15 de mar. de 2021

NA MONTANHA DO PAVOR - PARTE FINAL


 

Por André Bozzetto Junior

 

            Para ler a PARTE I desta história, clique AQUI, e para ler a PARTE II clique AQUI.

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            Mesmo sem que fosse preciso trocar qualquer palavra sobre o acontecido, todos os fugitivos remanescentes sabiam perfeitamente o que aqueles gritos significavam. Intimamente, um toque de melancolia fustigou cada um deles, mas o desespero e a ânsia por manterem-se vivos fizeram com que logo suas atenções tornassem a ser direcionadas apenas para a fuga que poderia salvar suas vidas.

            Quase no mesmo instante em que o velho guiou o grupo até uma escarpa mais íngreme que as demais circundantes – e passou a escalá-la com uma desenvoltura surpreendente para alguém daquela idade – a chuva que ameaçava cair sobre o vale durante a maior parte do dia finalmente desabou de forma torrencial em meio a relâmpagos e trovoadas.

            Enquanto Milton e Cíntia seguiam o ancião de perto, apensar das inegáveis dificuldades provocadas pelos tropeços e resvalos, Rafael havia ficado um pouco para trás, pois além do tempo que perdeu cogitando ajudar Paulina, ainda estava sendo prejudicado pela chuva que rapidamente transformava em lama o sopé da escarpa e fazia com que ela se tornasse inconvenientemente escorregadia.

            – Desçam pela direita e me esperam na entrada daquele bosque! – disse Jaime ao casal de namorados, tão logo chegaram à parte superior do íngreme aclive – Eu vou ajudar o amigo de vocês a subir e depois encontraremos vocês lá.

            – Podemos ajudar também! – ponderou Milton.

            – Não! Vão à frente! – insistiu o velho – Eu conheço a região e logo alcançaremos vocês!

            Desistindo de insistir, Milton pegou Cíntia pela mão e a puxou no rumo indicado pelo ancião, tentando correr o mais rapidamente possível. Por sua vez, Jaime deitou-se na borda da encosta e estendeu o braço para baixo, na direção de Rafael, que se arrastava à duras penas até lá.

            – Segure a minha mão, rapaz! Vamos! – gritou Jaime, tentando fazer sua voz soar audível em meio às insistentes trovoadas.

            Sem titubear, Rafael estendeu seu braço para o velho e sentiu-se parcialmente aliviado ao constatar, instantes depois, que já estava do lado de cima da escarpa.

            – Até eu recuperar o fôlego, me responda uma coisa, vovô... – disse o rapaz, enquanto sentava-se ao lado do velho, que se encontrava tão ofegante quanto ele – Essa coisa que está nos seguindo é o tal rapaz que você procurava, certo?

            – Sim. – respondeu o ancião, em tom melancólico – É o José Cláudio. Ele é um lobisomem.

            – Um lobisomem?!

            – Isso mesmo. Ele já é assim há muitos anos, desde que foi contaminado quando voltava de um baile. Sempre que é noite de lua cheia eu o tranco em uma jaula para impedir que ele machuque alguém.

            - Ora, vovô, conte direito essa história! – esbravejou Rafael – Se você sempre o mantém trancado, então porque há tantos relatos terríveis sobre esse lugar?! Vai tentar me convencer de que ele não tem nada com isso?!

            – Bem, a verdade é que no início as coisas foram difíceis – disse Jaime, constrangido – Imagine se isso acontecesse com você, como se sentiria?! O pobre rapaz demorou a compreender a sua situação e finalmente optar por se trancafiar na jaula. Antes disso, infelizmente, algumas pessoas acabaram tendo o azar de topar com ele em noites de lua cheia.

            – Você continua me enrolando, velhote! – exclamou Rafael – Vamos deixar de enrolação e abrir o jogo! Eu e os meus amigos vimos dois cadáveres hoje à tarde! E eles não eram tão antigos assim!

            – Acontece que o José Cláudio fugiu uma vez! – respondeu o ancião, com voz trêmula – Ou melhor: duas! E em ambas às vezes pessoas inocentes acabaram sofrendo as consequências! É muito triste que isso tenha acontecido, mas ele não fez por mal! Acontece que, quando é lua cheia, ele simplesmente não consegue se controlar!

            – Não fez por mal?! – vociferou furiosamente o rapaz – Então quer dizer que ele acabou de devorar a minha namorada sem querer?! Ora, faça-me o favor! Se eu soubesse de tudo isso antes, teria metido dez tiros naquele desgraçado ao invés de um só!

            – Você deu um tiro nele?! – exclamou Jaime, surpreso.

            – Dei sim! – respondeu Rafael, sem disfarçar a irritação – Foi um acidente, mas agora me arrependo é por não ter dado outros!

            – Bem, isso explica porque ele não foi para casa ao entardecer. – ponderou o velho, pensativo – Quando chegou à hora de trancafiá-lo e percebi que ele não estava lá, logo entendi que algo devia ter acontecido.

            Antes que o diálogo pudesse ser levado adiante, um uivo terrificante ressoou em meio às trovoadas, deixando claro que a besta continuava no encalço de suas presas.

            – Merda! – esbravejou o rapaz, levantando-se apressadamente – Ele já está ali embaixo! E agora, qual é o plano, vovô?!

            Apesar da indagação do rapaz, Jaime nada respondeu. Apenas levantou-se dissimuladamente erguendo com sigo uma pedra tão grande que mal cabia em sua mão direita. Aproveitando-se do fator surpresa e da distração de Rafael – que estava tentando avistar em meio às sombras a criatura que os perseguia – o ancião aproximou-se do jovem e o atingiu com uma violenta pedrada na cabeça, tão forte que o fez tombar já desacordado e rolar vertiginosamente para baixo da escarpa.

