22 de fev. de 2022

O CONTÁGIO

 

 

Por Maria Ferreira Dutra

 

            Cheguei em casa por volta das dezenove horas, depois de um longo dia de trabalho. De tão cansada não jantei nem banho tomei, quando era quase  vinte três horas, fui acordada por alguém batendo na porta.

            Me levantei, dei uma ajeitada com as mãos no cabelo e fui atender o chamado. O corredor estava escuro, a lâmpada não funcionava. Perguntei quem era e não obtive resposta não sei o que me deu que abri a porta. Acho que me descuidei, mas abri e para a minha surpresa não havia ninguém. Logo pensei que alguém tinha batido na porta do vizinho já que as nossas portas são bem coladas, tive a impressão de ter sido na minha.

            Já que eu estava de pé, resolvi fazer algo para comer. Separei uns ovos, duas fatias de pão, alguns pepinos presunto e queijo.  Enquanto estava no processo de preparação do lanche, ouvi de novo a batida, e dessa vez foi mais forte, lavei as mãos observei pelo olho mágico e nada vi novamente.

            Fiquei bem assustada, liguei para a casa de vigilância do condomínio e avisei que alguém brincava de bater na minha porta e isso me incomodava. Pedi ao  segurança para ver nas imagens se tinha alguma  criança zombeteira pelos corredores do condomínio.  Logo fui avisada que nas câmeras não aparecia ninguém  mas que um segurança seria enviado para fazer a ronda em todos as escadas e corredores do prédio. Eu o agradeci e fiquei esperando a resposta.

            Depois de um tempo meu interfone tocou,  era da central de câmeras e o segurança me informou que realmente não tinha ninguém pelos corredores mas que, mesmo assim. era bom eu  escrever uma  ocorrência no livro, com assinatura, data  e horário. Eu  respondi que faria isso no dia seguinte bem cedo antes de ir para o trabalho.

            Desliguei o interfone e sentei na cadeira da mesa da sala para me alimentar, liguei a televisão para assistir um filme. Amy veio ao meu encontro, roçando seu corpo e cabeça entre as minhas pernas. Seu miado não parava. Achei que ele estava com fome, tirei um pedaço do meu pão e o ofereci.

            Amy cheirou, e cheirou, mas não comeu e deu um curto salto e pulou em meu colo.  Com um olhar acolhedor e músculos trêmulos eu sentia as seu corpo tremer em meu colo. Ela parecia estar com medo. Mas medo do quê? Me perguntei. Como Amy era fujona provavelmente devia ter apanhado na rua, assim eu pensei.

            Acabei de comer e fui me deitar no sofá, Amy ficou bem escondidinha, comigo e o encosto da almofada durante  todos os quarenta minutos de filme. 

            Me levantei, dei uma batida na roupa para tirar os pelos,  eu precisava escovar os dentes e urinar. Amy seguiu os meus passos, até ao banheiro. Quando abri a porta, um cheiro forte de mar misturado com esgoto invadiu as minhas narinas. Isso fez eu espirrar e ter ânsia de vômito.  Abri a tampa do vaso e vi que uma água preta saia e os ralos começou a inundar o meu banheiro. Preocupada que aquela imundície invadisse  os outros cômodos corri para pegar um desentupidor de vaso na área de serviço e ao retornar vi que a sala já estava toda inundada com aquela água mal cheirosa e todo o ambiente estava mais frio do que antes. Parecia que eu estava dentro de um frigorífico.

            Coloquei uns panos na entrada da porta com medo que aquela água invadisse o corredor e passasse para os elevadores. Enquanto isso eu ia puxando a água para o ralo da cozinha e área de serviço.  Eu continuava com muito frio e resolvi pegar roupas no meu quarto, quando olhei em direção ao cômodo, vi uma névoa de fumaça de gelo saindo por debaixo da porta.

            Ao adentrar me deparei com uma terrível criatura saindo de dentro do espelho. A porta do quarto bateu e eu fiquei presa com aquela criatura. Eu só escutava os fortes miados da Amy do outro lado da porta. Tentei várias vezes abrir a porta, mas parecia que uma força do outro lado impedia. A criatura me cheirava, me lambia, me olhava se babando toda. Eu gritei por socorro mas fui silenciada  por uma espécie de gosma que o monstro lançou em minha boca. Me debati e consegui me livrar. Abri a porta do armário e tentei me esconder entre as roupas. Mas foi em vão, a besta arrancou a porta, eu segurei no cabideiro até o quanto eu pude, mas a sua força era bem maior e conseguiu me arrancar lá de dentro. Continuei ouvindo o miado do meu gato e arranhões desesperados na porta até que ouvi uma forte pancada. Parecia que algo tinha sido lançado na parede. Imaginei ser o meu Amy, pois o seu miado tinha cessado.

