3 de abr. de 2023

BOA NOITE, MEU AMIGO.

 

                                                                           Por André Bozzetto Jr

  

        São duas horas da madrugada. Momento em que até o Zolpidem para de fazer efeito. O telefone toca e eu sei que é você. Como sempre, penso em atender e perguntar por que você fez isso consigo mesmo. Mas, nunca pergunto. Tenho certeza que a resposta iria doer. Ao invés disso, como de costume, pergunto por que você está me ligando. “Porque você é o único que ainda se lembra... que ainda se importa”, ouço sua voz dizer. No fundo, os gritos, o choro e os pedidos de socorro parecem mais vívidos do que dá ultima vez nos falamos. Arrisco pedir onde você está. “Ora, o que eu fiz foi terrível. Você sabe onde estou. No único lugar onde eu poderia estar”. Para disfarçar o nervosismo, tento ser engraçado e digo que não sabia ter telefone no inferno. “Não tem mesmo. Você sabe que não estamos falando ao telefone”. É apenas na minha mente, né? “E por acaso existe algo fora da sua mente?”. Sinto o coração acelerar. Minhas mãos estão suadas e tremendo. Lhe explico que a minha próxima consulta ao psiquiatra e só no mês que vem e que não estou a fim de aumentar a dose dos remédios por conta própria. Então pergunto por que você não colabora e para de me ligar, de uma vez por todas. “Eu quero parar. Mas para isso você deve me esquecer. Já devia ter esquecido. Todos já esqueceram”. Eu não estava preparado para essa resposta. Esquecer?! Sempre fomos os melhores amigos um do outro, desde a infância. Vivemos tantas coisas juntos... “Sim, e foi lindo, mas agora acabou. Siga em frente.” Eu percebo que você vai desligar, então começo a falar o mais rápido que consigo. Conto que encontrei uma foto do nosso time de futebol da adolescência, que deve ter sido tirada naquele torneio que jogamos e ganhamos, lá em São Valentim. Digo que, estranhamente, não consigo lembrar qual de nós marcou o gol do título, na final. “Foi você. É claro que foi você. Foi um golaço. Uma bomba da entrada da área, lembra?” E então eu lembro. Vejo a bola estufando as redes. Ouço os gritos da galera. Todo mundo correndo e me abraçando. Sorrisos, vibração. Na comemoração, me jogaram para o alto e eu olhei para o sol, lá em cima. Parecia que eu flutuava, em câmera lenta, e o sol nos abençoava, satisfeito por sermos ainda todos inocentes. Voltamos na caçamba de um caminhão, exibindo as medalhas e o troféu, tomando Coca-Cola e gritando para quem passava por nós. Quando cheguei em casa, todo mundo me deu parabéns. A medalha deve estar até hoje pendurada no meu antigo quarto, na casa dos meus pais. Foi um dia feliz. E, com esse sentimento de felicidade, desligo o telefone que nunca cheguei a atender, volto para a cama, da qual nunca levantei, e contemplo a esposa dormindo tranquilamente o sono dos justos. Ela nada sabe dos meus dramas noturnos. Não tem como saber que não fui eu quem marcou aquele gol. Eu jogava de zagueiro e era proibido pelos demais de passar do meio-campo. Quem marcou o gol foi você, o camisa 10. E então volta a ficar claro o porquê de eu continuar atendendo suas ligações. Com os olhos fechados, vislumbro de novo aquele sol brilhando lá em cima e, mesmo que seja apenas na minha mente, ele ainda me lembra que éramos inocentes, e mais do que isso, éramos companheiros, éramos colegas, éramos amigos. E alimentávamos esperanças e tínhamos sonhos. E fomos felizes. Lágrimas umedecem meus olhos, mas eu não as seco. De repente, o sono volta com tudo e decido não resistir a essa dádiva. “Boa noite, meu amigo.”

29 de mar. de 2023

CORAÇÕES DO MAL

 

Por André Bozzetto Jr

 

“A alma que concebeu uma maldade não pode nutrir nada de bom depois disso.”  (Sófocles)

 

            O dinheiro ela conseguiu vendendo o smartphone que ganhou no Natal para uma garota mais velha, na escola.

            Apesar de ter sido advertida de que “jamais deveria mexer naquilo”, ela desobedeceu e pegou o estojo de plástico que ficava escondido no fundo do guarda-roupas do papai. Ele não iria perceber. Nunca estava em casa mesmo.