            – Isso é por ter atirado no meu filho, seu garoto imbecil! Toda essa confusão é culpa sua! – vociferou Jaime, ao mesmo tempo em que, metros abaixo, as mandíbulas poderosas do monstro rasgavam a garganta de Rafael e partiam sua coluna vertebral.

 *

            Na entrada do bosque à direita da escarpa, Milton e Cíntia discutiam sobre o que deveriam fazer.

            – Não adianta nos enfiarmos no meio do mato com essa escuridão! – exclamou Milton – Precisamos esperar pelo velho!

            – Veja! – gritou Cíntia apontando para a esquerda – Não é o velho descendo para lá?!

            – É sim! – concordou o rapaz, após observar mais atentamente o vulto que se embrenhava rapidamente no bosque sem lhes destinar maiores atenções.

            Intrigados com a atitude de Jaime, os jovens decidiriam correr em seu encalço.

            – Jaime! Jaime! – gritou Cíntia – Você não ia nos chamar?!

            – Ah, sim! – respondeu o velho, sem muita convicção – Entrei no bosque tão apavorado que nem vi vocês.

            – Onde está o nosso amigo? – indagou Milton, andando logo atrás do ancião.

            – Ele já era. – respondeu Jaime, sem nem olhar para trás – Rolou do barranco e foi pego.

            – Meu Deus! Meu Deus! – exclamou Cíntia, caindo em prantos novamente.

            – Que merda! – gritou o Milton – E você não conseguiu ajudá-lo?!

            – Não. – concluiu secamente o velho, acelerando o passo.

            – E agora, o que faremos?! – insistiu o rapaz.

            – Vamos até o açude. – resmungou Jaime.

            – Açude?!

            – Sim. – confirmou o ancião – Um lago que é utilizado por um morador que vive do outro lado do morro para criar carpas. Lá há um pequeno barco a remo que é utilizado na pesca. Acho que ele poderá ser útil.

            – Não seria melhor tentar chegar até a sua casa, ou de algum outro morador da região?

            – Não dá tempo! – retrucou o velho – Ele nos alcançaria antes de chegarmos. Por isso vamos apelar para o barco. Acredito que, se conseguirmos remar até o meio do açude, ficaremos em segurança.

            Após poucos minutos de apressada caminhada, Jaime – que conhecia perfeitamente cada palmo da região – conduziu os apavorados jovens até a margem do pequeno lago. Naquele momento a chuva já havia cessado e a lua cheia voltava a encontrar brechas por entre as nuvens para lançar sua luminosidade fantasmagórica sobre a paisagem. Sem muito esforço, o velho localizou o pequeno barco amarrado a um palanque em uma minúscula enseada. Nervosamente, ele desprendeu a embarcação das amarras e a empurrou para a água.

            – Esse barquinho não é pequeno demais para três pessoas?! – indagou Cíntia, em meio aos soluços.

            – Acontece que ele vai conduzir apenas uma. – respondeu o ancião, abaixando-se para pegar um remo que se encontrava no assoalho do barco.

            Milton já estava abrindo a boca para questionar a afirmação do velho, mas não teve tempo de pronunciar sequer uma palavra. De maneira súbita e inesperada, Jaime virou-se na direção do rapaz e o atingiu no rosto com um violento golpe de remo.

            Com um grito abafado, Milton tombou na relva molhada e imediatamente sentiu o gosto de sangue lhe inundando a boca.

            – Mas o que é isso?! – gritou Cíntia, enquanto se agachava para amparar o namorado com uma expressão apavorada no semblante.

            – Isso é para vocês aprenderem, seus garotos estúpidos! – esbravejou o ancião, já a bordo do pequeno barco – Quem vocês pensam que são para atirar no meu filho?! Agora aguentem as consequências do que fizeram!

            – Seu velho filho da puta! – vociferou Cíntia, em prantos.

            Mesmo atordoado pelo golpe recebido, Milton levantou-se com a mão no rosto ensanguentado e tentou adentrar no açude ao encalço de Jaime, mas a embarcação já estava fora de alcance. Perplexo, o casal de namorados permaneceu imóvel por um instante, observando o ancião que se afastava remando rapidamente para o meio do pequeno lago, cuja placidez só era fustigada pela luminosidade esbranquiçada da lua cheia que refletia em suas águas.

            De repente, Milton agarrou Cíntia pela mão e a puxou com rispidez, conduzindo-a quase de arrasto através da pequena trilha que costeava o açude.

            – Para onde estamos indo?! – indagou a moça.

            – Para qualquer lugar longe daqui! – respondeu com dificuldade o rapaz, em função do rosto machucado – Não ouviu o barulho na mata lá atrás?! Aquela coisa já está vindo!

            Ao longo de um período que seria incapaz de precisar, Milton escoltou a namorada através da trilha que se afastava do lago e subia em direção a um barranco cuja encosta era totalmente recoberta por capim. Ele tinha certeza de que pelo menos uns dois dentes haviam se quebrado com o golpe desferido pelo velho e talvez até o maxilar. A dor em toda a sua face era intensa. O sangue continuava a escorrer de sua boca e a cada minuto que passava ele sentia-se mais fraco, mas, mesmo assim, procurava ignorar o mal-estar, os tropeços e as quedas para amparar Cíntia e tentar levá-la para um local seguro o mais rapidamente possível.

            Quando chegaram ao topo do aclive, os jovens avistaram uma luz proveniente do que parecia ser uma casa, localizada a uma distância não muito grande de onde se encontravam.

            – Veja! – exclamou a moça, apontando para o local de onde provinha a luminosidade – Vamos descer até aquela casa e pedir ajuda!

            Milton apenas assentiu com a cabeça e seguiu ao lado da namorada, ainda que de forma cada vez mais trôpega.

