11 de jun. de 2021

A NOITE DOS NAMORADOS

 

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Apesar da noite agradável, com temperatura amena e uma bela lua cheia contribuindo para o tom idílico e romântico da data comemorativa, Cássio não andava nada satisfeito. Fazia mais de uma hora que ele estava em companhia de Vanessa, com o carro estacionado naquele local ermo e deserto, mas nada havia acontecido. No seu entendimento, estava fazendo tudo certo: já tinha levado a moça ao cinema, à danceteria, à pizzaria e até já tinha conhecido os pais dela. Naquela semana, inclusive, lhe comprou um presente de Dia dos Namorados que havia custado caríssimo. Tão caro que com aquele dinheiro daria para comprar várias e várias cervejas. Mas nada parecia dobrar a resistência da moça. Quando Cássio estacionou ali – em uma área popularmente conhecida entre os jovens por ser propícia a encontros mais íntimos – a garota pareceu ficar ainda mais resoluta em resistir às investidas do rapaz.

            – Você anda muito chata! – esbravejou Cássio, sentido sua paciência se esgotar. Um segundo depois, o rapaz já estava do lado de fora do carro, andando em direção à mata circundante.

            – Aonde você vai?! – perguntou Vanessa, intrigada.

            – Vou mijar! – respondeu o rapaz, com rispidez.

            – Cássio, você está bravo? – inquiriu a moça, em tom manhoso – Eu acho que você está sendo muito apressado.

            “E você está sendo insuportavelmente teimosa!”, pensou o rapaz, sem coragem de proferir as palavras.

            Cássio já se preparava para voltar ao carro, tentando idealizar uma última e desesperada estratégia de persuasão, quando sua atenção voltou-se para algo estranho vislumbrado quase ao acaso em meio à mata. Era alguma coisa grande e esbranquiçada, estendida junto às folhas secas debaixo das árvores. Fustigado pela curiosidade e não sem uma ponta de receio, o rapaz andou lentamente na direção da coisa.

            – Cássio! Onde você está indo?! – voltou a indagar Vanessa, desta vez demonstrando uma leve irritação.

            Contudo, o rapaz nada respondeu, pois nem sequer a ouviu. Todas as suas atenções estavam voltadas para o pálido cadáver deitado no chão diante de si, completamente nu. Era um homem, de idade indefinível, e que – a julgar pelas lacerações e pela quantidade de sangue ressecado que trazia aderido ao corpo – aparentava ter tido uma morte violenta. A impactante visão fez com que Cássio perdesse a postura de machão que costumava emular com tanto afinco, de forma que não tardou para que ele corresse apavoradamente de volta ao carro.

            – O que aconteceu?! – perguntou Vanessa, assustada com a fisionomia transtornada do rapaz.

            – Tem um cara morto ali no mato!

            – O quê?!

            – Tem um cara morto ali no mato! – repetiu Cássio, dando partida no veículo e acelerando fundo.

            O rapaz estava tão assustado que nem cogitou manobrar o carro para retornar à cidade pelo mesmo caminho que viera. Optou por seguir através de um acesso paralelo, para onde o veículo já se encontrava direcionado. Ainda nos primeiros metros do trajeto a namorada enchia-o de perguntas, mas ele não respondia a nenhuma, impressionado que estava com a cena bizarra que não lhe saía da cabeça, a imagem de um misterioso cadáver ensanguentado tetricamente iluminado pelo luar.

            A cena sinistra só esvaneceu-se de sua mente no momento em que foi substituída por outra não menos inesperada e insólita: uma viatura da polícia militar estava estacionada na beira do estreito caminho de terra, poucos metros à sua frente. Vanessa falava e gesticulava freneticamente enquanto Cássio diminuía a velocidade do carro ao se aproximar, de forma que pode ver perfeitamente o momento em que um policial desembarcou da viatura e deu dois passos para o meio da estrada, sinalizando para que estacionassem.

            Mal o carro havia parado e Cássio já baixou o vidro e se dirigiu ao policial de maneira afobada:

            – Seu Guarda! O senhor apareceu na hora certa! Nós estávamos lá em cima na clareira quando eu encontrei um cad...

            – Saiam do carro! – interrompeu rispidamente o policial.

            – Sim! Mas acontece que...

