10 de mai. de 2022

1999: O CASO DO PALHAÇO - Parte II


 

PARTE II

 

            Vale Dos Pinhais, 24 de Novembro de 1999

            18h 35min

 

            – Palhaçada! Isso é uma grande palhaçada! – bradou o detetive Allan – Não sei em quê esses sujeitos podem nos ajudar!

            – Eles sabem muito sobre essa história toda! – respondeu o Sr. Schneider – Podem nos dar informações valiosas !

            – Eu fiz uma ampla pesquisa sobre o Caso do Palhaço – intrometeu-se Rubem, procurando se justificar – Publiquei um livro falando sobre o assunto, e na época do lançamento esse livro ficou oito meses no topo da lista dos mais vendidos do Jornal Zero Hora.

            – Isso foi há dez anos! – Retrucou o detetive, com desprezo – A história agora é outra!

            – Não, a história não é outra! É a mesma história! – Insistiu o Sr. Schneider, com irritação – E por  isso vou refrescar a sua memória, já que estou lhe pagando para que faça algo de útil: Em 1989, um homem pacato e bem-humorado, chamado Adão Fonseca, que nunca teve nenhum antecedente criminal, e que trabalhava como animador de festas infantis, enlouqueceu, sabe-se lá por que motivo, e invadiu o meu hotel, assassinando três dos meus funcionários e mais dois clientes, arruinando a minha reputação e a minha vida! – O Sr. Schneider estava realmente enfurecido. Ofegava, e tinha o rosto vermelho, acentuado pelos olhos lustros. Acendeu um cigarro e continuou a divagar, de uma forma que parecia ao detetive quase teatral – Dois dos meus seguranças acabaram por matar aquele infeliz. Mas esse não foi o fim do pesadelo. Processos, inquéritos, policiais, advogados,... tudo só pra me ferrar! Como se eu tivesse culpa! Perdi uma fortuna com isso tudo, e para piorar o meu hotel nunca mais foi o mesmo! Eu nunca mais fui o mesmo! Demorou sete anos para as pessoas esquecerem aquela noite horrível e voltarem a frequentar esse lugar como antigamente. Antes disso, apenas malucos e fãs de bizarrices do tipo que acham divertido especular sobre tragédias como a que aconteceu aqui.

            O detetive e o escritor entreolhavam-se, inquietos.

            – E agora, dez anos depois, quando parecia que tudo estava bem, o Palhaço começa a matar novamente! – Continuou o Sr. Schneider, dando um soco enrraivecido na escrivaninha.

            – Logicamente, Sr. Schneider, trata-se de um novo assassino, fazendo-se passar pelo antigo Palhaço. – disse o detetive Allan, em um tom que soou arrogante aos  demais presentes na sala.

            – E você acha que alguém não sabe disso?! – perguntou rispidamente o dono do hotel – Não foi para me dizer essas merdas que eu contratei o mais caro detetive particular do Estado!

            – O senhor contratou o mais caro e melhor detetive particular do Estado! – respondeu Allan, com a petulância que parecia ser sua marca registrada.

            – Então prove isso e pare de se comportar como um idiota! – esbravejou o velho Schneider – Ouça o que esses homens têm a dizer!

            O detetive olhou para os outros indivíduos presentes no aposento. A sua direita estava sentado o escritor, o tal de Rubem. Aparentava ter mais ou menos a sua idade, cerca de trinta e poucos anos. Tinha um visual esquisito, todo vestido de preto, com os cabelos negros e lisos, aparentando estar sempre úmidos. Possuía o olhar ágil e desconfiado. Sentado em uma cadeira próxima à janela, estava um homem pálido e abatido. Tinha os cabelos grisalhos como os do Sr. Schneider, embora fosse visível que era mais novo do que este. Uns cinquenta anos, talvez. Até aquele momento não havia pronunciado sequer uma palavra. Além deles havia ainda um sujeito grande e mal-encarado, com um bigode a lá Charles Bronson, em pé em um canto da sala.

