26 de jan. de 2021

A MÃO VERMELHA


 

Por André Bozzetto Junior

            Padre Hipólito já caminhava em círculos diante da casa canônica há mais de uma hora, quando subitamente uma Belina estacionou com uma freada brusca diante da calçada. Do interior do veículo desembarcou apressadamente um homem de meia idade, com cabelos desgrenhados e barba por fazer. A batina preta não deixava dúvidas quanto à identidade do sujeito, e a sua maneira de caminhar – ligeiramente trôpega – acompanhada do forte cheiro de uísque que parecia impregnar suas vestes deixava claro que os boatos acerca de seu alcoolismo eram mais do que verdadeiros.

            – Padre Hipólito? – inquiriu o recém-chegado, em um tom de voz arrastado.

            – Sim. – respondeu o outro sacerdote, com rispidez – E você certamente é o Padre Sérgio. Eu o aguardo há horas!

            – Vim tão logo o Bispo me ligou... Mas, o senhor sabe, Porto Alegre não fica tão perto e essas estradas são terríveis! Não me admira que o senhor tenha sido o único sacerdote da Congregação que aceitou assumir está paróquia! Que cafundó!

            – Não fale assim! As pessoas daqui são muito simples, mas trabalhadoras e tementes a Deus! Por isso mesmo precisam tanto de nosso suporte espiritual. Mas agora chega de conversa! Logo vai anoitecer e precisamos partir imediatamente para a residência da família Ricci. A fazenda deles fica há 20 quilômetros daqui e a estrada é ainda pior do que aquela que você acabou de cruzar.

            – Certo, certo! Vamos com seu carro ou com o meu?

            – Eu é que não saio com você no volante! Vamos com o meu!

            Enquanto se encaminhavam para o Fusca estacionado na entrada da garagem da casa paroquial, Padre Sérgio retirou um pequeno frasco metálico do bolso da calça oculta sob a batina e bebeu um longo gole no gargalo.

            – O Bispo sabe que você bebe desse jeito?! – inquiriu Padre Hipólito, em tom de reprovação.

            – É claro que sabe! – respondeu o outro sacerdote, sem disfarçar a irritação – E se você conhecesse um pouco melhor o trabalho da Mão Vermelha, concordaria que essa e outras concessões são mais do que merecidas para compensar o tipo de coisa que precisamos fazer!

            – Realmente, nunca fiz questão de saber mais sobre essa ramificação da Mão Vermelha. Aliás, até hoje não compreendo como o Vaticano permite que a nossa Congregação mantenha algo assim.

            – Pois você deveria ser grato por não precisar saber! Goste ou não da ideia, o fato é que o Vaticano não só permite como também subsidia a Mão Vermelha por um único motivo: ela é um mal necessário!

            Padre Hipólito resmungou, contrariado, mas preferiu não levar adiante a discussão. Afinal, ele próprio telefonara ao Bispo pedindo ajuda, e se foi designado em seu socorro aquele sacerdote sombrio e beberrão, decerto era porque ele saberia o que fazer.

            A dupla de clérigos embarcou no Fusca e rumou para a área rural do município através de uma estrada poeirenta e esburacada. O sol descia rapidamente por detrás dos morros no extremo oeste do vale, e o Padre Hipólito remexeu-se inquieto ao volante quando constatou que já seria praticamente noite quando chegassem ao seu destino.

            – E então? – disse o Padre Sérgio, quebrando o silêncio que durava desde o início da viagem – Pode me explicar a situação?

            – Não há muito o que dizer além do que já relatei ao Bispo e que certamente ele lhe informou: Há duas noites atrás, o senhor Ricci veio até mim desesperado, dizendo que a sua filha de dezoito anos havia sido possuída pelo demônio e que eu precisava ajudá-la. Mesmo relutante, acabei indo até lá, mas quando cheguei, ao amanhecer, a moça dormia tranquilamente no porão onde havia sido trancada, sem que houvesse qualquer sinal de anormalidade além do fato de ela estar nua e com o corpo coberto de cicatrizes, que me pareceram antigas.

            – Como eram essas cicatrizes?