            – Saiam do carro! – repetiu o policial, em tom ameaçador.

            Cássio e Vanessa entreolharam-se, intrigados. Saíram então do carro em silêncio e fitaram o semblante do oficial com desconfiança. Ele devia ter sido admitido na força militar muito recentemente, pois era bastante jovem. Provavelmente tão jovem quanto o próprio casal de namorados.

            – Virem-se de costas e coloquem as mãos na lateral do carro! – ordenou o policial – Vou revistá-los!

            – Mas, Seu Guarda! – protestou Cássio – Eu estou tentando lhe dizer que...

            – Cale a boca, seu maconheiro! Vai fazer o que eu digo ou precisarei algemá-lo?!

            – Ora! O que é isso?! – exclamou Vanessa – O senhor não pode nos tratar assim!

            – Fique quieta, sua piranha! Só me dirija a palavra quando eu lhe perguntar alguma coisa!

            Vanessa deixou escapar um gemido que denotava espanto e indignação. No instante seguinte já estava se aproximando do militar com o dedo em riste.

            – Escute aqui, Seu Guarda! Você não tem o direito de...

            A moça não conseguiu completar a frase, pois o policial atingiu-a com uma bofetada no rosto com força suficiente para fazê-la cair sentada na estrada empoeirada. Indignado, Cássio tentou intervir, mas mal havia se movido e deparou-se com o cano do revólver do militar apontado para a sua cabeça.

            – Nem pense em bancar o machão, ou estouro a sua cara aqui mesmo! – vociferou o oficial – Encoste-se no carro! Agora!

            Sem alternativas, o rapaz apoiou as mãos no veículo e o policial passou a revistá-lo de forma rude. Vanessa permanecia sentada no chão, com as mãos cobrindo o rosto enquanto soluçava.

            – Vocês estavam fazendo sacanagem lá em cima, não é mesmo? – provocou o oficial, em tom de deboche – Agora eu vou revistar essa safada! Garanto que ela adora sentir as mãos fortes de um homem apalpando seu corpo!

            – Seu Guarda... – disse Cássio, com um fiapo de voz que era quase uma súplica – O senhor precisa acreditar... Tem um cadáver lá em cima, na clareira.

            – Eu sei! – respondeu o militar, andando lentamente na direção de Vanessa com um sorriso malicioso nos lábios – Eu estive lá antes de vocês aparecerem.

            A moça, que já estava um tanto assustada, sentiu-se invadida pelo mais opressivo pavor. Tirou as mãos do rosto e, por estar sentada, fitou diretamente as pernas do policial que se aproximava. Julgou que sua mente estava vacilando quando se deu conta que ele estava de pés descalços e com a barra das calças dobradas. A situação ali estava ainda mais bizarra e assustadora do que lhe pareceu inicialmente. Algo estava terrivelmente errado.

            – Ora, sua quenguinha! – exclamou o militar, com ironia – Você está com essa cara por causa dos meus pés?! Mas o que eu posso fazer se o dono dessa farda usava outro número?! – Vocês viram ele lá em cima na clareira?! Meu Deus! O sujeito devia calçar 44 ou mais!

            Mesmo sem a completa compreensão da situação, Cássio percebeu que precisava fazer algo antes tudo ficasse pior. Aquele sujeito não era policial coisa nenhuma!

            Procurando ser o mais rápido possível, o rapaz projetou-se na direção do falso militar e tentou imobilizá-lo com uma gravata. Porém, o impostou desvencilhou-se com facilidade e atingiu Cássio com um violento golpe desferido com a coronha do revólver, fazendo-o cair por terra com a testa sangrando.

            – Seu babaca! – vociferou o falso policial, guardando a arma no coldre – Nem vale a pena gastar balas com um verme feito você!

            Diante dos olhos atônitos de Vanessa, que gritava estridentemente, o impostor sacou o cassetete do cinturão, aproximou-se do corpo semiconsciente de Cássio e – demonstrando frieza e brutalidade – espatifou-lhe o crânio com uma saraivada de golpes extremamente violentos.

            Quando o vigor das pancadas fez com que o cassetete se partisse, o falso policial voltou então suas atenções para Vanessa. A moça notou um brilho rubro e inumano em seu olhar, e com isso passou a gritar de forma ainda mais desesperada.