            – Quem é ele? – Perguntou o detetive, apontando para o homem grisalho.

            – O nome dele é Sidnei Azevedo. – Explicou o senhor Schneider – É o chefe do setor de Serviços Gerais aqui do hotel. Trabalha para mim desde o início. Esta aqui porque foi o único a ser atacado pelo Palhaço e sobreviver.

            – E aquele? – indagou apontando para o grandalhão de bigode.

            – É o Rodrigues, meu segurança particular. Ele vai comigo a onde eu for.

            – Pois bem. – disse o detetive, em meio a um suspiro – Então que seja. Vamos começar reconstituindo os fatos e ver se achamos alguma informação nova. No último dia 31 de Outubro, uma hóspede chamada Alice Miner foi morta enquanto passeava sozinha pelo bosque que fica nos limites do terreno do hotel. A causa da morte foi estrangulamento. Junto ao corpo foi encontrada uma peruca de palhaço. As investigações preliminares da polícia, como sempre, não deram em nada. Pelo menos até agora. Todos os hóspedes foram embora do hotel. Dois dias depois, um novo corpo foi encontrado. Desta vez a vítima foi uma moça que trabalhava na lavanderia, chamada Gina Dias. Foi atingida na cabeça com um objeto que se acredita ser um machado. Junto ao corpo, o assassino deixou um nariz de palhaço, daqueles que se usam nas fantasias. Logicamente, o pânico instaurou-se na região, e a polícia nada descobriu. Por fim, há três dias, um funcionário dos serviços gerais também foi morto com uma machadada na cabeça. Seu rosto foi pintado igual  ao de um palhaço. Como todos vocês já sabem, as investigações policias seguem sem que se consiga reunir indícios suficientes para se chegar a algo de concreto. Por isso, o Sr. Schneider resolveu me contratar.

            – Sim. – concordou o dono do hotel, gesticulando de forma impaciente – E chamei eles para ajudá-lo.

            O detetive já estava pronto para dizer que não precisava da ajuda daqueles caras, mas para evitar um novo discurso do velho, resolveu aceitar que a coisa fosse do jeito dele. Estava sendo muito bem pago, de qualquer forma.

            – Sendo assim, será que o nosso “escritor sabe-tudo” tem alguma teoria? – perguntou Allan, cheio de ironia.

            – Na verdade, tenho várias teorias. – Respondeu Rubem.

            – Fantástico! – Exclamou Allan, em meio a aplausos zombeteiros – E será que você poderia dignar-se a dividi-las conosco?

            – A primeira delas seria chantagem. O criminoso comete uma série de assassinatos no hotel, e depois entra em contato com o dono cobrando uma determinada quantia para que as mortes cessem. – disse o escritor.

            – Pois saiba que a sua primeira teoria é completamente infundada. – Retrucou o detetive – Se o caso em questão fosse uma chantagem, o Sr. Schneider já teria recebido algum aviso do assassino. Além disso, quanto mais mortes ele comete, mais a polícia tende a apertar o cerco. Se o objetivo fosse apenas dinheiro, então ele estaria correndo um risco desnecessário.

            – De fato, não recebi nenhum contato do assassino. – completou o Sr. Schneider – Também acho que não é chantagem.

            – Faz sentido. – disse o escritor, resignado – Na verdade acredito que estejamos lidando com um psicopata, que age inspirado nos moldes do matador original. Um copycat.

            – Um o quê?! – resmungou o dono do hotel, com expressão de espanto.

            – Um copycat. – repetiu Rubem – Um novo assassino que age inspirado por um mais antigo, tentando imitá-lo.

            – Um louco imitando outro. Grande bosta! – Sentenciou o Sr. Schneider.

            – Quanto a isso não resta dúvida. – disse Allan, levantando-se da poltrona – Mas a dificuldade está justamente em traçar um perfil do suspeito. Veja esse Adão, o tal Palhaço Gargalhada. Era um cara perfeitamente normal. Trabalhador, honesto, divertido. E de repente, sem mais nem menos, comete um massacre sem nenhum motivo aparente.