            – Não sei lhe explicar, mas eram estranhas. Os pais da moça disseram que essas marcas surgiram no corpo dela algumas semanas antes, quando estava perto do estábulo, ao entardecer e, de repente, desapareceu. Acabou sendo encontrada no meio do mato apenas no dia seguinte, em estado de choque. Até hoje diz não se lembrar do que aconteceu ou como aqueles ferimentos surgiram em seu corpo.

            – Entendo. E depois?

            – Bem, admito que cheguei a desconfiar que alguém estivesse... Abusando da moça e que aquela história de possessão fosse apenas uma desculpa para tentar encobrir a verdade. Saí dizendo à família Ricci que me chamasse novamente caso algo de estranho voltasse a acontecer. Passei o dia inteiro pensando no assunto e cogitei até mesmo ir à polícia solicitar uma investigação, e só não fiz isso porque preferi antes consultar o Bispo, o que pretendia fazer na semana seguinte, quando viajaria até Porto Alegre. Porém, ontem à noite o senhor Ricci reapareceu ainda mais desesperado do que na ocasião anterior, dizendo que estava acontecendo tudo de novo e praticamente me arrastou com ele. Quando chegamos à residência da família, encontrei todos na cozinha, rezando diante de uma imagem da Virgem Maria, e do porão, onde deveria estar trancada a moça, vinham os sons mais terríveis e pavorosos que jamais imaginei que um dia poderia ouvir em minha vida. Aquilo que estava lá embaixo batia furiosamente na porta tentando sair, e só não conseguiu porque o senhor Ricci e seus dois filhos mais velhos pregaram várias tábuas para reforçar o bloqueio.

            – Eu acredito... E o que aconteceu a seguir?

            – Eu juntei-me àquelas infelizes pessoas e entoei súplicas ao Nosso Senhor para que Ele findasse o tormento que se abatia sobre aquela casa. Porém, o terror continuou até o amanhecer, quando o silenciou voltou ao porão. Com muito custo, convenci a família a destrancar a porta e, pedindo proteção a Deus, desci até lá embaixo. Como na noite anterior, a moça estava dormindo pesadamente, como se nada tivesse acontecido. Em seguida, corri de volta à cidade e liguei para o Bispo contando tudo. Foi então que ele me assegurou que enviaria imediatamente alguém para auxiliar-nos. No caso, você.

            – Perfeito. Acho que já sei do que se trata. Mas, você deve prevenir aquela família para o pior. Creio que esse não seja um simples caso de possessão e, se eu estiver certo, podem ser necessárias medidas drásticas.

            Mediante as graves palavras do outro sacerdote, Padre Hipólito cogitou pedir esclarecimentos, mas desistiu ao se dar conta que já estavam chegando à casa da família Ricci. Neste momento, o sol já havia se posto e a noite apossava-se da situação. Quando a dupla de clérigos adentrou a residência, encontrou o casal e os dois filhos mais velhos reunidos na cozinha, aparentando enorme apreensão. Por detrás da porta que isolava a escada de acesso ao porão, uma chorosa voz feminina se fazia ouvir:

            – Me deixe sair, pai! Estou com medo de ficar aqui!

            – Abram essa porta! – ordenou Padre Sérgio.

            – Mas já anoiteceu... – ponderou o senhor Ricci – E quando anoitece o demônio encarna nela!

            Sem dizer mais nada, Padre Sérgio abriu a porta com truculência e desceu ao porão em companhia apenas do colega de sacerdócio. Logo a dupla de clérigos avistou a garota encolhida em um canto do porão e bastou uma rápida análise nas cicatrizes que ela ostentava pelo corpo para que o membro da Mão Vermelha compreendesse que as suas piores previsões estavam corretas.

            – Suba e comece a confortar aquelas pobres pessoas. – disse Padre Sérgio, retirando um revólver de dentro da maleta que trazia a tiracolo – Para salvar a alma desta jovem, precisaremos condenar o seu corpo.

            – Mas o que você está fazendo, seu louco! – gritou Padre Hipólito, arrancando a arma das mãos do outro – Eu mandei chamar um exorcista e não um assassino!

            – Me devolva essa arma, Padre! Compreenda que essa garota não está sendo possuída por demônio algum! Ela foi atacada por um licantropo e agora apenas a prata pode purificar seu corpo e libertar sua alma!