            – Pare de gritar e poupe suas energias! – disse o impostor, despindo a farda – Cansei de brincar de policial! Com você a brincadeira será diferente!

            Vanessa percebeu que o corpo do sujeito estava coberto por uma camada de pelos negros e disformes que pareciam se multiplicar em uma velocidade espantosa. Garras afiadas afloravam de seus dedos e presas pontiagudas emergiam de sua boca.

            – Levante-se e corra! – ordenou o indivíduo, com voz gutural – Quando eu estiver pronto irei procurá-la! Nesta data tão especial, você será a minha namoradinha! Ha, ha, ha!

            Impulsionada pelo pânico, Vanessa partiu, correndo da forma mais veloz que suas pernas lhe permitiam. Em meio à fuga, sua mente abalada trouxe à tona a ideia de que, se fosse possível voltar no tempo, ela deixaria Cássio tocá-la, despi-la e amá-la no aconchego do carro estacionado lá no alto da clareira, e isso seria maravilhoso. Contudo, o uivo horripilante que ecoou às suas costas trouxe-a de volta à desoladora realidade. A besta estava pronta para a caçada.

4 de jun. de 2021

A OESTE DA CIVILIZAÇÃO

 

 

Por Petter Baiestorf

 

            O Calor fritava meus pés, queimando-os impiedosamente. Meus sapatos furados haviam ficado para trás há quarenta quilômetros. Derretiam sob o insaciável apetite do sol escaldante. Uma mistura de sangue coagulado com suor e sujeira parecia fazer uma proteção natural, uma espécie de casco que funcionava como um escudo que me protegia das dores proporcionadas pelos cascalhos afiados da imensidão seca, sádica, daquele imenso deserto que eu insistia em atravessar.

            Cambaleando, continuava minha travessia rumo ao nada. Um nada que podia representar um tudo.

            Estava cansado, confuso, quase descrente nas palavras do Profeta do Oeste. Nunca siga um profeta, você pode perceber a burrada que fez somente quando for tarde demais para retornar ao seu próprio caminho.

            Mesmo cansado, exausto, a única coisa que fazia era seguir em frente, sempre em frente. Sempre rumo ao horizonte que dançava à minha frente, tremulando pela ação do Sol, tal qual uma miragem infernal. Sol que nunca dava tréguas. Horizonte lá longe, sempre a minha frente, sempre cozinhando aos quarenta e sete graus. Nenhuma sombra, somente calor, cascalhos, cactos, espinhos, galhos secos e animais peçonhentos.

            O vento batia em meu rosto enrugado, empoeirado, cicatrizado pela vida. Caminhava quase parado, deixando que os pensamentos me conduzissem a um estranho transe onde não parecia ter mais dúvidas, nem perguntas indecifráveis.

            Lembrava-me do cão sarnento de perna quebrada, magricela igual à Morte, que balançava alegremente sua cauda pela água podre que dei para que bebesse, há mais ou menos duzentos quilômetros atrás. Mas logo os pensamentos cessaram. Fome. Estava sem comer há mais de três dias. Minha última refeição havia sido uma sopa de cactos com pedaços de escorpião.

            Caminhava cambaleante, feliz que as crostas em meus pés aliviavam minha dor. Não sentia mais nem o calor angustiante que me torturava há vários dias. O silêncio fazia cantigas anarquistas ecoarem por minha cabeça. Cantigas tristes, lamúrias de cancioneiros sofridos que tentavam educar o povo com suas letras realistas.

            Muitos esqueletos humanos estavam espalhados pelo chão. Alguns, recém falecidos, ainda iriam entrar em colorida decomposição. Outros, tomados por vermes, já serviam de alimento aos abutres. Abutres eram uma espécie de ave, e aves, até onde lembrava, podiam ser comidas. Pegava minha atiradeira e alguns cascalhos, mas, desprovido de forças, só conseguia fazer com que as majestosas aves dessem pulinhos de um lado pro outro. Ignorava-me por completo. Estava fraco demais. Não conseguia mais nem atirar pedrinhas com uma atiradeira, algo que até crianças de cinco anos conseguiriam.

            Fome.