            – Concordo. Mas no caso do Adão, é importante lembrarmos que a filha dele desapareceu no dia do massacre, e nunca mais se teve notícias dela. Acredita-se que, de alguma forma, o seu desaparecimento esteja relacionado com a chacina. – Disse Rubem.

            – Certo, mas isso não quer dizer nada. Provavelmente ele mesmo matou a filha e escondeu em algum lugar. Como podemos saber? Ele estava louco! – Emendou o detetive, enquanto servia-se de café – Esse maníaco atual poderia ser qualquer um. A única coisa evidente é que ele está agindo inspirado no antigo palhaço.

            – Sim. – disse o escritor, com visível empolgação – Mas existem algumas diferenças básicas que podem nos servir de pistas. Por exemplo: o assassino atual só usa armas brancas, enquanto o antigo palhaço usou um revólver na maioria dos seus crimes. O matador de agora também demonstra ser muito astuto e calculista, pois só ataca suas vítimas quando estão sozinhas em lugares afastados ou isolados.

            – Tudo isso é verdade, mas não nos leva a lugar nenhum. Até agora só estamos especulando sobre obviedades aqui. – concluiu o detetive.

            Todos ficaram em silêncio, imersos em suas próprias reflexões.

            O Sr. Schneider estava impaciente. Andava de um lado para o outro, e fumava sem parar. Lá fora o sol ia se pondo.

            – Ei, Sidnei... – disse o dono do hotel, dirigindo-se ao homem sentado próximo à janela – Porque não conta sua história ao detetive? Talvez possa ajudar em algo.

            Sidnei olhou para o detetive com desconfiança. Desde que entrou na sala, não havia dito nada. Permaneceu mais alguns instantes em silêncio, mas depois começou a falar:

            – Bem, sobre o Palhaço Gargalhada, o Adão,  o que eu posso dizer é que sempre fomos amigos. Quando éramos crianças, íamos à escola juntos. Eu, ele e a  Béti, a falecida esposa dele. Quando começamos a trabalhar aqui no hotel, ele demonstrava estar muito feliz, pois a grana era boa, e o serviço divertido. Tudo corria bem até aquele final de tarde, há dez anos atrás. Eu estava vindo para cá, e o vi na beira da estrada, não muito longe da casa dele. Achei estranho, porque ele estava fantasiado. Quando me aproximei para lhe dar carona, ele simplesmente sacou uma arma e atirou. O tiro me atingiu no ombro, mas perdi o controle da caminhonete e capotei ribanceira abaixo. Quebrei várias costelas, e minha perna ficou presa nas ferragens. O osso da canela partiu-se em sete lugares diferentes. Só me encontraram no dia seguinte. Passei uma noite horrível, com tanta dor e medo que nem gosto de me lembrar. – Sidnei tremia e suava muito enquanto falava, mostrando-se visivelmente abalado.

            Sr. Schneider aproximou-se e lhe deu um copo de whisky. Sidnei bebeu alguns goles avidamente, e recomeçou a falar:

            Tive que ficar meses no hospital, mas a minha perna nunca mais melhorou. As pessoas começaram a me chamar de “Sidnei, o Manco”. – o homem estava chorando – Nunca mais consegui fazer nada direito, passei a viver com medo o tempo todo! Houve uma época em que eu não queria mais ver ninguém, não queria mais falar com ninguém! Nem saia mais do quarto! Comecei a beber! A minha mulher foi embora, e a minha filha não fala mais comigo!

            O Sr. Schneider sentou-se ao seu lado.

            – Está tudo bem Sidnei! Vamos até ali fora pegar um ar. – Convidou o dono do hotel.

