa e olho pela janela, não era noite de lua cheia, mas na historia que escrevia, coloquei que era: "E a lua cheia aparecia no céu, mas logo fora escondida por uma  neblina formando uma cortina de  fumaça."

            Mas o que é é isso? Meu escritório, sumiu! Onde estou!? Na floresta!?  Que barulhos são esses! Paçoca, fique perto de mim.  Tudo que eu imaginava escrever,  estava saindo do computador e de forma descontrolada. Era tanto barulho de pássaros noturnos e pisadas que me causava medo uma verdadeira floresta sombria.

            A névoa se dissipou mostrando a lua que muito pouco conseguiu clarear o espaço. Me levantei da cadeira e tentei correr, mas fiquei sem ação ao ver um vulto laranja avermelhado.  Não consegui ver direito o que era  e minutos depois escutei o gemido muito forte e uns "creecccs, creecccs".  Parecia um dinossauro faminto estraçalhando e quebrando os ossos da sua presa. 

            Meu coração batia acelerado e eu tentava controlar a respiração quando senti algo bater em meus pés. Gelei! Abaixei a cabeça e fui abrindo os olhos vagarosamente. E  bem ali. Diante dos meus olhos. Vi caído a metade do meu cachorro e  o sangue escorrendo pelo chão. Com os olhos cheio d'água, joelhos, mãos e boca trêmulas, fui escorregando até sentar no assoalho.

            Vi pegadas no chão, parecia de um quadrúpede ou de um bípede. A minha vida toda escrevi sobre vampiros, monstros, extraterrestres, mas isso tudo eu sempre soube que era ficção. Mas agora, diante dos meus olhos, vejo essa criatura saindo do meu computador. E meu escritório se transformando em uma floresta sombria.

            Meus olhos estavam arregalados. O coração saltando pela boca. As minhas mãos grudadas na parede tentando de alguma forma me agarrar a algo. A névoa voltou a tornar escuridão total. Eu não conseguia ver um palmo na minha frente, mas consegui senti a sua forte  respiração que fedia a carne podre. Escutei um barulho de água caindo  e um cheiro muito forte que lembrava maconha. Entrava pelas minhas narinas, pensei que diabo é isso meu Deus! Um demônio que fuma!

            Seus passos foram se distanciando, tudo ficou em silêncio. Com o corpo arquivado  paulatinamente fui me levantando. Dei uns dez passos. Senti que havia pisado em algo molhado. Escorreguei e bati com o braço na luminária da mesa deixando-a cair. O barulho chamou a atenção  daquela coisa que, a largos passos, corria em direção ao barulho, eu escutava o estalar dos galhos e folhas secas sendo pisadas. Seu rosnado ecoava. E aquele barulho de água caindo que eu havia escutado, era a criatura marcando território. Me intrigava o cheiro da maconha em sua urina. Que tipo de criatura estaria em minha casa!?

            Senti um bafo próximo ao meu rosto e vi aqueles olhos cor de mel alaranjados brilhando como fogo e aqueles dentes pontiagudos diante de mim. Fechei os olhos a espera do meu fim, pois sabia que não tinha como escapar.  E sem dó, ela enfiou as suas presas em meu pescoço. Cheirou meu corpo é me possuiu. E foi através da sua mordida que me tornei essa terrível criatura e hoje tenho que me esconder para não morrer nas mãos dos malditos humanos.

            Na última noite de lua cheia sai para caçar e acabei virando a caça. Uma multidão começou atirar em mim e uma bala atingiu o meu peito. Cai no chão voltando a minha forma humana. Ouvi gritos de vitórias onde diziam  que conseguiram matar a criatura. Eu ali gemendo de dor e um silêncio tomou conta do local. As pessoas vão se aproximando com olhar surpreso e mão na boca, cochichavam entre elas.   

            Ouvi o barulho da ambulância chegando. Os paramédicos furam a multidão e me colocam dentro da ambulância  liga a sirene e saem em alta velocidade. Algumas horas mais tarde a ambulância foi encontrada na estrada e toda a equipe estava morta , com grave ferimentos pelo corpo. Rastro de sangue levava a polícia para dentro da mata, onde foi encontrado o corpo do  motorista que foi encontrado sem a cabeça e o braço esquerdo a uns 200m dos outros corpos. Eles não me encontraram, mas deixei uma mensagem vermelha na lataria da ambulância dizendo: "Eu sou a lenda Guará." A loba mais procurada.

 

Ilustração: Maria Ferreira Dutra
Edição de Imagem: André Bozzetto Jr

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