            Padre Hipólito tentou retrucar algo, mas sua voz foi completamente encoberta por um urro aterrador que ressoou vindo da direção de onde se encontrava a moça. Os dois sacerdotes olharam simultaneamente para aquele canto e puderam ver por entre as sombras do ambiente a silhueta enorme do monstro horrendo que se aproximava rapidamente. Antes que os clérigos pudessem fugir ou esboçar a menor das reações, a criatura agarrou o Padre Hipólito pelo pescoço, suspendeu-o no ar e arremessou-o de encontro à parede, no outro lado do ambiente.

            Por sua vez, Padre Sérgio acompanhou com os olhos aquele insólito vôo humano, muito mais interessado na arma que o outro tinha em mãos do que em qualquer outra coisa. Quando Padre Hipólito desabou pesadamente sobre um barril que se encontrava no extremo oposto do recinto, o revólver escapuliu de suas mãos e, com uma agilidade surpreendente para alguém que instantes antes parecia completamente bêbado, Padre Sérgio ajuntou-o do chão e no segundo seguinte já o tinha apontado para a cabeça da monstruosa criatura. Um único tiro ecoou pelo porão, acompanhado de um uivo de agonia que pareceu emanar do próprio inferno.

            Quando o Padre Hipólito conseguiu se levantar, com notável dificuldade, constatou perplexamente que não havia mais monstro algum no ambiente. Em seu lugar, jazia o corpo lívido e ensanguentado da filha caçula da família Ricci.

            – Por Cristo! E agora?! – indagou o chocado sacerdote.

            – Agora suba até lá e console aquela família. É isso que lhe cabe. – respondeu Padre Sérgio, em um tom grave e ao mesmo tempo melancólico.

            – E você?!

            – Eu tenho as mãos vermelhas, lembra, Padre? Vermelhas de sangue. Eu faço o serviço sujo... E meu trabalho aqui já acabou. Esperarei lá fora.

            Sem dizer uma palavra, Padre Sérgio cruzou pelo angustiado grupo de pessoas na cozinha e saiu para o pátio. Bebeu de uma só vez todo o conteúdo que ainda restava em seu pequeno frasco metálico e depois se sentou na beira da estrada. Puxou um amassado maço de cigarros do bolso e permaneceu fumando em silêncio enquanto ouvia o choro convulsivo e os gritos desesperados que vinham do interior da casa. A família já estava sabendo da verdade.

A BALADA DO COYOTE


 

Por André Bozzetto Junior

            E então?! – questionou Sonny com impaciência, tão logo o irmão adentrou na sala – Por que demorou tanto?!

            Por que demorei tanto?! – repetiu Freddy, apontando o dedo para o próprio rosto que se encontrava coberto de hematomas e escoriações – Por que eu estava apanhando até agora! Isso responde a sua pergunta?!

            E o que eles disseram?! – perguntou Sonny, cortando as prováveis lamúrias do irmão.

            Aquilo que já esperávamos: nada de acordo! – respondeu o mais novo dos irmãos Coltrane – Amanhã de manhã Raul Prado virá buscar o dinheiro!

            Merda! – esbravejou Sonny, atirando o chapéu no chão – Mas se eles pensam que levarão o meu dinheiro estão muito enganados! Não vou pagar nada!

            Então eles vão nos matar. – ponderou Freddy, em tom desanimado – É simples assim.

            Por que vocês não pedem ajuda ao xerife Dillon? – perguntou o velho Thomas, que até então se encontrava calado, sentado em uma cadeira no canto da sala.

            Ora, velhote, você está desinformado! – retrucou Sonny – Dillon morreu no mês passado! Cursed já teve outros dois xerifes depois dele! E, infelizmente, o atual é capacho dos irmãos Prado!

            Podemos pegar em armas e nos defender... – sugeriu Kaiowa, um ancião apache que vivia há décadas na fazenda dos irmãos Coltrane e que, naquele momento encontrava-se sentado à porta, fumando um cachimbo.

