31 de mai. de 2022

1999: O CASO DO PALHAÇO - Parte Final

 

PARTE V

21h 20min

 

       O velho dono do hotel parecia não acreditar. Havia dois homens apontando armas para a sua cabeça. Um deles era o seu melhor segurança. O outro era um escritor local que ele próprio tinha chamado para ajudar nas investigações. Todos os demais estavam mortos. Não havia o que fazer.

       – Eu gostaria de saber a razão de tudo isso. – disse o velho, sentando-se desanimadamente em uma poltrona.

       – Ora, Sr. Schneider, nós já falamos sobre isso, embora tenha sido por uma outra perspectiva. – respondeu Rubem, com um olhar insano.

       – Não consigo entender. Aliás, a única coisa que eu entendo é que você é um doido varrido, além de um maldito filho da puta!

       – Não fique tão zangado, meu velho. No fundo somos parte disso tudo. Temos um papel fundamental nessa história. E que história! Ainda mais sangrenta que a primeira! Nossos nomes serão lembrados para sempre! – insistiu o escritor, sem desfazer o sorriso insano dos lábios.

       Renato ouvia a tudo e ria, satisfeito. O Sr. Schneider estava perplexo. Sentia uma fugaz mistura de nojo e ódio.

       – Há dez anos, o Palhaço Gargalhada matou cinco. Nós já matamos oito, e com você será nove. Somos melhores do que o original! – disse Rubem, com sádica satisfação.

       – Não pense que me assusta, seu retardado! – gritou o velho.

       – Eu não quero assustá-lo. Quero apenas que fique orgulhoso. Afinal, vai ser um dos personagens principais de um novo livro de sucesso!

       – Então é isso! Você tramou essa chacina toda, com intenção de ter conteúdo para um novo livro! Você é mais demente do que qualquer um poderia imaginar!

       – Não sei porque tanta surpresa. O Caso do Palhaço foi um dos livros mais lidos da história do nosso país! Uma continuação para esse clássico era algo praticamente obrigatório! Você consegue imaginar o alvoroço que isso irá causar? Talvez até me convidem para integrar a Academia Brasileira de Letras!

       – Você é ridículo! – insistiu o dono do hotel – Aquela bosta de livro nem fez tanto sucesso assim. E você é o Paulo Coelho, por acaso? Admita: nunca ganhou muito dinheiro escrevendo essas merdas! Mas, se é isso que espera ganhar, se estiver interessado no dinheiro, talvez possamos chegar a um acordo.

       – Eu não sou um mercenário! Não sou um porco capitalista como você! Eu sou um artista! É a arte que me interessa! É a transcendência! – retrucou Rubem, gesticulando com o revólver em mãos, de forma frenética.

       – Você deveria estar num hospício!

       – Deixe disso, Sr. Schneider! Eu sempre fui muito legal com você! Na época do primeiro livro, omiti aspectos importantes à história apenas para protegê-lo!

       – Do que você está falando, seu lunático?!

       – Eu estou falando do fato de que você andava comendo a filha do Palhaço Gargalhada! Eu estou falando do fato de que você engravidou a menina, e depois a obrigou a fazer um aborto! Eu estou falando do fato de que o pai dela ficou furioso quando descobriu isso, e que na noite em que ele enlouqueceu e invadiu o hotel matando todo mundo, a intenção dele era chegar até você! É disso que eu estou falando seu velho pervertido! Pedófilo! Aliciador de menininhas!

       O velho começou a chorar. Não estava mais aguentando aquilo tudo. Preferia morrer de uma vez.

       – O coitadinho está chorando! – disse Rubem, com extremo deboche – Será que aquela pobre menina também chorava quando você metia nela?! Me responda, seu velho Calígula! Será que ela chorou de medo naquela espelunca imunda onde você a levou para abortar?! Será que você se importava com o choro dela?!

       – Por favor, chega! – implorou o Sr. Schneider, em meio a lágrimas e soluços – Me matem logo!

       – O que acha disso, meu irmão? – perguntou Rubem para Renato – Devemos incluir no livro esse comovente choro de arrependimento do velho cão sarnento?