            Ajoelhava-me ao chão. Largava a atiradeira que já era apetrecho inútil. Com o resto de minhas forças arrastava-me até um dos muitos corpos em decomposição.

            Fome.

            Minhas mãos trêmulas agarravam um pedaço do braço podre de um defunto. Levava a podridão a minha boca animalescamente. Meus bons modos eu já havia esquecido quilômetros atrás, em alguma encruzilhada do destino. A carne podre não tinha paladar nenhum. Mastigava aquela pasta gosmenta sem gosto só a engolindo para tentar viver mais algumas horas.

            Com alguma coisa no estômago, lembrava-me quem eu havia sido.

            Lembrava-me da minha história. História estúpida, cheia de sofrimento e escolhas erradas. Lembrava-me dos poderosos que haviam me comprado com seu ouro. Lembrava-me de tudo. Lembrava-me que fui capataz de grandes fazendeiros. Era tocador de gado e, logo depois, Capitão do Mato. Lembrava-me do massacre contra sem-terras que comandei a mando dos patrões. Lembrava-me de cada uma de minhas mais de cinquenta vítimas. Lembrava-me dos corpos de pobres miseráveis que fiz arder nas chamas da injustiça. Lembrava-me dos policiais que ajudaram no massacre. Dor. Lembrava-me que num momento de lucidez me rebelei contra os patrões e havia sido caçado do mesmo modo que cacei pretos, índios e toda sorte de párias sociais que só queriam um pouco para sobreviver. Lembrava-me como fugi para a cidade grande, como mendiguei de porta em porta. Lembrava-me da fome e de como conheci um homem autointitulado Profeta do Oeste e de como me iludi com as suas palavras, enquanto ele reinava comodamente, alimentado por seus seguidores.

            Lembrava-me do dia em que o grande Profeta do Oeste convenceu seus seguidores a iniciarem a jornada em busca da Terra Prometida. Lembrava-me que fui um de seus seguidores, pois naquele momento preenchia meu vazio existencial. Lembrava-me que era apenas mais um tolo seguindo um lunático. Lembrava-me do instante que o Profeta do Oeste tombou sem forças, morrendo agonizantemente de fome, parando então a marcha para lugar nenhum. Lembrava-me como um bando de cegos esfomeados ficou sem rumo naquela terra árida. Lembrava-me do tolo que fui, e que agora era o último dos seus seguidores, o último perdido neste deserto de misérias.

            Todos os cadáveres ao meu redor eram dos discípulos do profeta que acabou seus dias como alimento dos urubus, possivelmente a coisa mais útil que já fez.

        Então, alimentado da carne putrefata de um cadáver desconhecido, percebia que os urubus estavam se aproximando de mim, todos com olhares de inebriante vitória, olhares que devoravam o pouquinho de esperança que ainda trazia comigo.

31 de mai. de 2021

AVOA, VINGANÇA!

 

 

Por Alan Cassol

 

            Era clara aquela noite na zona rural de Nova Erechim. Clara era a visão das estrelas. Cintilante sorria a Lua sobre a velha casa de telhado laranja. Bom, não posso deixar de lembrar das pegadas deixadas quando eu subia com os calçados embarrados. O telhado era a fuga para um paraíso desconhecido, uma espécie de lar onde eu ainda não sabia, mas procurava encontrá-lo olhando para o horizonte escuro, exceto quando avistava a luz do lampião do velho Ricardo, um vizinho distante, mas à noite tudo parecia perto e audível.       

            Era janeiro. Não era incomum a tv passar filmes da série “Sexta Feira 13” nas noites sábado. E foi numa noite de sábado que assisti Jason Voorhees arrancando uma cabeça com apenas com um soco. Meus dois primos: Cássio e Leandro, os irmãos, viam comigo. Minha avó já estava na cama. Meu tio, com seu palheiro vertendo cinza sobre as almofadas, dormia e acordava como se estivesse em um pesadelo melhor que sua realidade ébria e cancerígena. A garrafa de 51 sempre deitada sobre as pernas.