            O resto ela comprou pela internet. Essa geração descobre cedo que, tendo dinheiro e sabendo onde procurar, se consegue qualquer coisa on-line. Papai e mamãe ficariam bravos se soubessem que ela andou conversando com adultos pela web, mas não iriam saber. Eles não sabiam praticamente nada sobre ela.

            Uma semana se passou do mesmo jeito de sempre. De casa para escola e da escola para casa. Lá, uma estranha entre tantos estranhos. Sim, estranhos por dentro e por fora. Mentes estranhas por trás de olhos estranhos. Aqui, uma sombra entre tantas sombras. Sombras pesadas, com cheiro de remédios e gosto de lágrimas.

            Então, na quarta-feira o pequeno pacote chegou. Agora ela tinha tudo que precisava. Era só esperar até sexta para colocar o plano em prática.

            Na quinta de madrugada mamãe teve outra crise nervosa e, dessa vez, precisou ser internada. Papai disse para o vovô ao telefone que “nem os faixa-preta estavam fazendo mais efeito”. Ele iria passar a noite no hospital, acompanhando a mamãe. Ela gostou dessa inesperada vantagem, pois, como ficaria em casa sozinha, não precisaria se desdobrar para sair às escondidas depois que anoitecesse.

            A manhã na escola transcorreu como uma sucessão de cenas em tons desbotados de branco e cinza, como em um filme monótono e chato, daqueles que todos que assistem torcem para que chegue logo o final. A tarde, nublada e melancólica, passou lenta, como se a ausência do brilho solar fosse um prenúncio da escuridão fria e opressiva que chegaria com a noite. Nesse meio tempo, ela repassou o plano mil vezes em sua mente. Esmiuçou detalhes, fantasiou possíveis desdobramentos, e isso a encheu de excitação, de tal forma como até então nunca havia sentido.

            Finalmente, o último resquício do dia se foi, levando junto todo um fluxo de pessoas que saía de seus trabalhos e partia para seus respectivos lares de forma apressada, estressada e, ultimamente, também amedrontada. Houve um rápido vai e vem de carros que, não raro, buzinavam e aceleravam de modo acintoso ao menor sinal de lentidão em meio ao tráfego, e um transitar de incautos pedestres retardatários, que caminhavam afobadamente para lá e para cá com os semblantes tomados de preocupação. Quiçá almejavam, o quanto antes, adentrar à segurança de quatro paredes e deixar para trás o manto negro de sombras que começava a delimitar as fachadas malcuidadas dos edifícios e as marquises das lojas vazias.

            O momento havia chegado. A pequena mochila da Barbie já estava pronta desde o início da tarde e tinha sido revisada inúmeras vezes, conforme o grau de ansiedade exigia. De última hora, ela ainda teve uma ideia que poderia ser utilizada para incrementar o plano. Foi até a área de serviço e retornou com o frasco cheio de um líquido transparente, que também foi cuidadosamente colocado na mochila. E então saiu.

            O vento frio parecia contribuir para deixar a rua mal-iluminada e deserta tomada por um clima ainda mais opressivo. Ela colocou o capuz do moletom e seguiu caminhando sem titubear por entre os prédios cada vez mais degradados em direção ao ponto onde a sujeira e o abandono serviam perfeitamente como lar para o mal que circulava por entre a decadência urbana, espreitando na escuridão dos becos fétidos.

            Após poucos minutos da caminhada, ela avistou as ruínas do grande hotel abandonado – um símbolo de progresso e esperanças futuras que ruíram ainda em décadas passadas – há tempos já convertido em um antro de degeneração que irradiava lixo e atraía escória em um raio que englobava todos os depauperados quarteirões circundantes.

            Ela não tinha avistado uma única pessoa desde que saíra de casa. Nem mesmo os pedintes e os usuários de drogas que cotidianamente circulavam pelos arredores. Deviam estar escondidos, fustigados pelo mesmo medo que afastava da região todo e qualquer indivíduo que sequer cogitasse transitar por ali depois de escurecer. Se uma noite corriqueira naquela área já se configuraria em um convite a assaltos, abusos e sabe-se lá que outros tipos de violência contra os incautos que por lá transitassem, naquela época em especial, era quase uma sentença de morte. Algo de muito ruim pairava por entre a imundice e os escombros.