            – Não! Lá fora eu não vou! – Gritou o homem, levantando-se – E sabem porquê? Porque ele está lá fora! O Palhaço está lá fora, e vai nos matar! Às vezes à noite, eu ouço as suas gargalhadas no mato! E uma vez, há três noites atrás, eu o vi espiando pela janela do meu quarto! Ele vai nos matar! Ele vai nos matar !

            Sidnei estava completamente transtornado. Tinha o olhar alucinado, e parecia à beira de um colapso. Sr. Schneider e Rodrigues, o guarda-costas, levaram Sidnei para fora da sala. O detetive e o escritor ficaram sozinhos.

            – Você está pensando a mesma coisa que eu? – perguntou Rubem, em um tom que parecia querer soar astuto.

            – Não posso imaginar em que esteja pensando. – respondeu Allan, com desdém.

            – Acho que acabamos de ter uma sorte tremenda! É ele! – disse Rubem, levantando-se empolgado.

            – Do que você está falando?

            – Ainda não percebeu? É Sidnei! O assassino é Sidnei! – exclamou com empolgação o escritor.

            – Você deve estar ficando louco! – retrucou o detetive, com desinteresse.

            – Não! Sidnei é o louco. Você não viu? Está completamente transtornado. É evidente que não conseguiu superar os traumas do passado, e alo longo do tempo acabou desenvolvendo uma espécie de personalidade psicótica!

            – Para mim isso parece roteiro de livro ruim. – devolveu Allan, com ironia.

            Neste momento o Sr. Schneider e o guarda-costas voltaram para a sala.

            – O que fizeram com o Sidnei ? – perguntou o escritor.

            – Obrigamos ele a tomar um calmante e depois o levamos para repousar em um dos quartos. – Responde o velho Schneider, servindo-se de uma dose de whisky.

            – Pois então é melhor trancar o quarto. – Disse Rubem.

            – O quê? – Indagou o velho, confuso.

            – Esse “escritorzinho sabichão” está achando que Sidnei é o assassino! – intrometeu-se o detetive, irritado – Eu disse que a presença dele aqui só iria atrapalhar ao invés de ajudar.

            – Mas me parece lógico! – defendeu-se o escritor, exaltado – Está claro que Sidnei está doente. Não sei se o seu problema é esquizofrenia, paranóia, ou sei lá o que, mas ele está muito transtornado, e todos vocês viram isso. Além do mais, ele é o cara perfeito para ter cometido aqueles crimes. Com a desculpa de estar verificando se está tudo em ordem, ele pode ficar o tempo todo andando pelo hotel. Assim, ele percebeu quando a hóspede afastou-se e entrou no bosque. Foi muito fácil pegá-la,  pois ele trabalha aqui há mais de dez anos e conhece toda a região perfeitamente. Vejam o caso da segunda vítima: Sidnei conhecia os seus horários, e surpreendeu-a quando estava saindo sozinha da lavanderia. E a terceira vítima é a mais evidente de todas: o cara trabalhava no setor de serviços gerais. Como Sidnei era seu chefe, não teve dificuldades para atraí-lo a um lugar deserto e matá-lo. E ainda teve tempo de pintar o seu rosto como o de um palhaço. Agora só precisamos entrega-lo a polícia!

            Um profundo silêncio dominou a sala.

            – O que você acha disso, detetive ? – Perguntou o dono do hotel, com desconfiança.

            – Me parece uma história absurda demais. – respondeu Allan, em tom de desaprovação – A Polícia deve ter checado algum álibi de Sidnei. Não é possível que os policiais daqui sejam tão ruins a ponto de não terem verificado isso.

            – Nesse ponto, acredite, amigo: a polícia daqui é sim, muito ruim. – retrucou o Sr. Schneider, acendendo mais um cigarro.

            – Ele está com inveja, porque é um incompetente, incapaz de descobrir qualquer coisa! – gritou Rubem, furioso, apontando para o detetive.

            – Veja lá como fala, seu “Stephen King de meia-tigela”, ou eu enfio a mão na sua cara! – Retrucou o detetive, igualmente irritado.

