3 de jan. de 2021

PERIGOSA ILUSÃO

 

 Por Giulia Moon

            Maya despertou com um sussurro nos seus ouvidos. Era música. China Roses de Enya, uma das suas favoritas. Ficou ouvindo a melodia durante alguns minutos, sem abrir os olhos vermelhos. Esticou-se sob as cobertas como uma gata preguiçosa e deslizou do caixão, arrastando consigo os lençóis, que foram sendo esquecidos pelo caminho, descobrindo o seu corpo nu. Gostava de andar assim, sem nada sobre a pele fria, os cabelos negros soltos, a alma livre.

            Como desconfiava, o sol há muito se pusera sob o horizonte de Manhattan, visível pela sacada do apartamento de cobertura na 72th Street. Era engraçado imaginar a metrópole imensa, repleta de seres vivos alheios à sua existência, ignorantes da sua fome. Fome... sim, era esta a razão do caminhar dos vampiros pela noite: a saciedade da fome, indistinguível da satisfação de outros apetites, também intensos e excitantes...

            Voltou-se para o interior da sua sala de estar, onde a música ainda soava, suave. Farejou o ar. Rosas vermelhas, frescas e cheirosas. Sinais da presença de Stephen. Sorriu. Imaginou as mãos finas do mordomo ajeitando as flores no vaso. Um espinho fortuito rasgando-lhe a pele macia e drenando umas gotas do sangue quente, apetitoso... Huuuum... O pensamento a fez salivar. Ah, Stephen... Não aprovava a ausência prolongada do seu mordomo humano. Foram apenas alguns dias de folga, mas o suficiente para que ela ficasse bastante aborrecida. Nesse instante, ouviu leves passos atrás de si. Era ele, o seu Stephen...

            – Boa noite, ma'am. Sinto muito por não tê-la acordado, eu estava fazendo um rápido curativo no meu dedo.

            – Espinho de... rosa? – disse ela com o olhar fixo no local do machucado.

            – Oh, isso mesmo... Como soube?

            – Intuição de vampira, dear.

            Maya o observava, enquanto vestia o robe de seda que o mordomo lhe estendia. Como sempre, ele trajava um terno preto discreto e sem graça, mas com um caimento impecável graças ao corpo rijo e sem gordura. Os cabelos finos eram castanho-claros, quase louros, e prenunciavam uma futura calvície com duas entradas acentuadas na testa. Os olhos acinzentados tinham o seu charme, porém o rosto, apesar de ser bem proporcionado, mantinha-se quase sempre inexpressivo, o que deixava a vampira exasperada. Havia no ar um levíssimo odor de tabaco de cachimbo, que o mordomo costumava fumar todas as noites antes de se deitar. Sim, ela o espiava nessas horas. Maya era uma menina má.

            – Você deveria ter voltado ontem – ela disse com frieza – o que houve?

            – As passagens se esgotaram antes do previsto e só consegui pegar o trem desta manhã. Sinto muito, ma'am. Foi apenas uma noite de atraso...

            Os olhos de Maya afinaram-se, devagar.

            – Muitas coisas podem mudar numa noite, dear... Você nem imagina o quanto.

            Stephen a fitou por um instante. Como a vampira ficou em silêncio, ele disse:

            – Gostaria de tomar o seu banho agora?

            – Um banho? Ah, sim... pode preparar.

            Maya observava, distraída, as próprias mãos. Havia sangue sob as unhas. Restos rubros também nos braços, no ventre... E nos lençóis de seda onde dormira na noite passada.

            – Muito bem, ma'am – respondeu o mordomo. – Não levará mais do que alguns minutos.

            Maya viu-o caminhar para o quarto de banho. Sabia o que ele iria encontrar: algum sangue no chão e na banheira. E o cadáver de um anônimo corretor da Bolsa de Valores, que ela apanhara ontem em Greenwich Village. Como se chamava mesmo o lugar? Ah, sim, Borgia Cafe, um nome muito inspirador.

            – Ahn...

            – Sim, Stephen?

            Ela mesma confundira o tal corretor com Stephen no início, pois a semelhança era incrível. O mesmo corpo, os mesmos cabelos finos e castanhos com entradas na testa, o mesmo tom claro da pele macia, os mesmos olhos acinzentados... Espantosa coincidência, numa noite em que ela estava mal-humorada como nunca.

            – Acho que demorarei mais do que previa para preparar o seu banho, ma’am. O banheiro está ... um pouco cheio.

            – Está bem, Stephen.

            Uma american girl loira e risonha acompanhava o corretor nova-iorquino, ontem à noite. No problems. Nada que uma badgirl experiente de olhos vermelhos não pudesse resolver. Foi o que fez. Arrancou o sorriso daquele rostinho de comercial de dentifrício...

            Ma'am?

            – Hum?

            O mordomo não diria nem uma palavra a respeito do cadáver e isso a aborrecia. Como ele pode manter-se indiferente, se, mais do que um corpo, aquele era um retrato mórbido de si próprio, morto?

            – Este terno no cadáver...

            – Oh, você notou, dear?

            – Sim, creio que é um dos meus ternos.

            – Ah, sim, peguei emprestado para ajudar a construir uma pequena... ilusão.

            Apenas uma noite... Uma eternidade. Ontem à noite, ela fizera tudo o que não era permitido. Tudo o que era condenável... Mergulhara por inteiro na fantasia de ter Stephen só para si. Uma linda ilusão. Mas o cadáver no banheiro era real. Uma prova do perigo que uma vampira representa para um ser humano. Ilusões não costumam resistir a algo concreto como a fome de um predador. O corretor nova-iorquino fora um teste. O que aconteceria quando quisesse ter o verdadeiro Stephen? Seria o fim das ilusões?

            – Parece que a sua ilusão não fez muito bem a este rapaz, ma'am.

            – É preciso cuidado com as ilusões, dear.

            – Yes, ma'am, eu concordo.

            Maya viu um meio-sorriso no rosto do mordomo. Não estava mais inexpressivo. Só não sabia o que aquele rosto lhe dizia. Uncertain smile. A vampira também sorriu, mostrando os caninos afiados entre os seus lábios. Espinhos entre pétalas de rosas vermelhas. A música recomeçara.

            Stephen parecia tranquilo, espalhando os sais na água quente da banheira. Ela precisava planejar um meio de evitar que o mordomo se ausentasse, no futuro.

            Oh, sim... Desejava Stephen. Mas não perto demais. Predadores não podem se deitar junto às suas presas... Ou podem?

            Não importava. Hoje, não tinha fome. Hoje, era uma outra Maya, preparada para sobreviver a qualquer ilusão...

            A vampira deixou o robe cair sobre os seus pés. Suspirou de prazer. A água tépida e perfumada recebeu-a como um amante silencioso.

 

* Conto publicado originalmente na edição nº 03 do Ficzine, em 2004.

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