            E você acha que teríamos alguma chance, seu cara vermelha?! – gritou Sonny, escabelando-se – Thomas está tão velho e acabado que mal conseguiria erguer uma winchester! Você só serve para ficar o dia inteiro fumando essas ervas fedorentas, e Freddy é um atirador tão ruim que até hoje jamais acertou um disparo!

            Acertou sim! Em mim! – exclamou Thomas – Tenho a bala na minha nádega até hoje!

            Eu já me desculpei um milhão de vezes! – retrucou Freddy, em tom de mágoa – Você sabe que eu tentei acertar o coiote!

            Estão vendo?! – resmungou Sonny – É por isso que não teríamos a menor chance em um confronto contra aquele trio de chacais!

      Coyote! Coyote! – gritou Thomas, levantando-se empolgadamente da cadeira.

            Ah, não me venha contar pela milésima vez a história em que Freddy baleou você tentando acertar um coiote! – esbravejou o mais velho dos irmãos Coltrane – Não temos tempo para isso!

            Não! Eu estou falando do Coyote! Andrew Coyote! – insistiu Thomas.

               O matador de aluguel?! – indagou Freddy, intrigado.

            Claro! – respondeu o ancião, com grande empolgação – Como pude me esquecer?! Coyote está em Cursed! Fiquei sabendo que ele está morando em um pequeno rancho do outro lado da antiga ferrovia!

            Poderíamos contratá-lo! – complementou Freddy, exultante – Pela fama que ele tem, certamente poderia dar conta dos irmãos Prado!

            Será que ele aceitaria o serviço? – indagou Sonny, com desconfiança.

            Evidentemente! – exclamou Freddy – Afinal, é o trabalho dele! Basta pagar o preço!

            Prefiro dar tudo que eu tenho a ele do que para aqueles calhordas dos irmãos Prado! – resmungou Sonny.

            Então não vamos perder tempo! – concluiu Thomas – Irei procurá-lo agora mesmo, pois não pretendo ficar zanzando por aí depois que anoitecer!

            Sem mais delongas, o ancião foi acompanhado pelos amigos até o pátio, montou no melhor cavalo da fazenda e partiu a galope sob os olhares esperançosos dos três companheiros.

            Vocês são loucos em deixar o Tio Thomas sair agora! – exclamou em tom de desaprovação uma voz feminina vinda da porta da casa – É óbvio que ele não vai conseguir voltar antes que escureça! E vocês sabem muito bem o que isso significa, não é mesmo?

            Os três homens voltaram-se na direção da residência e depararam-se com Evelyn, a filha adolescente de Sonny.

            Querida, eu já não lhe disse para parar de ficar pelos cantos ouvindo nossas conversas?! – exclamou Sonny – Isso é assunto de homens!

            Não seria mais fácil de resolver toda essa confusão se você simplesmente pagasse o que deve?! – indagou a moça, ignorando a repreensão do pai – Acho ridículo alguém apostar tanto dinheiro nas cartas se depois não quer pagar!

            Não é tão simples, Evelyn! Miguel Prado trapaceou durante o jogo inteiro, e quando eu reclamei ele me ofendeu, me esbofeteou diante de todo o Saloon de Billy Monstrengo e ainda me arremessou pela janela! É sobre reputação que eu estou falando! Ninguém me humilha desta maneira! Jamais darei a ele um único dólar!

           Você também vive trapaceando nesses jogos! Aliás, será que existe alguém que não trapaceia?!

             Eu não trapaceei! Miguel Prado foi quem trapaceou!

            Então por que você simplesmente não o desafiou para um duelo, como qualquer homem honrado faria?! – insistiu Evelyn, com petulância.

            Constrangido, Sonny desistiu de discutir com a moça e lhe deu as costas lamentando internamente pela morte prematura da esposa. Talvez, se ela estivesse viva, saberia como lidar melhor com a rebeldia da filha.

            Depois das tensões da tarde, a noite chegou e com ela veio também a sombria desconfiança de que as piores previsões de Evelyn estavam corretas. Thomas não retornou.

            Talvez ele tenha decidido passar a noite no Saloon de Billy Monstrengo... – especulou Freddy, sem muita convicção.

            Ou foi pego por um espírito da noite. – sugeriu Kaiowa, de forma bem menos otimista.