            – Vamos parar com isso! – interveio o velho Schneider – A idéia do Rubem até que faz sentido. Rodrigues, vá até lá em cima e tranque o quarto onde o Sidnei está.

            O guarda-costas prontamente obedeceu ao patrão.

            – Por que você me chamou de “Stephen King de meia-tigela”? – Perguntou Rubem, sem disfarçar a mágoa e a indignação.

            – Porque é justamente isso que você é! – respondeu o detetive, de forma incisiva – Um escritorzinho de merda que passou anos escrevendo histórias de terror de segunda categoria sem repercussão nenhuma, e de repente decidiu escrever sobre o Caso do Palhaço, uma tragédia real. E então, o que aconteceu? Ganhou alguns instantes de fama às custas da desgraça alheia!

            – Não sabia que você conhecia tão bem a minha carreira. – resmungou Rubem, irônico.

            A discussão foi bruscamente interrompida quando o guarda-costas entrou na sala, ofegante.

            – O que aconteceu, Rodrigues ? – Indagou o velho Schneider.

            – Ele sumiu! O Sidnei sumiu! – respondeu o guarda-costas, visivelmente preocupado.

            – Eu disse! Eu disse! – gritou o escritor – Daqui a pouco ele vai entrar em ação!

            – Calma, não vai acontecer nada. – disse o dono do hotel – Vamos tomar providências. Rodrigues, pegue o rádio e entre em contato com os seguranças lá de fora. Peça para que fiquem atentos. Detetive, me faça um favor: vá até o elevador no fim do corredor e acione o mecanismo para deixá-lo travado. Assim, se alguém quiser mudar de andar, terá que passar pela escada aqui ao lado.

            Os dois homens assentiram e saíram rapidamente. O Sr. Schneider abriu uma gaveta da escrivaninha e pegou um revólver, colocando-o na cintura.

            – Quantos seguranças estão aqui ? – perguntou o escritor, andando nervosamente de um lado para o outro.

            – Cinco, contando os quatro que estão lá fora mais o Rodrigues. – respondeu o velho, enquanto acendia um cigarro.

            – E os outros?

            – Foram embora. Estavam com medo.

            – Então quer dizer que são cinco seguranças, além de você, eu e o detetive? Bem, teoricamente, temos chance. – disse Rubem, servindo-se whisky.

            – Não é preciso ter medo. Vai ficar tudo bem. – Retrucou o dono do hotel.

            – Se eu fosse você não apostaria nisso. – concluiu o escritor, olhando pela janela. Lá fora a noite estava escura e silenciosa.

 

Continua na próxima semana...

 

 

O Caso do Palhaço é um livro escrito por André Bozzetto Jr em 1999 que acabou não sendo publicado no época e, posteriormente, seus originais foram considerados perdidos, fazendo com que permanecesse inédito por mais de 20 anos. Recentemente redescoberta, a obra está sendo agora disponibilizada gratuitamente na forma de capítulos semanais no blog Relatos Noturnos.  

3 de mai. de 2022

1999: O CASO DO PALHAÇO - Parte I

 

 

PARTE I

   

 Vale Dos Pinhais, 16 de Outubro de 1989

   18h 50min

 

            Sidnei andava realmente feliz. Desde que o Hotel dos Pinhais havia sido inaugurado, há cerca de um ano, ele trocara a modesta vida de carpinteiro pela função de chefe do setor de Serviços Gerais do hotel, o que lhe conferia uma renda mensal muito mais significativa, além de um status que ele acreditava ser “mais nobre”. Agora, já podia satisfazer alguns dos desejos consumistas da filha, e o que era melhor, a sua esposa já não passava mais o dia a xingá-lo e a reclamar da vida. Mas naquele final de tarde, algo estava para mudar.