            Do outro lado do morro, o terreno era recoberto por capim apenas na parte mais próxima ao topo. Na medida em que desciam na direção da casa, os jovens se embrenhavam em uma área onde a mata era mais densa e as árvores de grande porte – inicialmente esparsas – tornavam-se cada vez mais frequentes e próximas umas das outras, fazendo com que, em certa altura, seus galhos e folhagens se emaranhassem a ponto de formar um verdadeiro túnel natural, através do qual o luar não conseguia penetrar.

            Em dado momento, Milton trombou de encontro ao tronco de uma árvore e caiu sentado. Tentou levantar-se de imediato, mas vacilou ao sentir que as forças já o abandonavam.

            – Que merda! – resmungou o rapaz, em um tom sussurrado e exausto – Não enxergo nada nessa escuridão!

            – É só continuarmos descendo em linha reta! – disse Cíntia, tentando motivar o namorado – Logo vamos atravessar esse bosque e então avistaremos a casa com facilidade.

            Milton queria dizer que sim e com isso manter a motivação da namorada, mas quando vislumbrou duas esferas avermelhadas e reluzentes aproximando-se rapidamente em meio a escuridão, tudo que conseguiu foi emitir um gemido de pavor que logo foi substituído por um lancinante grito de dor.

            Quando Cíntia percebeu, a criatura que ostentava aquele par de olhos rubros e demoníacos já havia saltado sobre seu namorado. Na escuridão, ela não enxergava quase nada, mas os urros vorazes emitidos pelo monstro e os berros desesperados que escapavam da boca ensanguentada de Milton não deixavam dúvidas sobre o que estava acontecendo. A moça permaneceu estática, gritando e chorando desesperadamente, incapaz de fazer qualquer coisa enquanto o rapaz era devorado vivo. Sua transtornada imobilidade só foi rompida no instante em que ela ouviu o barulho perturbador do que lhe pareceu ser algo robusto se partindo, no exato instante em que Milton emitiu um grito ainda mais forte e estridente do que os anteriores, para em seguida se calar. Nesse mesmo momento um líquido quente e viscoso espirrou de encontro ao rosto da moça e ela logo compreendeu do que se tratava.

            Saindo daquela espécie de transe que a mantinha imóvel, Cíntia desatou-se a correr ladeira abaixo em meio à escuridão. Na descida, trombou com árvores e pedregulhos, tropeçou em galhos e caiu por diversas vezes, mas, movida pelo intenso desespero, levantou-se após cada queda e, ignorando os ferimentos que maculavam seu corpo, prosseguiu correndo. Quando finalmente conseguiu sair da parte densa do bosque, constatou com um grito de satisfação que a casa que avistara do alto do morro já estava bastante próxima. Poucos minutos depois já se encontrava esmurrando a porta da residência e gritando por socorro.

            Após alguns segundos que lhe pareceram longos como a eternidade, a porta finalmente foi aberta e uma velha apareceu.

            – Querida, o que está acontecendo?! – indagou a anciã.

            – Tem um monstro lá fora! – gritou Cíntia, praticamente atirando-se para dentro da residência e fechando a porta detrás de si – Ele matou os meus amigos e agora está vindo atrás de mim!

            – Calma, minha menina! – disse a velha, em um tom sereno que não demonstrava nenhum espanto – Está vendo estas grades na janela e a tranca na porta? São de prata! Ele não pode entrar aqui. Fique tranquila.

            – Ah, então a senhora já sabe da existência dele! Mas o meu namorado ainda está lá fora! Eu preciso ajudá-lo!

            – Talvez só lhe reste ajudar a si mesma.

            Cíntia compreendeu o que a anciã quis dizer, mas naquele momento seus olhos vislumbraram uma espingarda presa na parede, logo acima da pia da cozinha e a esperança voltou a fustigar seu coração.

            – Me dê aquela arma! – ordenou a moça – Vou voltar para ajudar o meu namorado!

            – Talvez só lhe reste ajudar a si mesma. – repetiu a velha, ainda em um tom de voz condolente.

            – Então pelo menos eu vou encher de chumbo aquele filho da puta! – gritou Cíntia – Meu amigo deu um tiro nele e eu vou dar outro! Bem no meio da cara do desgraçado!

            – Seu amigo deu um tiro nele?! – questionou a anciã, surpresa.

            – Deu sim!

            – Mas e depois, o que aconteceu?!

            – Meu amigo atirou nele sem querer, mas atirou! Se soubesse da verdade certamente teria atirado mais! E depois, quando o monstro começou a nos perseguir, aconteceu o pior: um velho escroto disse que nos ajudaria a fugir, mas escapou sozinho de barco e nos deixou para trás! E ainda deu uma pancada com o remo no rosto do meu namorado!

            – Fugiu de barco?! – indagou novamente a velha.

            – Sim! E por culpa desse velho nojento o Milton foi pego! Agora temo que tenha sobrado apenas eu!

            – Sobrou apenas você?! – perguntou mais uma vez a velha, no mesmo tom de voz monótono.

            – Sim! – esbravejou Cíntia, irritada com as perguntas retóricas da anciã – Agora me dê aquela merda de arma, pois eu vou acertar as contas com aquele bicho filho da puta!

            – Certo, certo. – concordou a velha, finalmente retirando a espingarda do suporte na parede e entregando-a para Cíntia.

            Com a arma em mãos, a moça rapidamente precipitou-se porta afora.

            – Adeus! – disse a velha, voltando a trancar-se na segurança da casa.

            Cíntia nada respondeu, pois todas as suas atenções estavam voltadas para a criatura que naquele exato instante saia de dentro do bosque e seguia lentamente na direção da residência. Uma criatura enorme e de aspecto repulsivo, onde se destacavam os olhos avermelhados e perversos que reluziam à distância.

