Por André
Bozzetto Junior
Além
das belezas naturais e arquitetônicas que lhe conferem o status de uma das
cidades mais bonitas do Brasil, Florianópolis possui, assim como qualquer outra
metrópole, seu lado obscuro, sinistro e – por que não dizer – maléfico. Se o
lado belo é facilmente identificado nas praias, na Ponte Hercílio Luz e no
charme clássico do Mercado Público, por exemplo, o lado sombrio requer maior
sutileza de percepção para ser observado, pois não está necessariamente fixado
em um lugar, mas sim perambulando pelas mais diversas ruas e bairros,
impregnado nos corações obscuros de quem carrega em si a marca da maldade.
É
nesta categoria de indivíduos que podemos incluir Ricardo e Juliano, dois
jovens de 19 e 18 anos respectivamente. Oriundos de famílias de classe
média-alta, se conheceram ao frequentar uma turma do 1º Ano do Ensino Médio de
uma tradicional escola particular da cidade. Frequentavam o colégio de manhã –
onde tinham má reputação, pelas seguidas reprovações e pelos frequentes
envolvimentos em casos de mau comportamento – e passavam as tardes jogando
videogame, assistindo séries de TV baixadas da internet e fumando maconha,
valendo-se da ausência – e negligência – dos pais que, como trabalhavam muito,
compensavam a falta de atenção com dinheiro e regalias. No início da noite, a
dupla ia até uma academia, onde praticava musculação e Muay Thai. Após a
atividade física, os rapazes perambulavam pelos bares do centro da cidade,
azarando garotas, bebendo cerveja e fumando mais maconha. Com pequenas
variações, esta era a rotina mantida por eles naquela época.
As
coisas começaram a mudar em uma chuvosa madrugada de sábado, onde, ao saírem de
uma festa em que haviam cheirado muita cocaína – algo que até então faziam apenas
de vez em quando – Ricardo e Juliano se dirigiram em meio a provocações e
risadas até o local onde estava estacionado o carro do segundo. Chegando ao
veículo, encontraram um mendigo – nitidamente embriagado – escorado no mesmo
enquanto tentava acender um cigarro debaixo da fina garoa que caia no momento.
–
Sai daqui, seu merda! – gritou Ricardo, derrubando o mendigo ao chão com um
forte empurrão – Vai sujar o carro com essa bunda suja!
–
Ái, seu viado! – exclamou o indigente ao cair na calçada.
Em
um átimo, Ricardo ergueu-o pela gola da camisa e tornou a derrubá-lo com um
soco no rosto, que o deixou quase desacordado.
Nesse
instante, os dois jovens se entreolharam e algo impetuoso e maléfico falou em
seus corações. Imediatamente, voltaram a erguer o mendigo do chão e,
aproveitando-se do fato de a rua estar deserta, passaram a espancá-lo
brutalmente, revezando-se em atingi-lo com os golpes que costumavam praticar na
academia.
Mais
tarde, já no carro, enquanto se dirigiam para casa, os dois rememoravam a
agressão, sentindo nisso um prazer sádico e uma empolgação perversa como até
então não haviam vivenciado.
–
Você viu o gancho de esquerda que acertei na cara dele?! – perguntou Ricardo,
em meio a risadas empolgadas – Garanto que uns dois ou três dentes se foram com
aquele golpe!
–
E a minha cotovelada giratória?! – retrucou Juliano, quase largando a direção
para reencenar o golpe – Voou sangue para todo lado!
E
assim, como em um repulsivo rito de passagem, os jovens descobriram uma forma
de elevar o seu inconsequente hedonismo a um novo patamar, dando vazão ao que
havia de mais hediondo nos recônditos de suas almas. A partir daquele fato,
quase todas as semanas passaram a ter uma noite destinada a essa repulsiva
diversão: um coquetel de álcool e cocaína como introdução, para culminar no
espancamento gratuito de algum habitante das ruas, sendo que, entre as muitas
opções, geralmente a escolha recaia sobre mendigos, prostitutas ou travestis.
Contando
com a impunidade, o novo hábito foi se intensificando com o passar do tempo.
Com o aumento no consumo de cocaína, as ausências e a piora no desempenho
escolar deixavam uma nova reprovação em iminência. Ricardo – que desconhecia
totalmente o fato de possuir uma mediunidade latente – passou a ter pesadelos
recorrentes, dos quais não se lembrava com clareza ao despertar, mas que lhe
deixavam com uma sensação de fraqueza e angústia que diminuía com a ingestão de
entorpecentes, mas só passava totalmente após a catarse sangrenta de uma nova
sessão de espancamento. Era um alívio temporário, todavia, e no dia seguinte o
sentimento incômodo estava de volta, pior do que no dia anterior. Chegou a um
ponto em que as agressões passaram a ocorrer em mais de uma noite por semana.
Às vezes duas vítimas eram atacadas em uma mesma madrugada.