            Quando chegou a meia-noite, todos concordaram que não seria apropriado permanecerem em vigília, pois a luminosidade dos lampiões poderia atrair visitantes indesejados. Assim, desistiram de esperar e optaram por recolherem-se aos seus respectivos dormitórios.

            O fato é que o velho Thomas nunca mais voltou e jamais se soube exatamente o que aconteceu com ele. Durante os anos seguintes, passou a circular por Cursed City o boato de que ele também era visto a bordo do trem fantasma que, de tempos em tempos, era avistado por algum incauto circulando pela antiga ferrovia abandonada, repleto de almas de indivíduos que, de uma maneira ou de outra, encontraram um fim violento para as suas vidas miseráveis. Mas isso, obviamente, era algo impossível de ser comprovado, pelo simples fato de ninguém em sã consciência se arriscaria a ir até lá no meio da noite apenas satisfazer uma vã curiosidade. Circular pelas bandas da decadente estrada de ferro era algo a se fazer apenas em casos de extrema necessidade e, ainda assim, poucos dos que para lá se dirigiam retornavam para contar suas histórias de aparições e almas penadas.

            Contudo, se o velho vaqueiro não mais retornou, um outro sujeito apareceu na fazenda tão logo o dia clareou. Todos estavam na cozinha, quando o som melodioso de um violão se fez ouvir, acompanhado de uma voz suave que cantarolava uma música desconhecida:

              And here's to you, Mrs. Robinson,
             Jesus loves you more than you will know. Wo wo wo.
            God bless you please, Mrs. Robinson,
            Heaven holds a place for those who pray
            Hey hey hey, hey hey hey.

            Mas que cantoria é essa?! – resmungou Sonny, um segundo antes de dirigir-se para a porta em companhia dos demais habitantes da casa e avistar, com indisfarçável perplexidade, o indivíduo que se aproximava.

            O recém chegado era um homem jovem que tinha os cabelos negros cuidadosamente ensebados e penteados para trás. Trajava um terno azul com gravata borboleta e botas de bico fino. De seu pescoço pendia um chapéu branco preso por uma tira de couro preta e em suas mãos ele ostentava um violão de aparência antiga e mal conservada.

            Bom dia! – disse o sorridente visitante, curvando-se em um gesto cordial – Sou Andrew Coyote, do Alabama, à sua disposição!

            Esse é o tal pistoleiro?! – cochichou Sonny com o irmão – Nem arma ele parece carrega!

            Talvez ele seja como Guitar Jim... – ponderou Freddy – Aquele cara que tinha um revólver escondido em um fundo falso do violão.

            Para mim esse sujeito está parecendo efeminado demais para ser um terrível matador! – insistiu Sonny.

            Dê uma chance a ele! – retrucou o irmão mais novo – Não temos outra alternativa mesmo!

            Tentando disfarçar a desconfiança, Sonny aproximou-se do recém chegado e apertou sua mão.

            Sou Sonny Coltrane. Aquele ali é meu irmão Freddy e o apache chama-se Kaiowa. Apesar de feio ele é inofensivo.

            E aquela dama tão formosa? – perguntou Coyote, sorrindo insinuantemente para Evelyn, que, por sua vez sorria, sorria de volta.

            É minha filha, Evelyn. – respondeu o patriarca, com certa rispidez – Vamos entrar, pois precisamos conversar.

            Sem perda de tempo, Sonny perguntou se Coyote não tinha noticias de Thomas e o rapaz prontamente respondeu que não, explicando que, após visitá-lo em seu rancho, o velho foi embora e depois disso ele não mais o viu. Mesmo reticente, o patriarca deu prosseguimento à conversa e disse que Coyote deveria acabar com o trio de irmãos Prado que, em breve, aparecia para cobrar um dívida de jogo, fosse em dinheiro ou em sangue.

            Está vendo isso? – continuou Sonny, mostrando um volumoso saco de tecido – É o dinheiro que os irmãos Prado querem tomar de mim. Ele será todo seu se você nos livrar daquele trio de vermes!

            Confesso que nunca fui muito apegando a dinheiro. – retrucou Coyte, em meio a um sorriso.