            Minhas lágrimas desceram e me deram forças para lutar ainda mais. Mas tudo parecia piorar. A porta do quarto foi aberta e lá fora se encontrava uma outra criatura demoníaca. Mas eu não podia me entregar, esse não era o meu fim. Não eu não aceitava isso. Eu estava ali indefesa, mas morrer era certeza que eu não queria. Tive que pensar rápido. Era tudo ou nada. Comecei acariciar o macho que segurava o meu braço quase esmagando. Coloquei a minha mão em seu peito e comecei a acariciar. Ele parecia está gostando. A fêmea não aprovou o que viu e partiu pra cima dele. Os dois começaram a brigar com muita  violência e ali, na minha frente, o macho enfiou as garras em seu corpo e a partiu ao meio  deixando as vísceras de fora.

            Eu não queria acreditar no que estava vendo, o bichano comeu a sua própria espécie e eu  percebi que no seu ventre estava sendo gerado um bebê e ele como pai o salvou. Eu bem que tentei derrubar aquele horrendo bebê de cabeça no chão mas me veio uma lapada e uma baforada na cara. A fera tentava me levar para dentro do espelho, acho que era uma espécie de portal pois eu conseguia ver muita fumaça e vultos passando no fundo.

            O bebê começou a se mexer dentro da bolsa gestatória até que se rompeu e a criatura saiu e escorregou do seu colo. Aproveitei o momento em que ele se assustou e me largou para segurar a cria e tentei escapar.  Mas logo fui segurada novamente por seus braços nojentos e pegajosos.  Eu realmente não sabia mas o que fazer, estava tentando ganhar tempo fazendo uma força quase inútil. Eu já estava perdendo as forças quando ouvi um miado que também chamou a atenção do monstro e foi atrás do som me arrastando junto. Eu vi minha gata e fiquei feliz por ela estar viva. Nesse momento eu queria que ela fosse inteligente o suficiente para ficar quietinha, e isso a manteria viva pelo menos.

            O caruncho viu Amy cheirou e parecia não ter gostado do cheiro ou percebeu que ela estava muito machucada e resolveu a deixar por ali. Ao passar em frente ao  espelho da minha sala ele se olhou e sorriu para a sua aparência. Tocou no espelho e girou algumas vezes o dedo.  Eu vi um portal se abrindo. O pálido levantou a sua pequena criatura e mostrou no espelho. vários sons foram ouvidos como se estivessem em festa. Provavelmente estavam reverenciando aquele nojento nascimento.

            Ao me mostrar pelo espelho vi cabeças e mãos tentando sair para me apanhar, mas consegui escapar dos seus toques. Aquele não parecia um dos melhores portais para se entrar. Com uma das mãos livres peguei o enfeite da mesa e joguei no espelho tentando quebrá-lo, mas ao invés disso ele o engoliu e se fechou.

            O fedido a enxofre voltou e  tentou me levar para o seu mundo. Foi quando me lembrei da minha tesoura de costuras na primeira gaveta da cômoda. Abri e a peguei e sem nenhuma piedade comecei a golpeá-lo. A criatura sangrava e gemia de dor. Foram umas vinte ou trinta tesouradas e quando dei por mim, estava sendo ajudada pela Amy que a arranhava e o mordia por toda parte. Meu coração se encheu de alegria por ver que apesar dos ferimentos Amy foi uma guerreira e sobreviveu.

            Por conta da dor, a criatura acabou me soltando entrando no espelho sem mim. Saí correndo para pedir ajuda ao vizinho e relatar o ocorrido e, quando fui mostrar a poça de sangue azulada no chão, ela já não estava mais lá. O pior é que ninguém acreditou em mim.  Dois dias passados e um sinal apareceu na minha mão e estava crescendo muito rápido.  A minha pele estava começando a ficar escamosa e meu rosto desfigurado parecido com um réptil. Acho que fui contaminada por aquele ser imundo.

15 de fev. de 2022

CEMITÉRIO PERDIDODOS FILMES B - EXPLOITATION

 

Por Renato Rosatti

 

Livro sobre cinema “B” com dezenas de resenhas por vários autores, abordando os chamados filmes “exploitation”, ou “de exploração”, produzidos com orçamentos reduzidos, roteiros simples, mas que despertam interesse principalmente pelas cenas despreocupadas com censura ou imposição de regras. Seu objetivo justamente é atingir um mercado consumidor diferente dos produtos convencionais.

O livro é dividido em várias seções, abrangendo desde o cinema de horror “slasher”, “splatter” e de canibais, passando pelos filmes orientais de artes marciais, os italianos de suspense (“giallo”) e policial (“poliziesco”), o americano “blaxploitation”, e os filmes de exploração com nazistas (“nazisploitation”), mulheres em prisões (“WIP”) e freiras em conventos (“nunsploitation”). Sempre com sexo selvagem, assassinatos brutais e muita violência.