            Então ele apareceu diante dela, surgido de algum recanto encoberto pelas trevas. Um mendigo maltrapilho, cujas longas barbas e cabelos desgrenhados dificultavam mensurar sua idade. Fedia a urina, fezes, cachaça e mais alguma coisa que ela não sabia identificar. Apesar do corpo aparentemente esquálido, seus olhos claros eram vívidos, ágeis e, em alguma medida, perturbadores.

            – Boa noite, mocinha! – disse ele, em um tom forçadamente gentil que acabava por soar patético – Onde uma menininha linda como você está indo, a uma hora dessas?

            – Estou só dando uma volta. – respondeu ela, com naturalidade.

            – Mas é muito perigoso andar por aqui. – retrucou ele – Onde estão seus pais?

            – A minha mãe está no hospital. Ela tem depressão profunda. E o meu pai está lá com ela.

            – E deixaram você sozinha?! – exclamou ele, de forma quase teatral – Pobrezinha! Quer uma balinha?

            O mendigo retira do bolso da calça esfarrapada um saco com meia dúzia de balas amassadas e melequentas e oferece à menina.

            – Obrigada. – disse ela, pegando uma.

            – Você gosta de pirulitos também? – insistiu ele – Eu tenho da vários sabores.

            – Tem de morango? – perguntou a menina.

            – Tem sim! – respondeu ele, empolgado – Está lá dentro do hotel velho. Vamos lá pegar?

            – Está bem. – concordou ela, de forma meiga, a que o mendigo retribuiu com um enorme sorriso desdentado e malicioso.

            – Como é o seu nome? – perguntou ele, enquanto tomava a dianteira para o interior do grande prédio abandonado.

            – Bianca. – respondeu ela. – E o seu?

            – O meu é Brédipiti.

            – Como o daquele ator?

            – Isso mesmo! – respondeu o mendigo, escancarando mais uma vez aquele sorriso asqueroso – Igualzinho ao daquele ator!

            Rapidamente, os dois atravessaram alguns corredores escuros, repletos de sujeira e impregnados pelo fedor de excrementos, fumaça e outros odores desconhecidos, mas igualmente repulsivos. Logo chegaram a um cômodo mais amplo, iluminado por uma lamparina à querosene.

            – É aqui que eu moro. – disse o mendigo, fazendo um gesto com a mão, como se estivesse apresentando uma suíte de luxo ao invés de um antro tomado pelo lixo e pela poeira.

            Enquanto ele revirava algumas sacolas plásticas, ela retirou a mochila das costas, abriu e a soltou no chão imundo, aos seus pés.

            – Acho que não tem mais de morango. – disse o mendigo, emulando um tom triste – Mas tem de uva. Pode ser?

            – Sim. Eu gosto de uva também. – respondeu a menina, de forma simpática, pegando o pirulito da mão do sujeito.

            Enquanto ela desembrulhava o doce, o mendigo começou a andar lentamente ao seu redor.

            – O seu cheiro é muito bom... – disse ele, enquanto aproximava sorrateiramente o seu rosto do pescoço da menina – Me parece conhecido...

            – Esse pirulito é muito bom. – disse a menina, desviando o assunto.

            – Você gosta de chupar? – perguntou o mendigo e, de repente, sua voz soou mais encorpada e grave, quase como o ribombar distante de um trovão.

            – Sim. – respondeu ela, aparentando indiferença.

            – Ah, eu também! – vociferou o mendigo, parando diante da menina em uma pose quase teatral, enquanto um volume ainda maior de pelos cobria o seu corpo, garras afiadas tomavam o lugar de seus dedos, presas pontiagudas brotavam em sua boca e a sua espinha se distendia, aumentando enormemente sua estatura – Eu adoro chupar e lamber! E vou lamber você todinha antes de te comer!

            – Acho que não. – retrucou a menina com o pirulito na boca, em um tom que denotava espantosa frieza, enquanto retirava algo pesado e escuro da mochila aos seus pés.

            Uma expressão de espanto e incredulidade passou pelo horrendo rosto da criatura quando viu a pistola nas mãos da menina, apontada em sua direção. Em um momento de dúvida sobre o que fazer, a coisa retrocedeu a metamorfose, até atingir um bizarro ponto entre o monstruoso e o humano.

            – Isso não vai funcionar como você imagina... – resmungou o licantropo, com aquela cavernosa voz de trovão.

            – Vai sim. – respondeu a menina – Eu assisti aquele filme do garoto na cadeira de rodas e comprei uma bala de prata pela internet.