       – Sei lá, meu chapa. O intelectual aqui é você! Eu sou apenas mão de obra! Sou apenas o seu executor ! – respondeu o rapaz, emendando uma gargalhada.

       – Vocês são irmãos?! – indagou o velho Schneider, a ponto de enlouquecer.

       – É incrível que esse seu hotel não tenha falido! Você é um péssimo administrador! Nem conhece seus próprios empregados! O Renato trabalha aqui há um ano, e você nunca pegou a ficha dele nas mãos ? Aposto que nem sabia o seu sobrenome! Mas, para seu governo, somos irmãos, sim! Somos um prodígio da natureza!

       – Cara, você é demais! – exclamou Renato – Você devia lançar um livro de poesia!

       – Vocês são uns demônios! – gritou o dono do hotel.

       – Não! – rebateu Rubem – Nós somos a juventude dos anos 90! Nós somos a dor do mundo! Somos um trauma mal curado! Somos uma mágoa nunca esquecida! Nós somos o caos!

       Rubem ergueu as mãos ao alto em um gesto dramático e teatral. Não se sabe por quanto tempo sua insana performance ainda se estenderia caso o seu bizarro show não tivesse sido bruscamente interrompido pelo barulho de sirenes, que se aproximavam rapidamente.

       – Mas que merda é essa?! – indagou o escritor, aparvalhado – Renato, seu idiota! Você chamou a polícia de verdade?

       – Eu não, cara! Não tenho nada a ver com isso!

       – Mas então, quem foi?

       Nesse instante, como se em resposta à pergunta de Rubem, a porta se abriu, e através dela adentrou Sidnei, empunhando uma espingarda. Antes que os irmãos pudessem atacá-lo, ele disparou contra Renato, atingindo-o em cheio, e fazendo-o voar de encontro à janela, para em seguida estatelar-se na calçada lá embaixo. Mas isso foi tudo que ele pode fazer. No instante seguinte, o escritor recuperou-se do susto e acertou três tiros no peito do recém-chegado, que caiu sem vida sobre a mesinha das bebidas.

       Rubem virou-se para o Sr. Schneider. O velho continuava sentado no mesmo lugar.

       – Ainda dá tempo... – disse o dono do hotel. Seu olhar trazia uma mistura de resignação e alívio.

       – Me espere no inferno, seu depravado asqueroso! – vociferou Rubem, um segundo antes de explodir a cabeça do velho com um tiro.

       Em seguida, o escritor desatou-se a correr desenfreadamente. Em poucos instantes já estava na porta principal do hotel, através da qual esperava chegar ao bosque mais rapidamente. Tinha esperança de que a polícia ainda não tivesse chegado até ali, mas logo se frustrou. Duas viaturas estavam estacionando à sua frente, e quatro policiais desembarcavam rapidamente lhe apontando suas armas.

       – Ei, você! Mãos para cima! – ordenou um dos policiais.

       – Cuidado, ele está armado! – gritou outro.

       Rubem continuou avançando alucinadamente. Quando fez menção de apontar seu revólver na direção dos agentes, veio à ordem iminente:

       – Atirem! – ordenou o Chefe de Polícia.

       Em meio ao eco dos disparos, o escritor foi alvejado por meia dúzia de tiros e desabou a poucos metros de onde havia se estatelado o corpo de seu irmão, após este ter voado pela janela.

       – Quem é esse cara? – perguntou um dos policiais, ao se aproximar da poça de sangue onde Rubem agonizava.

            – Eu sou ... um artista ... incompreendido ... – balbuciou o escritor, antes de exalar seu último suspiro.

 

FIM.

 

 

O Caso do Palhaço é um livro escrito por André Bozzetto Jr em 1999 que acabou não sendo publicado no época e, posteriormente, seus originais foram considerados perdidos, fazendo com que permanecesse inédito por mais de 20 anos. Recentemente redescoberta, a obra está sendo agora disponibilizada gratuitamente na forma de capítulos semanais no blog Relatos Noturnos.   

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