É uma excelente obra de referência e pesquisa do cinema obscuro, com resenhas fluentes e informativas. Ainda tem espaço significativo para análises de filmes “exploitation” produzidos na América Latina (México, Brasil e Argentina), além de países como Canadá (“canuxploitation”) e Austrália (“ozploitation”). Filmes onde o foco é chocar o público ávido por elementos não encontrados no cinema comercial tradicional, com histórias absurdas e sensacionalistas, repletas de sangue, tiroteios, lutas, assassinatos, psicopatas mascarados, canibais famintos, mafiosos enlouquecidos, nazistas sádicos e freiras promíscuas. Altamente recomendado para os apreciadores de filmes obscuros.

 

Cemitério Perdido dos Filmes B - Exploitation” (2013)
Organizado por César Almeida, com textos de diversos autores
Editora Estronho
228 páginas

 

* Resenha publicada originalmente em 16/07/16 no blog Infernotícias.

8 de fev. de 2022

O PARQUE DE DIVERSÕES ABANDONADO

 

 

Por André Bozzetto Junior

 

Os três garotos pulam a cerca protegidos pelas sombras da noite. Do lado de dentro, um cheiro residual de ferrugem, plástico queimado e sonhos reduzidos a cinzas.

– Duvido que alguma coisa ainda funcione depois do incêndio. – disse Beto.

– Vamos ver lá dentro do Trem Fantasma. – sugeriu Chico – Talvez tenham sobrado alguns bonecos de monstros.

– Vocês lembram da Patrícia, a filha dos donos? – perguntou Alemão, olhando para as melancólicas ruínas do prédio onde funcionava a administração do parque.

– Sim. – respondeu Chico – Era muito gata. Mas agora está mortinha. Queimada, junto com toda a família.

– E o irmão dela? Aquele gordão retardado, como era o nome? – questionou Beto, em tom de deboche.

– Rubens. – respondeu Alemão. Eu tinha medo daquele cara. Lembram que às vezes ele saía pelo parque gritando “Quero um abraço! Quero um abraço!” e tentando agarrar todo mundo? Sei lá, mas dizem que uma vez ele pegou uma garotinha atrás dos banheiros e...

– Conheço algumas pessoas que acham que foi o pai dessa menina que botou fogo no parque! – interrompeu Chico.

– Se era para se vingar, devia ter matado só o gordo escroto, não a família inteira. – resmungou Beto, encerrando o assunto.

O trio chegou ao que havia sobrado do Trem Fantasma.  Ainda dava para ver parte da imagem do Drácula pintada na direita da fachada. No lado esquerdo ainda se via um pouco do desenho do Lobisomem e do Monstro da Lagoa Negra. Lembranças de gritos, risadas e sustos convertidas em escombros e ferro retorcido. Do lado de dentro, a escuridão era quase total. De imediato, todos foram tomados por uma sensação de medo e angústia que beirava o pânico. Sem falar nada, se entreolhavam com a certeza de que havia algo errado. Nenhum queria ser o primeiro a sair correndo. A imagem de machão ainda valia algo para aquela geração.

De repente, a porta de metal que bloqueava a entrada foi fechada com um estrondo. Os meninos gritaram e correram a esmo pelo interior escuro e entulhado do prédio em ruínas. Um cheiro horrível que parecia ser de algo como cabelos queimados tomou conta do ambiente. Graças a um facho de luminosidade que entrava por um buraco no teto, ficou visível – apenas por um instante – o semblante de alguém se aproximando. Era grande, gordo e tomado por bizarras cicatrizes de queimaduras. Algo reluziu no escuro. Seria a lâmina de uma faca?

Foi possível se ouvir uma voz grave pronunciar de forma enrolada: “Quero um abraço!” e depois disso apenas gritos de terror e desespero.       

28 de jan. de 2022

O DIABO NAS TAQUARA

 

 

Por André Bozzetto Junior

 

    Isso daí aconteceu num ano em que fui trabaiá no interior de Ilópolis, a tal de “Terra da Erva-mate”. Tava na época de podá as planta e levar os gáio para moer nas ervateira e fazer a erva para o chimarrão. Como o povo toma muito chimarrão por aquelas banda, tinha bastante serviço e precisavam de gente de fora para trabaiá, como eu. Fiquemo nas terra do véio Luiz, que tinha bastante hectare de ervero pra desgaiá. Quinze dia de serviço puxado.