            Pois eu lhe darei qualquer coisa! – insistiu o fazendeiro – Acabe com aqueles nojentos, peça o quiser e eu lhe darei! É simples assim!

            Sonny! Sonny! – gritou Freddy, entrando na sala afobadamente – Ramon Prado está vindo aí!

            Ótimo! Agora é com você! – exclamou o mais velho dos irmãos Coltrane, apontando o dedo para Andrew Coyote.

            Mas, já?! – indagou o rapaz – No meio da manhã?!

            Percebe-se que você é novo em Cursed. – disse Freddy – Aqui as contas são acertadas de dia. Ninguém perambula impunemente pela noite.

            Pegando Coyote pelo braço, Sonny o conduziu até a entrada principal da residência e praticamente o empurrou para fora, trancando a porta em seguida. Mesmo demonstrando uma inesperada insegurança, o rapaz andou na direção do segundo dos irmãos Prado, que acabava de desmontar do cavalo.

            Bom dia, amigo! – exclamou Coyote, com o sorriso que lhe era característico.

            E então?! Coltrane vai pagar o que deve ao meu irmão, sim ou não! – Vociferou Ramon Prado, ignorando a cordialidade com que foi recebido.

            Infelizmente, não. – respondeu o rapaz – Sonny mandou avisar que não vai pagar nada.

            Ah, é mesmo?! – retrucou o outro – Então deixe esse recado para ele!

            De forma súbita, Ramon Prado desferiu um violento soco no rosto de Coyote, que, surpreendido, tombou pesadamente no chão poeirento. Sem perder tempo, o agressor se aproximou do rapaz e desferiu contra ele meia dúzia de chutes que o atingiram no estômago, nas costelas e no rosto.

            Como se querendo concluir o espancamento de forma apoteótica, Prado ajuntou o violão que Coyote trazia a tira colo e, com um único e vigoroso golpe, quebrou-o contra a cabeça do próprio dono.

            Agora vocês já sabem o que lhes espera quando eu voltar com meus irmãos! – exclamou Ramon, um instante antes de montar em seu cavalo e partir a galope, levantando poeira pela estrada.

            Um minuto depois todos os moradores da fazenda já estavam no pátio, observando perplexamente o ensanguentado Andrew Coyote tentando juntar os pedaços de seu violão.

            Por Manitu! Que surra! – exclamou Kaiowa.

            Isso não é nada. – retrucou Coyote – O pior foi ele ter quebrado o meu violão!

            Meu Deus! Como o famoso Andrew Coyote é espancado desse jeito sem nem ao menos reagir?! – esbravejou Sonny.

            Eu estava despreparado. – respondeu o rapaz, mais preocupado com seu instrumento musical.

            Agora Ramon irá voltar com o resto dos irmãos Prado e vão acabar com a nossa raça! – desesperou-se Freddy.

            Não se preocupem... – disse Coyote, em tom sereno – Quando eles voltarem o negócio vai ser diferente. Podem deixar comigo.

            Compreensivelmente, ninguém levou a sério as palavras do cada vez mais desmoralizado matador de aluguel. Kaiowa foi o que se revelou mais cético a ponto de, discretamente, esgueirar-se até o estábulo e literalmente picar a mula. Fugiu montando em jumento e nunca mais apareceu por aquelas bandas. Tempos depois, surgiu em Cursed City o boato de que o velho apache havia se estabelecido como ajudante de um traficante de armas em Tijuana, no México, mas tal boato, assim como tantos outros que circulavam sobretudo no Saloon de Billy Monstrengo, nunca veio a ser comprovado.

            Por sua vez, Sonny voltou para o interior da residência em companhia do irmão e da filha. Estava tão furioso que chutava as cadeiras que encontrava pela frente.

            Esse tal Coyote mais parece uma ovelhinha! – esbravejou o fazendeiro – Estamos ferrados!

            Talvez ele ainda possa nos ajudar... – ponderou Freddy, sem muita convicção – Se não acreditarmos nisso só nos restará fugir!

            Nunca abandonarei minhas terras e meu gado!

            Então por que você simplesmente não paga o que deve e resolve esse problema de uma vez por todas?! – intrometeu-se Evelyn.

            Jamais! – gritou Sonny – Prefiro morrer a pagar um dólar sequer!