            Quando senti que nenhum deles daria falta de um menino de 7 anos, porque os olhos dos primos não desgrudavam da TV e o tio só renasceria do pesadelo - ou da vida - na manhã seguinte quando a vó o acordaria com um tapa no joelho para buscar lenha, como acontecia todo domingo. Escalei a pitangueira e saltei para o telhado. O som das corujas me fascinava. Pensava se os animais noturnos não sentiam medo do escuro, mas era o meu medo deles sentirem medo que me preocupava; entendo hoje. Lá em cima estava tudo calmo. Pensava no que seria de mim no futuro. Na verdade, eu queria uma luz que me fizesse seguir para uma estrada de teclas de piano, onde tudo seria música para acalmar os animais noturnos. Cada passo seria um chamado sonoro para uma nova realidade, bem longe de qualquer lugar que trouxesse lembranças de uma breve vida isolada de qualquer sinal de afeto. Mas uma luz apareceu naquela noite de janeiro. A luz do velho Ricardo balançava em um trote que parecia ser em direção ao paiol de sua propriedade.

            Fiquei observando a luz do lampião até ela parar de se mover. Um brilho saia da janela do paiol. Velho Ricardo nunca ia até lá à noite, mas não achei estranho, afinal, por que seria? O que me fez gelar o estômago foi o silêncio dos animais, algo que também nunca acontecia, mas isso sim foi estranho. O mundo se calou no interior da minúscula Nova Erechim. Alguns instantes depois da luz se aquietar perto da janela do paiol, ela começou a piscar, mas foi de um jeito que pareceu ser alguém passando e voltando na frente dela. O mais estranho foi quando ela subiu pro segundo andar do paiol, que cobria metade do espaço, sem que a escada fosse usada, e eu sabia muito bem onde a escada ficava. Não resisti à curiosidade que me dominou como se fosse “aquela” canção que eu tanto procurava. Desci do telhado, dei a volta por trás da casa para ninguém me ver, fui ao porão, peguei o lampião alimentado por querosene e me coloquei no rumo do paiol do Ricardo. E aquele silêncio.

            A poeira da estrada de chão contrastava com a luz do lampião. Naquela época não chovia há mais de 20 dias. A colheita estava comprometida. O banho de rio era resumido em pequenas poças. Nada parecia ser real para mim. A vida era aquela estrada escura e cheia de pedregulhos traiçoeiros, mas havia um agravante naquele momento: barulho de asas batendo sobre a minha cabeça. Aquele som constante me acompanhou até a porteira do rancho do velho Ricardo e parou. Passei o lampião pelo arame farpado e pulei para o lado de dentro me apoiando na estaca de madeira que servia de alicerce para o cercado. A porta do paiol estava escancarada. Fui entrando lentamente e não foi preciso mais que dois passos para avistar o velho Ricardo caído perto da janela lateral, a janela que brilhou para mim.

            Hesitei por uns 2 minutos até que tive coragem de me aproximar. Chamei pelo nome dele. Nada. Chamei de novo: nada. Comecei a suar e pensei em sair correndo, mas desisti da ideia e me agachei ao lado de Ricardo. Os olhos estavam abertos e imóveis. Nenhum sinal de movimento. Peguei na mão dele para tentar levantá-lo, puxá-lo, ou sei lá o que eu queria fazer naquele momento. Constatei: estava diante de um defunto.

            Ricardo perdeu o filho dois anos antes daquele dia. Henrique, de 28 anos, estava voltado de Nova Erechim a pé, a distância era de 3 quilômetros até o rancho de seu pai, e quase 4 da casa de minha vó. Ele foi atropelado, e seu algoz sequer parou para socorrê-lo. Nunca souberam quem o atropelou. Aquilo decretou o fim da vontade de viver do velho Ricardo. Anos antes, de infarto, a esposa partiu da existência terrestre, e o choro foi em dobro por conta de um resultado positivo para câncer de pulmão. Era Ricardo e Henrique, agora, não era mais ninguém.

            Olhando para aquele corpo no chão, me transportei para um mundo onde não havia dor e culpa, porque tudo era silencioso e o ar amaciava os pulmões com um sopro doce e frio. A morte não era novidade para mim. Talvez a minha necessidade de sair daquele lugar era o desejo de reencontrar meus pais me esperando sobre uma plataforma, e, logo depois, me levar para um portal brilhante, adentrando numa atmosfera sem maldade, sem brigas, sem agressão. Uma dúvida pairou e voltei para o paiol. “Como o lampião foi parar no andar de cima?” – pensei. Subi pela escada e lá estava a luz, mas ela não estava sozinha. Uma coruja me fitou. Os olhos dela estavam vermelhos, mas foram voltando à forma normal aos poucos. Com seus olhos amarelos e brilhantes, ela alçou voo e sumiu na noite. Lembro de ter ficado com muito medo, o que me fez tomar o rumo da casa da vó, correndo.