Aqui
é o momento de introduzirmos um novo personagem, chamado Josias. Alcoólatra e
pervertido sexual, em meados da década de 90 ele perdeu o emprego no ramo de
construção civil em função das sucessivas faltas motivadas pela embriagues, e
foi mandado embora de casa após anos de agressões e abusos à esposa e às
filhas. Passou então a viver nas ruas, geralmente vagando pelas imediações da
Praça XV de Novembro, mendigando ou ganhando alguns trocados ajudando a
descarregar caminhões no Mercado Público e estabelecimentos circundantes,
dinheiro este que era rapidamente gasto com cachaça e prostitutas de rua. Não
raras vezes Josias agredia as mulheres após o ato sexual – em alguns casos até
com golpes de faca – e o fazia por puro prazer doentio. Essa conduta de vida
degradante, aliada a uma perversidade natural e uma sensibilidade mediúnica
jamais compreendida, fizeram com que a aura e a psicosfera de Josias fossem, ao
longo do tempo, se impregnado cada vez mais de energias deletérias e miasmas
astrais que se tornaram um convite irrecusável para entidades obsessoras que,
como uma horda trevosa, se fixou em seu decadente campo energético e passou a
segui-lo por todo lugar, incentivando psiquicamente seus atos repulsivos e com
eles se comprazendo.
Foi
este mesmo cambaleante Josias – já com mais de 60 anos de idade – que deu de
cara com Ricardo e Juliano em uma noite de sexta-feira, ao dobrar uma esquina
próxima à Praça XV de Novembro. Inicialmente, os rapazes estavam seguindo uma
prostituta que passara por ali, mas, assim que avistaram o velho mendigo, o
foco de seu interesse mudou. Na verdade, o que aconteceu foi que as entidades
trevosas que circundavam Josias imediatamente reconheceram nos rapazes um
padrão energético muito semelhante e se sentiram atraídas, principalmente por
Ricardo que, em função de sua condição mediúnica, exsudava abundante fluído
vital de seu corpo etéreo, já devidamente impregnado de miasmas maléficos. Com
essa identificação, a atração mútua foi imediata.
Minutos
depois, quando corria ao lado de Juliano deixando para trás o mendigo estirado
na calçada em uma poça de sangue, Ricardo sentiu a euforia e o êxtase habitual
da circunstância, mas sentiu também algo diferente que não sabia exatamente
como definir – a sensação de que algo havia mudado, a impressão de que uma
energia diferente passava a ganhar força em seu interior… No plano extrafísico,
ele tinha agora novas companhias.
Josias,
por sua vez, foi levado entre a vida e a morte ao Pronto-socorro. Apesar das
condições deploráveis de seu corpo, que nunca mais se recuperaria totalmente,
ele sentia, no estado de semiconsciência em que se encontrava, como se
estivesse intimamente melhor do que jamais se sentira em anos. Era uma espécie
de alívio, como se o brutal espancamento a que fora submetido tivesse o poder
purificador de amenizar o fardo que maculava sua alma…
Para
Ricardo, a partir desta noite as coisas saíram definitivamente de controle. A
sensação de pesadelo era praticamente permanente. Bastava fechar os olhos para
que vultos disformes e ameaçadores passassem a rondar o seu entorno. Vozes eram
ouvidas o tempo inteiro, ora dando risadas, ora incentivando as mais
abomináveis atitudes e por vezes fazendo ameaças. O consumo de álcool e cocaína
aumentava drasticamente, mas nada resolvia. A sensação era de que apenas ir
para as ruas e fazer o sangue de algum incauto jorrar era o que aliviaria a
pressão.
Juliano
percebeu a mudança no amigo e ficou preocupado, principalmente quando ele
passou a exigir que saíssem “para caçar” praticamente todas as noites,
sugerindo inclusive que fizessem isso de dia, em bairros mais ermos. Acreditou
que era o excesso de drogas que estava tornando o companheiro psicótico e, como
todas as sugestões para ter cautela e pegar mais leve não surtiam resultado,
decidiu se afastar por um tempo, como medo de que alguma atitude idiota
acabasse revelando a verdade aos pais.
Passou-se
mais de uma semana sem que Juliano tornasse a ver Ricardo, pois este
simplesmente não apareceu mais na escola. Diziam que estava doente. Certa
tarde, porém, Ricardo ligou para a sua casa, exigindo a presença do amigo.
Juliano logo percebeu que o colega estava muito transtornado e tentou inventar
uma desculpa para não ir até o apartamento do outro, mas como este insistiu,
inclusive ameaçando procura-lo em sua própria casa se fosse necessário, acabou
concordando. Seria melhor assim do que correr o risco de aquele maluco aparecer
em um horário em que seus pais estivessem presentes, ferrando com tudo.
Faltava
pouco para o entardecer quando Juliano chegou ao apartamento de Ricardo. Ele
sabia que naquele horário o amigo estava sozinho, pois os pais estavam
trabalhando e a irmã mais nova no cursinho de inglês. Como a porta estava
aberta, foi entrando lentamente e de imediato se sentiu invadido por uma sensação
incômoda, pois havia no local uma estranha atmosfera, tão opressiva e
ameaçadora que chegava a ser quase palpável. Todos os cômodos estavam com as
janelas e cortinas fechadas, de forma que a penumbra conferia um aspecto ainda
mais sinistro ao local.