            Mesmo sem nunca ter empunhado uma arma antes, Cíntia apontou a espingarda na direção do monstro e – tomada pelo ódio – apertou o gatilho com convicção. Para a sua surpresa, apenas um suave estalo metálico seguiu-se ao seu gesto.

            – Meu Deus! – gritou a moça, em pânico – Essa porra de arma está descarregada!

            – É claro que está descarregada! – vociferou a velha em resposta, por detrás da porta da casa – Acreditou mesmo que eu permitiria que você atirasse no meu filho?!

            Cíntia pensou em todas as ofensas e xingamentos que conhecia e almejou despejá-los contra a anciã que a fizera cair em uma armadilha, mas não teve tempo de pronunciar uma palavra sequer antes que o lobisomem arrancasse a arma de suas mãos e a suspendesse no ar, agarrando-a pelo pescoço.

            Quando os gritos de dor e pavor da moça começaram a ecoar, deixando claro que o sangrento ritual de abate havia iniciado, a velha aproximou-se da janela e espiou para fora através de uma pequena fresta.

            – Aproveite bem, seu menino sapeca, pois amanhã você volta para a jaula! – exclamou a anciã, com um sorriso terno e maternal preenchendo-lhe os lábios.

 

Fim  

12 de mar. de 2021

NA MONTANHA DO PAVOR - PARTE II


 

Por André Bozzetto Junior

  

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            Após o tiro, as garotas pararam de gritar e ingressaram quase que automaticamente em um estado de tenso silêncio, como se na expectativa do que estava por vir. Rafael baixou a espingarda e ficou imóvel, fazendo coro à tensão que dominava o grupo de forma tão intensa que parecia de sensação quase tátil. Depois de um intervalo de tempo impossível de ser precisado por qualquer um dos jovens, Milton pareceu sair do estado de choque que enrijecia a todos e caminhou lentamente na direção dos arbustos que ocultavam a visão do alvo abatido.

            – Meu Deus! – gritou ele, levando as mãos à cabeça e atraindo a atenção dos demais, que correram em sua direção.

            Tão logo se postaram ao lado de Milton, as garotas voltaram a gritar quase que tão estridentemente quanto antes, pois a visão de um rapaz desacordado com um ferimento de bala no peito deixava claro a elas que as surpresas trágicas que aquele dia lhes reservava estavam apenas começando.

            – Cristo! Matei um cara! – exclamou Rafael, ao constatar que o rapaz alvejado não respirava – O que vamos fazer?!

            – Vamos embora! – gritou Cíntia.

            – Temos que chamar a polícia! – emendou Paulina, também aos berros.

            – Chamar a polícia?! Está louca?! – retrucou Milton – Vamos ser presos!

            – Mas foi um acidente! Vamos explicar... – insistiu a moça.

            – E quem garante que alguém vai acreditar?! – intrometeu-se Rafael – Nossas barracas estão cheias de bebidas alcoólicas e de erva! Se nos obrigarem a fazer exames de sangue ou urina estamos ainda mais ferrados!

            – E podem achar que nós matamos também esses outros caras! – complementou Milton, apontando para os cadáveres ressecados estendidos a alguns metros abaixo.

            – Quem será que os matou? – perguntou Cíntia, em um tom de voz balbuciado e choroso que evidenciava o enorme transtorno pelo qual sua mente estava passando.

            – Provavelmente foi esse cara aqui! – exclamou Milton, apontado para o corpo do rapaz alvejado aos seus pés.

            – Ora, como você pode saber?! – retrucou Paulina.

            – E você viu mais alguém nessa montanha desde que chegamos?! – gritou Milton – Por que será que o único ser humano que avistamos ao longo do dia inteiro estava justamente aqui, na beira de um precipício oculto e cheio de ossos e caveiras ao redor?!

            – Isso explica também todos aqueles boatos sobre desaparecimentos... – ponderou Rafael – É tudo obra de um serial-killer... E, ao que parece, aqui está ele, mortinho da Silva.

            – Vamos jogar o corpo desse cara no precipício e dar o fora daqui! – decretou Milton – Depois basta nunca mais tocarmos no assunto e ponto final.

            – E ainda teremos a consciência tranquila, pois livramos o Morro Assombrado do responsável por tudo de ruim que andava acontecendo por aqui! – complementou Rafael.

            – Vocês estão loucos?! – gritou Paulina – Não há nenhuma garantia de que essa teoria estapafúrdia de vocês seja verdadeira! Está na cara que se trata apenas de uma desculpa para justificar o que fizemos!

            – Eles estão certos. – interveio Cíntia, com uma voz que, inicialmente, era pouco mais do que um sussurro, mas subiu de tom até tornar sua fala em uma sucessão de gritos histéricos e perturbados – Os meus pais vão ficar furiosos comigo se ficarem sabendo... E eu... E eu não quero ser presa! Não quero ser presa! Não quero ser presa! Não quero ser presa!

            Como se as palavras descontroladas da companheira servissem de aval para as suas intenções, Milton e Rafael entreolharam-se rapidamente e, de forma decidida, ajuntaram o corpo do rapaz e carregaram-no até a borda do precipício. Bastou uma rápida olhada lá para baixo para constarem que se tratava de um grande abismo, pois nem era possível enxergar o seu final, em partes também em função da vegetação que cobria parcialmente suas encostas e se adensava na medida em que o declive se tornava mais íngreme. Sem titubear, os rapazes balançaram o corpo para frente e para trás duas vezes e na terceira arremessaram-no com o máximo de força possível para dentro do precipício. Observaram quando o cadáver bateu contra a encosta duas vezes – amassando arbustos e fazendo pedras caírem – para depois rolar sobre uma saliência rochosa, ganhar embalo e despencar no vazio até sumir de vista. Aguardaram em silêncio com a mórbida expectativa de ouvir o barulho do corpo estatelando-se de encontro ao solo lá embaixo, mas nenhum som mais enfático chegou aos seus ouvidos. Por um instante, Milton temeu que o cadáver pudesse ter ficado enroscado na vegetação em algum ponto do declive, mas decidiu não compartilhar dessa desconfiança com o amigo. Com sensação de dever cumprido, os dois jovens retornaram ao encontro das moças.  