            Então vou rezar para que seu desejo se realize! – retrucou a moça, antes de correr e trancar-se em seu quarto.

            Alheio a discussão que ocorria no interior da casa, Coyote sentou-se na varanda e, com muita concentração e empenho, dedicou-se a tarefa de tentar consertar o violão quebrado. Passou praticamente toda a tarde entretido com esse objetivo e quando finalmente conseguiu deixar o instrumento em condições de ser tocado – pelo menos de forma improvisada – já estava anoitecendo.

            Ao perceber que Evelyn o observava através da janela de seu quarto, o rapaz sorriu para ela e começou a entoar uma canção:

Sweet home Alabama where the skies are so blue.
   Sweet home Alabama, Lord, I'm coming home to you.
   Sweet home Alabama where the skies are so blue.
   Sweet home Alabama, Lord, I'm coming home to you.

            A moça sorria, divertindo-se com a música e Coyote seria capaz de cantar para ela durante a noite inteira se a performance não tivesse sido bruscamente interrompida pelos gritos de Freddy, que a mais de uma hora encontrava-se plantado junto à porteira da fazenda.

            Eles estão vindo! Os irmãos Prado estão chegando!

            Em uma atitude pretensamente heroica, Freddy posicionou-se com uma winchester por sobre a cerca de madeira e esperou até o momento em que julgou que o trio de cavaleiros inimigos já se encontrava ao alcance de suas balas. Nervosamente, descarregou a espingarda contra os rivais sem acertar um tiro sequer.

            Sonny, que assistiu a tudo da porta de sua residência, não chegou a se surpreender com a péssima pontaria do irmão, da mesma forma que também não ficou surpreso ao ver o corpo de Freddy desabar com uma bala na testa um segundo depois do estrondo de um tiro ecoar da direção da estrada. Afinal, todos os membros da família Prado carregavam o status de exímios atiradores.

            Assim que adentraram a porteira da propriedade, os irmãos Prado deram mais uma demonstração de que a fama de pistoleiros quase imbatíveis que acompanhava a família era mais do que justificada. Com grande destreza, Miguel Prado sacou seu colt e, com um único disparo, abateu Andrew Coyote, fazendo-o tombar ao chão com uma bala no peito tão logo este havia se levantado da varanda.

            Apavorado, Sonny simplesmente saltou para dentro de casa e trancou a porta detrás de si.

            Achando graça da situação, uma a um os irmãos Prado desmontaram calmamente de seus cavalos. Eles sabiam que Sonny Coltrane era muito avarento para abandonar seus bens e covarde demais para tentar enfrentá-los. Certamente estaria enfiado debaixo da cama, rezando por um milagre.

            Em meio às risadas, Raul passou ao lado do corpo de Coyote e ajuntou seu violão. Em tom de deboche, começou a dedilhar grosseiramente as cordas do instrumento enquanto improvisava versos de ofensa aos Coltrane, estimulando ainda mais as gargalhadas dos irmãos.

            O trio estava tão absorvido na diversão que nenhum de seus membros percebeu quando Andrew Coyote abriu os olhos e levantou-se sorrateiramente. Apenas Evelyn viu – através de uma fresta na janela de seu quarto – quando o famoso matador de aluguel despiu-se silenciosamente sob a luminosidade pálida da lua cheia que acabara de raiar. Somente a espantada garota percebeu que o corpo do rapaz – que se revelou repleto das mais variadas e bizarras cicatrizes – estava distendendo-se e aumentando de envergadura, ao mesmo tempo em que presas pontiagudas emergiam de sua boca e garras afiadas brotavam de seus dedos. Quando a metamorfose se completou, o rapaz de aparência pacata havia desaparecido e em seu lugar estava um monstro de quase três metros de altura, recoberto por uma densa camada de pêlos negros e ostentando uma horrível carranca de feições lupinas.

            Com uma agilidade impressionante, a enorme criatura urrou e saltou na direção de Raul Prado. Como estava com o violão nas mãos, o surpreso pistoleiro instintivamente tentou defender-se desferindo um pontapé contra o monstro. Porém, o lobisomem agarrou sem dificuldades a perna do infeliz, girou-o no ar como se fosse um mero saco de batatas e bateu com a sua cabeça de encontro a um dos pilares que sustentava a varanda, fazendo com que o seu crânio se despedaçasse ao mesmo tempo em que uma parte do teto desabou.