            Após uma rápida passagem pela cidade, onde comprou algumas ferramentas, Sidnei dirigia sua caminhonete tranquilamente pela estrada de terra que conduzia ao hotel campestre, quando avistou na beira do caminho uma figura curiosa, que logo identificou como sendo Adão Fonseca, mais conhecido como “O Palhaço Gargalhada”. Ficou intrigado ao vê-lo devidamente caracterizado, pois ele só costumava se fantasiar no hotel, minutos antes das apresentações. Contudo, pensou ele, o Palhaço estava fazendo tanto sucesso em meio à criançada, que Adão decidiu usufruir um pouco mais da sua fama, saindo de casa já fantasiado.

            Quando Sidnei reduziu a velocidade, no intuito de dar uma carona ao insólito personagem, percebeu que o Palhaço levou a mão ao seu “saco de surpresas”, ao mesmo tempo em que esboçou um sorriso estranho. “Lá vem alguma sacanagem!” – pensou o motorista, divertidamente. Com isso, tamanha foi a sua surpresa ao perceber que na mão do Palhaço, ao invés de algum brinquedo idiota, o que surgiu foi um reluzente revólver.

            Antes que Sidnei pudesse esboçar qualquer reação, o Palhaço disparou. O tiro estilhaçou o para-brisa da caminhonete, fazendo com que o motorista perdesse o controle do veículo e capotasse em um longo declive, à margem da estrada.

            Depois que o silêncio voltou a dominar a paisagem, o Palhaço tornou a guardar o revólver e recomeçou a caminhar calmamente em direção ao hotel. Afinal, estava anoitecendo, e ele já estava próximo.

 

     19h 05min

 

            Fazia calor naquele inicio de noite. Fabiano enxugava o suor da testa com um lenço, ao mesmo tempo em que esbravejava em voz baixa pelo desconforto que o terno lhe causava. Por que todos os seguranças do hotel tinham que usar aqueles ternos de “mafioso italiano”? – Perguntava-se. De qualquer forma, era um sofrimento tolerável, afinal, o salário de segurança era muito melhor do que aquele que recebia na enfadonha oficina mecânica onde trabalhava antes. Além disso, não precisava fazer absolutamente nada, apenas ficar circulando pelos arredores do hotel, olhando o dia inteiro para as bundas das belas hóspedes que costumavam frequentar o local.

            No íntimo, Fabiano achava meio idiota a ideia de haver tantos seguranças contratados para trabalhar ali. Claro que se tratava de um hotel de luxo, que sempre recebia como hóspedes pessoas abastadas, vindas das grandes cidades, mas em Vale Dos Pinhais a criminalidade praticamente não existia. Ele já estava com vinte e dois anos e não se lembrava de ter ouvido falar de algum assassinato ocorrido na cidade. Roubo, só de galinhas e bicicletas. Na verdade, desde que começou a trabalhar no hotel, o único acontecimento que quebrou a monotonia, foi a bebedeira que um hóspede fez no restaurante, e obrigou-o a retirá-lo do recinto antes que completasse o striptease que estava promovendo. Contudo, Fabiano estava satisfeito com o fato daquele investidor alemão ter decidido construir o hotel em sua cidade, pois assim várias pessoas, a exemplo dele, que viviam de biscates ou como empregados à custa de salários sofríveis, puderam melhorar suas condições. Além disso, o hotel ainda acabou por impulsionar o comércio e as atividades turísticas do município.

            O rapaz caminhava pelo estacionamento defronte ao hotel, quando viu aproximar-se o Palhaço Gargalhada. Esse hotel é realmente incrível! – pensou – Tem até um palhaço particular para entreter os filhos dos ricaços!

            Quando se aproximou da colorida figura, na expectativa de ouvir uma nova piada (pois o Palhaço sempre tinha uma na ponta da língua), Fabiano foi surpreendido pelo cano negro da arma apontada para a sua cabeça. Ao estrondo do tiro, o corpo do jovem segurança rolou sem vida pelo chão, deixando fluir uma enorme quantidade de sangue do crânio estilhaçado. O Palhaço dirigiu-se para o hall de entrada do hotel. Na face, um olhar doentio, sublinhado por um sorriso de satisfação.