            – Agora sim vamos embora. E depressa! – decretou Milton.

            – E bico calado. Para sempre! – complementou Rafael.

            Cíntia apenas consentiu com um aceno de cabeça, enquanto que Paulina tentou protestar, mas Rafael simplesmente pegou-a pelo braço e puxou-a na direção da encosta do barranco. Os jovens realizaram em silêncio a escalada de volta até a parte superior do morro e, em função da tensão e da escuridão cada vez mais acentuada, a subida foi bem mais lenta e dificultosa do que gostariam.

            Quando finalmente chegaram de volta ao acampamento, saciaram a sede que já os perturbava e imediatamente começaram a desmontar as barracas. Nesse momento, o sol já havia se posto por completo e a visão panorâmica proporcionada pela localização no alto do morro permitia aos amigos presenciar o antagônico espetáculo natural que se dava acima de suas cabeças. De um lado as nuvens tempestuosas já se encontravam bastante próximas, e os relâmpagos e trovoadas que realçavam sua aproximação deixavam claro que a chuva despencaria em breve. Do outro lado, a lua cheia já começava a raiar pálida e enorme por detrás da montanha, emitindo uma luminosidade que ao mesmo tempo realçava os contornos da paisagem e os tornava inquietantemente sinistros.

            Mal haviam começado a encher suas mochilas e os quatro jovens perceberem, com grande surpresa e desconfiança, a aproximação de um homem que vinha rapidamente em sua direção.

            – Meu Deus! Quem será aquele? – exclamou Cíntia.

            – Logo saberemos. – disse Milton – Rafael, fique com a espingarda ao alcance das mãos. E vocês, mocinhas, tratem de ficar de bico calado!

            Na medida em que o sujeito se aproximava, o grupo pode constar que se tratava de um homem de idade avançada, praticamente idoso. Possui cabelos e bigode grisalhos e usava roupas claramente destinadas ao trabalho na roça. Aparentava ser um morador da área agricultável do morro, a leste, e seu semblante tenso denotava indisfarçável preocupação.

            – Minha nossa! – exclamou o desconhecido tão logo chegou ao acampamento – O que vocês estão fazendo aqui?!

            – Estávamos acampando, mas como percebemos que está vindo um temporal, decidimos ir embora. – respondeu Milton, tentando disfarçar a apreensão.

            – E o senhor, quem é? – perguntou Rafael, com desconfiança.

            – Jaime. – respondeu o ancião – Moro do outro lado do morro e estou procurando por um rapaz.

            – Um rapaz?! – exclamou Paulina, arrependendo-se em seguida pelo tom de voz suspeito.

            – Sim. Um rapaz mais ou menos da idade de vocês, alto e de cabelos pretos. – explicou Jaime.

            – Não vimos ninguém. – respondeu Rafael, com rispidez.

            – É verdade. – complementou Milton, o senhor é a primeira pessoa que avistamos aqui no morro.

            – Que loucura! – exclamou Jaime, como se estivesse pensando em voz alta – isso não poderia estar acontecendo. De novo não!

            – Do que o senhor está falando? – questionou Cíntia.

            – Deixem para lá. O que importa é que vocês precisam sair daqui agora mesmo! – respondeu o ancião, apontado para a trilha que conduzia para o declive.

            – Sim, sim... – concordou Milton – Vamos só recolher nossas coisas e...

            – Não há tempo! – interrompeu Jaime, praticamente gritando – voltem amanhã de manhã para buscar suas coisas. Agora vocês precisam ir embora. E depressa!

            Como se para sublinhar de forma tetricamente enfática as palavras carregadas de tensão proferidas pelo velho, um uivo sinistro e enregelante ecoou de algum lugar do morro não perfeitamente identificável, mas que era inegavelmente próximo.

            – Jesus Cristo! – gritou Jaime – Tempo esgotado!

            – Mas de que merda o senhor está falando?! – indagou Rafael, com grande irritação.

            – Que som mais horrível foi aquele?! – perguntou Cíntia, prestes a entrar novamente no estado de descontrole que a afligiu anteriormente.

            O ancião nem sequer ouviu os questionamentos dos jovens, pois já estava se afastando do acampamento de forma extremamente apressada, praticamente correndo.

            – Vamos! Vamos! – gritava Jaime, olhando para trás e gesticulando para que o grupo o seguisse – Com certeza ele já sabe que estamos aqui! Logo, logo vai aparecer!

            O pavor expressado pelo velho ao proferir essas frases era tão claramente perceptível que – aliado a sua atitude inusitada de sair correndo de forma súbita – acabou por contagiar os jovens com uma sensação de perigo iminente, de tal forma que, segundos depois, todos eles estavam correndo também, acompanhando o ancião na fuga de algo que desconheciam, mas que certamente deveria ser terrivelmente ameaçador.

            Provavelmente o grupo de amigos sentir-se-ia aliviado em saber que essa foi a atitude mais sensata que tomaram até então naquele dia, pois, ao correrem, ganharam alguns minutos preciosos que impediram que todos fossem brutalmente trucidados pela monstruosa criatura que emergiu instantes depois da encosta do barranco recoberta de mato que havia bem próxima ao acampamento.