    No fim de semana, quem morava por perto foi pra casa, mas quem era de longe, quem nem eu, ficou pousando no galpão do véio Luiz. Além de mim, também ficou um outro vivente chamado Toninho. Na sexta-feira, fim da tarde, ele convidô pra ir tomar umas canha na bodega do Bépi, que não ficava muito longe de lá, e depois ir na zona, farreá um pouco com as quenga. Como não tinha nada pra fazê, concordei. O véio Luiz escuitô nossa conversa e disse que não era pra atalhar pelo bambuzal porque lá de noite costumava aparecer o "Diabo nas Taquara”. Eu fiquei meio desconfiado, mas o tal de Toninho disse que era muito macho, que não tinha medo nem de hôme nem de assombração, quem se alguém aparecer para se fresquear ele dá uma tunda de laço e fura o bucho com uma peixeira que ele carrega na cinta. Bancava o machão o vivente.

    Daí fumo na bodega. Os caminho era tudo no meio das roça ou pelo mato e já tava começando escurecer. Fiquei ressabiado, mas não falei nada. O Toninho andava de peito estufado que nem um galo véio. Dizia que se aparecesse mula sem cabeça ou curupira ele dava uma camaçada de pau. Quando comecemo a beber graspa no bodega, ele logo ficou bêbido e começô e encher o saco dos outro, até que deram um tapão na orêia dele e jogaram pra fora. Eu saí também, meio com vergonha e medo de apanhá junto.

    Então fumo pra zona. Já tava tudo escuro, só se enchergava um pouco da estrada por causa da lua. Quando cheguemo numa encruzilhada, o Toninho quis ir pelo bambuzal, porque era mais perto. Eu já tava me cagando de medo, quando me pareceu ter escutado um assobio vindo do meio das taquara. Acho vi um vulto passando lá no meio. Parei, com as canela tremendo que nem vara verde. O Toninho seguiu em frente, disse que se aparecesse alguém ele ia surrá como fez com os cara da bodega e sumiu no meio do bambuzal, me chamando de “cagão”, “veado” e “Maria Bonita”.

    De repente, dos meio das taquara começô uma barulheira dos inferno. Escutava umas gargalhada como se fosse de alguém meio louco da cabeça, com uma voz mais feia que de uma cadela dando cria de atravessado, e os grito desesperado do Toninho, que não parecia ter mais nada de machão naquelas hora. Também começô uns estouro no meio das taquara e uma claridão que parecia de uma fogueira andando de um lado pro outro. E não é que aquilo parecia tá vindo na minha direção?!

    Pulei pra fora da estrada e me escondi detraiz dumas capoira. Até essa hora, já tinha me mijado duas veiz de medo. E daí eu vi. O Toninho vinha correndo pela estrada, com as calça pegando fogo. Ele batia com as mão tentando apagar as labareda, das veiz rolava no chão, mas não adiantava. Então continuou correndo e gritando, com o fogo no rabo. Mas o pior era o que vinha correndo detraiz dele. Digo, “correndo” num tava, porque como um vivente poderia correr cum uma perna só?! Era um rapaizinho moreno, com uma cara feia igual um cão chupando manga e uma toquinha vermeia na cabeça. Numa mão ele tinha uma tocha, e na outra ia balançando a peixeira do Toninho, como se tivesse debochando da cara dele. E não parava com aquelas gargalhada do inferno que me fazia arrepiá até os cabelo da nuca. Eu fechei os zóio de medo, fiquei quieto igual piá cagado e, drento da minha cabeça, rezava pra Virge Maria, Menino Jesuiz de Praga, São Jorge e o Neguinho do Pastoreio me salvar. Jurei que não ia mais ficá bêbido, nem ir na zona e nem olhar mais revista de muié pelada.

    Quando tive corage de abrir os zóio, aquela visage já tinha se sumido e a estrada tava deserta de novo. Corri de volta pra fazenda do véio Luiz, cagado de medo. Quando cheguei na minha cama, me ajoelhei e rezei trinta e dois Pai Nosso e vinte e sete Ave Maria . Depois peguei no sono, de ropa e tudo. Quando acordei de manhã, Toninho não tinha voltado. E nem voltô, nunca mais. Os outro trabalhador diziam que ele tinha ido embora porque era vadio, não gostava de trabaiá no pesado. Eu não contei nada pro povo, só pro véio Luiz eu falei a verdade. Ele suspirô fundo e disse “Eu avisei”. Depois não foi mais tocado no assunto.

    O tempo passô e eu acabei descumprindo as promessa que tinha feito. Todas elas. As veiz eu ainda sonho com o Toninho correndo pela estrada, como fogo detraiz da bunda, e as veiz me parece de escutar ao longe, de madrugada, os assobio e as gargalhada daquilo que vi perseguindo ele.  Por via das dúvida, nunca mais passei perto de nenhum bambuzal de noite. Nunca se sabe.