 

     19h 08min

 

            Atrás do balcão da recepção, Alberto Matias levou um tremendo susto ao ouvir o estrondo vindo do estacionamento. Olhou a sua volta, e no hall viu apenas um casal de hóspedes, também com caras assustadas. Fitou a escada que levava ao segundo andar, e avistou um segurança descendo rapidamente, com olhar intrigado. A certeza de que algo não estava bem, veio no instante em que viu o Palhaço Gargalhado entrando pela porta da frente, afinal, não haveria apresentação naquela noite.

            – O que está acontecendo? – Conseguiu perguntar o segurança, apenas um segundo antes de receber um tiro no peito.

            O tal segurança era grande e forte, e apesar de gravemente ferido, conseguiu se manter em pé, e até tentou sacar a arma que trazia escondida sob o terno. Mas antes disso, o Palhaço Gargalhada aproximou-se, encostou o cano do revólver na cabeça do sujeito e disparou. Pedaços de crânio, cérebro e miolos voaram pelo hall.

         O casal de hóspedes, incapazes de fugir, gritava desesperadamente, paralisado de pavor. Assim, foram presas fáceis para o Palhaço. A mulher recebeu um disparo entre os olhos, e morreu na hora. O homem levou um tiro no pescoço, e ficou caído, estrebuchando e expelindo jatos de sangue. Morreu minutos depois, na ambulância, a caminho do hospital.

            Alberto Matias assistiu a tudo, horrorizado. Tentou ligar para a polícia, mas estava tão nervoso que acabou derrubando o telefone ao chão. O Palhaço começou a andar em sua direção. Gritar por socorro foi à única alternativa encontrada pelo recepcionista quando viu a arma apontada para si. Quando o Palhaço puxou o gatilho, ao invés do estrondo assustador, ouviu-se apenas um estalido metálico. A arma estava descarregada. Matias tentou correr, mas o assassino bloqueou-lhe a passagem. O Palhaço Gargalhada largou o revolver ao chão com desprezo, e tirou, não se sabe de onde, uma enorme faca de cozinha. Sem outra alternativa, o recepcionista passou a implorar:

            – Por favor, Adão ... sempre fomos amigos! – suplicava, entre lágrimas. O Palhaço apenas riu, e desferiu-lhe uma violenta facada no abdome. E depois outra, e mais outra. Dizem os vizinhos que era possível se ouvir os gritos a centenas de metros de distância.

            Atraídos pela barulheira, vários hóspedes e funcionários correram para o hall, a tempo de assistirem, terrificados, ao massacre do recepcionista. Em meio aos curiosos, chegaram também dois seguranças.

            – Largue essa faca! Largue essa faca, seu filho da puta! – Gritava um dos seguranças, enquanto ele e o colega apontavam suas armas ao assassino.

            O Palhaço largou o corpo já sem vida do recepcionista e precipitou-se em direção às pessoas. Sua face maquiada tinha uma expressão maligna, aterradora.

            Então os seguranças dispararam contra o agressor. Estavam tão apavorados que só pararam de atirar quando a munição de seus revólveres acabou. O corpo crivado de balas do Palhaço Gargalhada caiu pesadamente ao chão, dentro de uma grande possa formada pelo seu próprio sangue.

            Em meio ao tumulto e aos gritos histéricos, podia-se ouvir ao longe as sirenes se aproximando.

 

Continua na próxima semana...

 

O Caso do Palhaço é um livro escrito por André Bozzetto Jr em 1999 que acabou não sendo publicado no época e, posteriormente, seus originais foram considerados perdidos, fazendo com que permanecesse inédito por mais de 20 anos. Recentemente redescoberta, a obra está sendo agora disponibilizada gratuitamente na forma de capítulos semanais no blog Relatos Noturnos.