            Quando se sentiu invadida por uma intempestiva curiosidade e decidiu olhar para trás em meio à correria, Paulina vislumbrou algo que preferia jamais ter visto ou sequer sabido que poderia de fato existir. Uma criatura enorme, e de aparência tão desconhecida quanto horrenda, corria com determinação no encalço do grupo, há algumas dezenas de metros de distância. A apavorante visão a perturbou de tal forma que ela acabou tropeçando nas próprias pernas e desabando pesadamente ao chão, gritando de imediato por socorro.

            Enquanto os outros continuaram correndo, Rafael parou e voltou-se para ajudar a namorada. Quando avistou a besta que se aproximava com grande velocidade, o rapaz ficou intensamente perturbado. Em meio ao espanto perante a visão terrificante, lamentou intensamente a própria estupidez. Lamentou por não ter acreditado na fama de maldito daquele lugar, lamentou por ter se apavorado a tal ponto de sair correndo do acampamento sem ao menos levar a espingarda consigo e – principalmente – lamentou pelo destino de Paulina, pois compreendeu que o monstro estava próximo demais e ele nada poderia fazer para salvá-la. Com o coração apertado por uma sensação de pesar e até certa dose de vergonha mediante a própria impotência, Rafael deu às costas para a namorada e desatou-se a correr novamente na direção tomada pelo velho e os demais amigos.

            Chocada e incrédula diante da atitude covarde e desprezível do homem que ela pensou que a amava, Paulina não pronunciou sequer uma palavra. Apenas duas lágrimas melancólicas escorreram dos seus olhos uma fração de segundos antes de a besta saltar sobre seu corpo emitindo um urro triunfal. Então foram os seus gritos que ecoaram pela noite, consolidando o clima de terror que se abatia sobre o vale e motivando o grupo de fugitivos a correr ainda mais desesperadamente.
 
Continua...

10 de mar. de 2021

NA MONTANHA DO PAVOR - PARTE I


 Por André Bozzetto Junior

 

            – Caramba! Vamos fazer uma pausa! – suplicou Milton, de forma ofegante – Não aguento mais carregar essa porra de sacola térmica!

            – Vai dizer que você preferia ter deixado a cerveja em casa?! – provocou Paulina, em tom debochado.

            – Ele tem razão! – intercedeu Cíntia, apontando para Milton e se esforçando para recuperar o fôlego – estamos subindo morro acima desde as oito horas da manhã!

            – Certo! Certo! Vamos fazer uma parada! – apaziguou Rafael – Mas também não é preciso tanta reclamação, pois a partir de agora a subida já fica bem menos íngreme. Já estamos quase no topo.

            – Aleluia! – gritou Milton, erguendo as mãos ao céu em um gesto propositalmente teatral.

            – A vista aqui de cima é muito bonita. Dá para ver todo o vale lá embaixo. – disse Paulina, retirando a mochila das costas e sentando-se no capim – Como é mesmo o nome desse lugar?

            – Morro da Guabiroba. A maior parte pertence ao município de Encantado. – explicou Rafael, entre um gole e outro de água.

           – Não acredito! Você só pode estar brincando! – vociferou Cíntia, gesticulando exaltadamente – Morro da Guabiroba?! Você nos trouxe para o Morro Assombrado?!

           – Epa! Você está doidona?! Que história é essa de assombração?! – intrometeu-se Milton, achando graça do chilique da namorada.

            – É uma idiotice! – interveio Rafael – Histórias de caipiras e gente ignorante! Dizem que por estas bandas aparecem fantasmas, monstros ou sabe-se lá que outras bobagens do tipo! Tudo palhaçada!

            – Palhaçada coisa nenhuma! – retrucou Cíntia – Já ouvi falar várias vezes sobre pessoas que desapareceram quando vieram caçar ou acampar por aqui! Além disso, a Clotilde, minha vizinha, já contou para todo mundo que um primo dela foi atacado uma coisa quando dirigia de noite através do morro, indo para a cidade de Doutor Ricardo!

            – A rodovia que vai para Doutor Ricardo fica do outro lado do morro. – explicou Paulina.

            – E mesmo que fosse aqui perto, qual o problema?! – exclamou Rafael – Me admiro muito em ver que você, Cíntia, que se acha tão moderna, acredita nessas histórias fajutas!

            – Porra, Rafael! Você sabe que a Cíntia é encucada com esses negócios! – resmungou Milton – Será que não havia outro lugar para acamparmos?!

            – Ora, mas não foram vocês mesmos que exigiram um lugar isolado e deserto para fazermos o que bem entendermos?! – retrucou Rafael – Justamente por causa de todas essas histórias imbecis de assombração é que eu tenho certeza de que nenhum caipira vai aparecer por estas bandas! Poderemos beber, fumar e trepar à vontade!

            – Tem certeza? – perguntou Paulina, em tom malicioso.

            – Claro! Até porque a parte habitada do morro fica para aquele lado! – exclamou Rafael, apontando para a sua esquerda – Aqui poderemos ficar bem sossegados!

            – Ótimo! Ótimo! – disse Milton, levantando-se e recolocando e enorme sacola térmica nas costas – Então vamos subir o resto do trajeto e montar logo o acampamento! Não vejo a hora de fazermos o churrasco!

            – E bebermos as cervejas! – complementou Paulina.

            – Perfeito! Vamos lá! – incentivou Rafael, tomando a dianteira do grupo no reinício da caminhada.

            Mesmo contrariada, Cíntia levantou-se e recolocou a mochila nas costas para seguir os amigos. Antes, porém, olhou para além dos morros circundantes, do outro lado do vale e constatou, com certa apreensão, que nuvens escuras surgiam no horizonte. Parecia que uma tempestade estava por vir.

 *

            Pouco depois do meio-dia, o grupo de amigos já havia se estabelecido em um pequeno planalto na parte superior do morro, montando o acampamento e acendendo o fogo para o churrasco. Depois de uma refeição regada a muita cerveja e pontuada por conversas triviais e descontraídas, cada casal recolheu-se para a intimidade de suas barracas. Aparentemente, a desagradável discussão da manhã sobre a má fama do Morro Assombrado já havia sido esquecida.