Ao
se aproximar do quarto de Ricardo, Juliano teve dificuldades para vislumbrar
qualquer coisa, pois a única luminosidade do aposento vinha da tela do
computador que se encontrava ligado sobre a escrivaninha. Seu coração disparou
quando ele começou a ouvir uma voz sussurrada vinda lá de dentro:
–
Demônios… Vampiros… Espíritos do mal…
Tremulamente,
Juliano empurrou a porta e viu, em meio à penumbra, Ricardo encolhido, sentado
no chão, no canto do quarto. Ele parecia estar nu.
–
Ectoplasma… Eles querem meu ectoplasma… – balbuciava Ricardo.
–
Do que você está falando, cara? – questionou Juliano ao entrar lentamente no
quarto, tentando não demonstrar estar apavorado.
–
Eu li na internet – disse Ricardo, apontando para o computador – Acho que os
espíritos do inferno querem sugar meu ectoplasma…
–
Ecto… Ecto, o que? – indagou Juliano.
–
Ectoplasma, seu burro! Eles querem me sugar, me chupar todinho!
–
Cara, você está precisando de ajuda!
–
Estou mesmo! – concordou Ricardo, abrindo os braços em um gesto como se pedisse
um abraço.
–
Meu Deus! – gritou Juliano, apavorado, ao perceber que os braços do amigo
estavam cheios de cortes e sujos de sangue.
–
Ah, é o sangue? – disse Ricardo, ao olhar para os próprios braços, como se
tivesse demorado a entender a razão do espanto do amigo – O sangue os aquieta…
Faz eles se acalmarem…
–
Cara, você precisa de um médico! – gritou Juliano, já com lágrimas nos olhos.
–
Psiu! – retrucou Ricardo, colocando o dedo entre os lábios, em sinal de
silêncio – Assim você vai acordá-los! Eles estão dormindo!
–
Onde… Onde estão dormindo? – perguntou Juliano, olhando ao redor
desconfiadamente.
–
Em mim. – respondeu Ricardo, apontando para o próprio peito, onde mais marcas
de cortes eram visíveis – Eles dormem em mim.
Prestes
a entrar em pânico, Juliano começou a andar lentamente na direção do corredor.
–
Já está quase anoitecendo. – disse Ricardo, levantando e avançando na direção
do amigo – Sempre piora durante a noite. Você vai me ajudar a conseguir mais
sangue para acalmá-los?
Juliano
finalmente cedeu ao pavor e saiu correndo. Parecia tão transtornado ao passar
pela guarita na entrada do condomínio que Valcir, o porteiro, chegou a segui-lo
até a calçada para perguntar o que estava acontecendo. Porém, o enlouquecido
rapaz se pôs a atravessar a rua correndo, sem olhar para lado algum e, após
desviar milagrosamente de um carro que vinha da direita, foi atingido por um
ônibus que vinha da esquerda.
Valcir
correu para socorrê-lo e logo viu que a situação era grave. Várias pessoas
desceram do ônibus e vieram da calçada fotografando tudo com seus celulares.
Antes mesmo da chegada dos paramédicos ou da polícia, jornalistas já estavam no
local e, na manhã seguinte, um popular periódico da cidade teria estampado na
sessão policial a foto de Valcir amparando um jovem ensanguentado no meio da
rua, o que o tornaria uma espécie de celebridade no seu bairro.
O
caso só não tomou dimensões ainda maiores porque, cerca de duas horas depois de
Juliano ser levado em estado grave ao hospital, um novo acontecimento no mesmo
prédio abafou completamente a relevância do primeiro. Valcir recebeu uma
ligação de moradores pedindo que chamasse a polícia, pois algo sério estava
acontecendo no quarto andar. E estava mesmo. Um rapaz chamado Ricardo, que os
vizinhos diziam ser usuário de drogas, surtou e atacou a mãe e a irmã com uma
faca assim que elas chegaram em casa. Felizmente não foram feridas com
gravidade. O jovem foi levado sedado ao hospital. Depois, decerto seria
internado em uma clínica de reabilitação, embora alguns moradores dissessem que
ele deveria ser preso.
Valcir
já tinha visto Juliano e Ricardo juntos e sabia que eles tinham algo em comum.
Seria só o vício em drogas? Ele achava que não. Acreditava que havia algo mais,
alguma coisa que não sabia explicar – mas que certamente era maléfica –
relacionada àqueles rapazes. Por via das dúvidas, do dia seguinte em diante,
passou a manter uma estatueta de São Jorge no canto do balcão da sua guarita, a
quem dedicava uma oração no início de cada turno de trabalho.
–
Com certas coisas rondando por aí à noite, só mesmo com a proteção de Santo
Forte. – dizia ele, fazendo o sinal da cruz.
* Conto publicado originalmente em 2016, no blog perdido.co, sob o pseudônimo de André Caboclo.