            O silêncio daquela noite permitia ouvir meus batimentos cardíacos. Estava correndo, trotando. “O que vou dizer? Como vou explicar que o Ricardo estava morto? Foi a coruja que levou o lampião para cima?” Meus olhos estavam embaçados pelo suor e lágrimas, eu estava cego, meu lampião ficou para trás. Subitamente, bati em alguma coisa e cai. Sangue escorria do joelho esquerdo. “Bruno, meu pai morreu!” – disse Leandro. “Ele não morreu, seu maldito. Estamos indo à cidade chamar a ambulância” – a voz esperançosa era do Cássio, o mais novo. Ainda estava deitado quando eles disseram para eu correr ajudar a vó, que estava sozinha com meu tio. Os dois sumiram dentro da escuridão. Se para a dor ou para a esperança, nem eles sabiam.

            Cheguei em casa ofegante. Demorei 2 minutos para conseguir falar alguma coisa. Minha vó estava sentada no sofá, segurando a mão do meu tio. Ele estava morto. Leandro estava certo. Ouvi o chirriar da coruja. Fui para fora da casa e a avistei sobre um galho da pitangueira. De novo ela me fitou com os olhos vermelhos. Ela saiu do galho e pousou do meu lado. Caminhou em círculos, olhou mais uma vez, com os olhos amarelados e brilhantes, e sumiu na noite não mais silenciosa. Era possível ouvir o coaxo dos sapos e a água correndo na sanguinha. A vida noturna voltara ao normal, como se a morte fosse o despertador.

            Na manhã seguinte, com a ambulância levando o corpo do meu tio e do velho Ricardo para o necrotério, fui eu quem buscou a lenha para o fogão. Fui eu quem preparou as malas. Fui eu que deixei na memória as faces vermelhas e ensopadas de Leandro e Cássio para até nunca. O beijo na testa de minha avó foi o último adeus. Fui levado para a “casa de crianças órfãs”, de onde saí aos 16 anos para trabalhar em uma fábrica de ração para animais. No trajeto entre a casa da avó e Nova Erechim, tive a companhia dela voando lá longe, mas como se estivesse acompanhando para ter certeza de que eu ficaria bem. “Chegou o dia, estou saindo desse lugar”.

            Anos depois, já adulto, retornei à Nova Erechim para regularizar alguns documentos. É claro que nunca mais vi a coruja, mas aquele olhar nunca saiu de mim. O paiol do velho Ricardo. O lampião flutuando e piscando. Tudo foi um aviso, um chamado. No cartório, que funcionada no mesmo prédio da delegacia, consegui convencer a me deixarem olhar o atestado de óbito do meu tio, do velho Ricardo e, já que estava na mesma sala, por que não o boletim de ocorrência do Henrique.

            Descrevo aqui um pequeno trecho da ocorrência:

 (...) O veiculo perdeu o controle após atropelar a vítima, saiu da estada, derrubou algumas dezenas de pés de milho e esmagou um tronco apodrecido no chão. Nas entranhas do tronco, um ninho de coruja, com dois filhotes já sem vida. Ao lado, uma garrafa de cachaça Pirassununga 51contendo o liquido ainda intacto (...)

            Tudo ficou claro sobre quem havia atropelado Henrique. Mas o que reluto em acreditar, com as faculdades mentais ainda em saudável funcionamento, é se, de fato, a coruja esteve por trás disso tudo. Hipoteticamente pensando, ela foi responsável pelo alivio da dor do velho Ricardo, da justiça contra meu tio e da minha saída daquele lugar. Imagino se foi as vezes que ela me observou no telhado procurando um horizonte, ou se foi só vingança. Quem sabe, foi de uma mãe que perdeu os filhos, para um filho que perdeu os pais. De qualquer maneira, obrigado, velha coruja. Que você também esteja em paz.