 *

            Quando Milton acordou, algum tempo depois, constatou que estava sozinho em sua barraca. Olhou para o relógio em seu pulso e surpreendeu-se ao ver que já passava das 18 horas da tarde. Saiu apressado do iglu e avistou Cíntia sozinha, próximo da borda do declive, observando o horizonte.

            – O que você está fazendo? – indagou o rapaz.

            – Veja. – disse a moça, sem tirar os olhos do céu – Está vindo uma tempestade.

            – Ora, e daí?! É só uma chuva de verão! Ficaremos nas barracas até passar.

            – Que escuridão! – exclamou Paulina, saindo do segundo iglu em companhia de Rafael – Pensei que estivéssemos no horário de verão!

            – São as nuvens de tempestade. – disse Cíntia – Vem chuva por aí.

            – Não sei por que tanta falação por causa de uma chuvinha! – resmungou Rafael, enquanto carregava a espingarda – Mesmo que tenhamos que ficar algumas horas dentro das barracas, temos várias coisas legais para fazer.

            – O que você vai fazer com essa arma?! – indagou Paulina, surpresa.

            – Caçar, logicamente! Está cheio de pombas nesses matos.

            – Eu é que não vou ficar andando para cima e para baixo nesses barrancos! – retrucou a moça.

            – Pois então fiquem aqui! – retrucou Milton – Iremos eu e o Rafael.

            – Não acho uma boa ideia ficar apenas nós duas nesse lugar! – esbravejou Cíntia.

            – Ora, parem de ser chatas! – exclamou Rafael – Nós vamos apenas até aquele bosque ali na borda da descida! Será que não podem ficar 300 metros longe de nós por meia hora?!

            Em protesto, as duas moças resmungaram ao mesmo tempo, mas a dupla de rapazes não lhes deu ouvidos. Sem mais delongas, seguiram na direção do bosque, deixando as namoradas no acampamento.

            Tão logo adentraram por entre a parte mais densa da vegetação, os dois amigos perceberam que naquela área o declive era mais íngreme do que imaginavam e a pouca luminosidade que penetrava por entre os galhos das árvores robustas tornava a visibilidade pouco favorável.

            – Merda! – resmungou Milton – Acho que não escolhemos bem o local. Está vendo o precipício que há lá embaixo?!

            – Sim. – respondeu Rafael – E com essa escuridão o negócio fica perigoso. Vamos descer ali pela esquerda, mas cuidado para não resvalar!

            Como em uma cena de um ingênuo filme de comédia, tão logo Rafael acabou de proferir a sua frase de advertência, Milton perdeu o equilíbrio ao pisar em uma pedra mal fixada no barranco e, com um grito de espanto, rolou pela encosta do declive, ganhando velocidade na medida em que despencava.

            – Jesus Cristo! – gritou Rafael, um segundo antes de se desatar a correr morro abaixo atrás do amigo.

            Embora não tenha demorado mais do que dois minutos, a descida de Rafael pareceu-lhe ter durado uma eternidade, pois além do desconforto de ter que segurar a espingarda, ainda precisava ter todo o cuidado possível para que ele próprio não caísse ladeira abaixo. Na medida em que descia, via pela lateral da encosta o rastro de arbustos amassados deixado pela queda do amigo e, em seu íntimo, temia encontrá-lo morto.

            Porém, pelo menos nesse aspecto, a realidade revelou-se melhor do que a mais positiva das expectativas. Quando chegou a uma pequena área plana que se assemelhava a uma espécie de degrau natural esculpido no barranco, Rafael já encontrou o companheiro se levantando. Milton estava com as roupas sujas de terra e cheias de folhas dependuradas, mas, além de um pequeno corte na testa por onde escorria um estreito filete de sangue, não aparentava ter sofrido nenhuma outra lesão mais séria.

            – Cara, graças a Deus você está bem! – Comemorou Rafael – Com uma queda dessas você poderia ter se quebrado todo!

            Contudo, Milton não compartilhou do entusiasmo do amigo, pois estava entretido, como se em transe, olhando fixamente para um ponto específico localizado um pouco abaixo do minúsculo platô em que se encontravam. Intrigado, Rafael olhou na mesma direção e, chocado, deixou escapar um gemido de espanto com o que vislumbrou. Enroscadas entre arbustos, estavam duas ossadas que eram inconfundivelmente humanas, pois entorno dos cadáveres descarnados eram perfeitamente identificáveis peças de vestuário, como calças, casacos e até uma mochila ainda presa às costas de um dos corpos.

            A dupla de amigos estava tão chocada com a macabra descoberta que só se deu conta da aproximação de suas respectivas namoradas quando as moças já estavam praticamente postadas ao seu lado e, mediante a terrificante visão, começaram a gritar alvoroçadamente.

            – Meu Deus! Eu disse! Eu disse! Esse lugar é amaldiçoado! – berrava Cíntia, em meio às lágrimas de desespero!

            – Vamos cair fora daqui! – implorava Paulina, também em prantos – Depressa! Depressa!

            – Alguém está se aproximando. – disse Milton, apontando o dedo para a direita, área onde a vegetação era ainda mais densa.

            Como Rafael permanecia em silêncio, alheio à gritaria ao seu redor, Milton o sacudiu pelo braço e tornou a apontar na direção de onde vinha o barulho de galhos se partindo e folhas secas sendo pisadas. As moças, ao se darem conta da iminente chegada de alguém – ou de algo – vindo de dentro da mata, passaram a gritar de forma ainda mais estridente.      

          – Alguém está se aproximando! – repetiu Milton, dessa vez aos berros.