            Mesmo estando terrivelmente espantados, Miguel e Ramon sacaram seus revólveres e dispararam uma saraivada de tiros contra o monstro. Alvejada, a criatura urrou de dor, cambaleou para trás e chegou mesmo a cair ao chão, mas apenas por um breve instante. Quando as balas dos pistoleiros acabaram, o lobisomem se levantou e partiu para cima deles sem lhes dar chance de recarregar suas armas.

            Com uma única e violenta patada, o mostro atingiu o peito de Ramon e o arremessou dentro do bebedouro dos cavalos – que àquela altura já havia fugido relinchando apavoradamente. Antes que Miguel pudesse escapar, o lobisomem agarrou-o pelo pescoço e suspendeu-o no ar. Com um golpe brutal desferido com suas garras afiadas, a criatura rasgou o ventre de sua vítima, fazendo com que suas entranhas escorressem de encontro ao chão arenoso.

            Enquanto gritava de dor e desespero, Miguel sentiu as próprias vísceras sendo enroladas pelo monstro ao redor de seu pescoço e, dentro de poucos segundos, sua voz foi agonizantemente sufocada para sempre.

            Sentindo tanta dor a ponto de supor que estava com algumas costelas quebradas, Ramon rastejou para fora do bebedouro, mas não conseguiu percorrer mais do que dois ou três metros antes que o lobisomem o alcançasse. Pisando nas costas de sua vítima para imobilizá-la, o mostro agarrou a cabeça do último dos irmãos Prado e – emitindo um urro de triunfo e satisfação – arrancou-a do corpo e arremessou-a para longe.

            Quando Andrew Coyote chutou a porta e adentrou na residência de Sonny Coltrane, já havia retornado à sua forma humana. Encontrou o fazendeiro agachado detrás da mesa da sala, espiando com desconfiança.

            Pe... Pegue! – disse o fazendeiro com voz trêmula, ao mesmo tempo em que oferecia o saco de tecido para Coyote – Você fez o seu trabalho... Merece todo esse dinheiro!

            Já lhe disse que não me importo com dinheiro. – respondeu o rapaz, em tom sombrio.

            Então peça o que quiser e eu lhe darei!

            Eu quero ela! – disse Coyote, apontando o dedo para Evelyn, que acabara de entrar na sala.

            Como?! Minha filha?! – gritou Sonny – Isso nunca! Evelyn é minha! Minha! Minha!

            Nesse momento, um estrondo ecoou pelo recinto. O fazendeiro teve um espasmo e um filete de sangue escorreu de seus lábios, um instante antes de ele tombar sem vida no assoalho, alvejado com um tiro nas costas.

            Finalmente estou livre de você, seu velho nojento! – exclamou Evelyn, com um revólver fumegante em mãos.

            Com um sorriso enorme nos lábios, Andrew Coyote se aproximou da moça, tomou-a nos braços e a beijou longamente.

            Vamos? – indagou ele, puxando-a pela mão.

            Claro! – respondeu a garota, ajuntando o saco de dinheiro que estava caído ao lado do cadáver de seu pai.

            No pátio da fazenda, Coyote vestiu novamente seu terno, ajuntou o violão e – enquanto tomava o ruma da estrada em companhia de Evelyn – começou a cantarolar uma nova canção:

            Country roads, take me home
             To the place I belong,
            West Virginia,
            Mountain mamma, take me home
            Country roads

            Nunca tinha ouvido nenhuma destas músicas... – disse a moça, sorridente – Foi você quem as compôs?

            Não... – respondeu o rapaz – Quem me ensinou a tocá-las foi um negro vidente que conheci no Mississippi.

            – Um vidente?! – exclamou Evelyn, com indisfarçável curiosidade.

            – Sim. – afirmou Coyote – E ele me disse que todas essas canções farão muito sucesso no futuro...

                     

 * Conto publicado originalmente no livro Cursed City – Onde as almas não têm valor (org. M.D. Amado, Estronho: 2011).