            Apenas nesse momento Rafael pareceu se dar conta do que estava acontecendo. Quando olhou na mesma direção dos demais companheiros, avistou a vegetação que balançava e se envergava, deixando claro que dentro de segundos o grupo não estaria mais sozinho. Mediante o panorama de pânico e desespero que se formatava ao seu redor, deturpando sua capacidade de reflexão, o rapaz instintivamente ergueu a espingarda que trazia em mãos e apontou-a na direção temida. Quando apertou o gatilho, o estrondo do tiro veio acompanhado de um gemido abafado e do baque de algo pesado que desabou por detrás dos arbustos.

 

Continua...

6 de mar. de 2021

O VAMPIRO DA ESCADARIA

 

     Por Lord A

    SÃO PAULO, quando (ainda) era da garoa…

    Eu era menina, ainda trabalhava nos lugares de jogador lá do centro. Limpava as latrinas, servia bebida pros perdidos e pros desandados da vida. Depois tinha que voltar rápido na noite pro casebre onde morava com meus irmãos, o papai e a mamãe. Dava medo andar no vale do centro de madrugada, por que lá era lugar de coisa ruim e de sortilégio. Saía do botequim,  andava no meio dos prédios escuros, descia a ladeira e tinha que subir uma escadaria de mármore para sair do outro lado do vale. Valia-me da minha fé e dos meus santos.

    Lembro que tinha um flautista que tocava no final da escadaria, muito tempo atrás. Tempo de garoa, quando o vale era escuro e lugar de coisa ruim como falava o caboclo matuto. Tocava sua flauta, tocava triste, mas tocava bonito e muitos daqui e de lá vinham ouvir sua música. Vinham as moças-dama que não eram prendadas, gente sabida do centro e até do Brás. Ele tocava de noite, meia noite, hora de ronda e hora de magia da última sexta-feira do mês.

    Ele descia a escadaria de terno branco, lírio em flor. Vinha quando já era noite, noite bonita. E embaixo dos arcos, tocava para quem quisesse ouvir. Os meninos da rua, que vadiavam por ali e dormiam em qualquer canto que fosse canto, falavam que seus olhos eram cor da prata. Cor de lua cheia. Seu rosto ninguém via não, era como lua negra, lua escura. Era o que falavam quando a gente servia a sobra das comidas para ele no beco dos fundos do botequim.

    Eu via gente bonita que corria dos quatro cantos para ouvir o flautista da escadaria tocar. Cães silenciavam seus berros e vinham ali pastorear. Os gatos vinham da kalunga menor, do meio da consolação atraídos pela melodia. Ficavam ali, deitados no mármore ouvindo. Tinha um gato preto, grande e gordo, que ficava ali sentado na estátua de ferro, tomando conta de todos, só na vigília. Eu saudava sua força, sabe! Parecia chefe de todos os gatos!

    Naquela madrugada só veio uma moça, bonita e de escarlate, ver o flautista tocar. Era faceira, o escarlate de seu vestido parecia ruborosa rosa de cruzeiro já em flor. Pele marmórea que parecia deusa de além dos mares e olhar de fogo, escondido sobre o cacheado negro dos cabelos.

    Terminado o tocador, ela o chamou. Baixou ventania forte na escadaria que apagou os tocheiros. Os meninos correram que nem os cães na noite. Uns eram cãezinhos espertos e foram respeitadores. No breu só ouvi um guinchado pavoroso:  Issiiiiisssssssssss… Isssssssiiiiiiissssssssss… E som de vigorosas asas negras encouradas bateram e bateram, abanando toda poeira, todos os males,  todo chororô…

    Quando passou a confusão e eu acordei só vi os gatos seguindo o gato preto de volta pra Kalunga menor da Consolação. Nunca mais vi flautista lá e nem moça faceira de escarlate. Bateram asas e voaram dali, voltaram pra banda de lá. Noite de última sexta-feira do mês, quando passo lá, acendo vela preta e olho para copeira das árvores. Dali do breu, sinto que sou olhada de volta, então sei que está tudo em paz.

    Uma noite uns rapazes ricos e sabidos, todos embriagados tentaram me pegar lá perto da escadaria, quando eu ia de volta pro casebre da minha família. Eles queriam fazer malvadeza com eu. Eles me seguraram e me tiraram do chão…As copas das árvores perto da escadaria balançaram forte. Daí veio um guinchado pavoroso, coisa de morto, coisa do lado de lá… e eu cai no chão.

    Quando acordei era de manhã cedo, seu delegado tava lá, todo de preto com todo seus policiais, só vi a carroça com os corpos dos rapazes estraçalhados, tudo sem cabeça e os corpo aberto. Os homem sabido falavam que os corpo tava tudo sem sangue e as cabeça tavam tudo amarrada nos galhos das árvores. Delegado perguntou seu eu sabia de algo, e falei que não sabia de nada e me mandei. Só vi as pétalas de rosa vermelha no final da escadaria.

    Vez por outra na madrugada da última sexta-feira, gente que é sabida e gente que não é, passa lá e também acende vela preta e vermelha lá na escadaria. Uns que podem mais deixam vinho do bom lá. As moças perdidas deixam rosa vermelha e badulaques delas nos cantinho dos degraus perto das velas. Todos eles fazem conversador lá, falam baixinho e cochicham…Uns até chamam de “compadre” quando falam…Eu só sei que acendo minha vela, faço meu agradecedor e subo a escadaria logo. Ali é lugar de povo que sai voando na lua cheia e faz o que a gente não faz aqui não. Lá longe ouço os cães vadios e os meninos correndo junto no breu do vale. E tem o “Seu gato preto” que fica lá convidando e recebendo as prendas, deitado, esparramado no mármore da mureta enluarada…

 

* Publicado originalmente no blog fontesdaficcao.wordpress.com, em 2009.