            O monstro arreganhou os dentes afiados e fez menção de se mover na direção da menina. Um estrondo então ecoou pelos corredores escuros do hotel abandonado, acompanhado de um urro de dor e o baque surdo de algo pesado desabando no assoalho empoeirado e carcomido pelo tempo. Ele era tão grande que não tinha como ela errar o tiro.

            A menina deu um passo na direção da criatura caída logo adiante e percebeu que ela já tinha voltado quase que totalmente à aparência humana. O mendigo ofegava com as mãos no abdômen, por onde vertia um encorpado filete de sangue.

            – Era da minha irmã. – disse Bianca.

            Como o mendigo continuou a encarando com expressão de quem não estava entendendo, ela continuou:

            – O cheiro que você sentiu... O meu deve ser parecido com o da minha irmã mais velha. A Patrícia, que você matou em abril.

            – Ah, sim... agora eu me lembro... – se esforçou em dizer o mendigo, com voz fraca e ofegante – Ela era linda... até pensei em não matar ela... mas, matei sim... matei e comi ela todinha... roí até os ossos... dos dedinhos dos pés...

            Dentro de alguns minutos – uns cinco ou seis, no máximo – ele estaria morto. Mas ela não pretendia esperar. Tinha algo mais empolgante em mente. Retirou da mochila o frasco de álcool que pegara antes de sair de casa e despejou seu conteúdo sobre o enfurecido mendigo, que reunia as poucas forças que lhe restavam para esbravejar.

            – Sua filha... de uma cadela! O que pensa... que está... fazendo?!

            Mas, a menina nada respondeu. Apenas riscou um fósforo e o jogou, dando um passo atrás quando o fogo irrompeu pelo corpo do mendigo.

            Enquanto ele urrava, esperneava e tentava em vão se levantar, Bianca retirou o antigo celular da irmã mais velha de dentro da mochila e começou a filmar. Circulou em torno daquele corpo bizarro, tomado pelas chamas – e que parecia querer novamente se metamorfosear em sua forma monstruosa – buscando os melhores ângulos, e continuou gravando mesmo depois que ele cessou de gritar e se debater. Só parou de filmar quando o fogo se extinguiu completamente, deixando emanar do horrível cadáver apenas uma fumaça repulsiva e o cheiro nauseante de carne e pelos queimados.

            Só então ela foi embora. No retorno para casa, a rua estava tão fria e deserta quanto antes, mas aquela sensação de iminente ameaça parecia ter se dissipado. Até mesmo as nuvens escuras cederam espaço para a lua cheia brilhar palidamente por sobre os prédios decrépitos da cidade.

         Quando o papai voltou para casa, bem tarde da noite, já fazia horas que ela tinha tomado banho, vestido o pijama e se deitado, mas não estava dormindo de verdade. Não havia dormido um segundo sequer. Ficou assistindo e reassistindo o vídeo do mendigo monstruoso morrendo em meio às chamas, até a bateria do celular acabar. Depois ficou imaginando – fantasiando, cheia de excitação – todas as coisas semelhantes que ela pretendia fazer dali em diante. Algumas de suas ideias eram simplesmente terríveis e abomináveis, para se dizer o mínimo. A verdade era que, naquela noite, o seu coraçãozinho – já maculado pelo luto, pela solidão e pelo ressentimento – foi tocado também pela maldade, e gostou do que sentiu.

9 de mar. de 2023

TECNODEMÔNIOS - A TORRE

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Foi na quarta-feira de noite que o meu irmão me ligou empolgadíssimo, dizendo que eu deveria ir até a casa dele – a mesma casa em que vivemos durante toda a infância e adolescência, mas que ele habitava sozinho desde que nossos pais faleceram e eu me mudei para Porto Alegre – para ver uma coisa fantástica que ele havia descoberto, ou inventado, algo assim. Não quis me dar detalhes, apenas insistiu que era um lance espetacular e que precisava me mostrar o quanto antes. Parecia meio fora de si, de tanta afobação. Prometi que iria no sábado de manhã.

            Francis sempre foi um cara meio esquisito, caladão. Nunca teve muitos amigos, ficou com pouquíssimas garotas. Depois que nossos pais morreram, ficou mais isolado ainda. A psicóloga disse que ele deveria fazer terapia e talvez até procurar um psiquiatra, mas ele nunca quis nem uma coisa nem outra. Trabalhava dando aulas de informática em escolas de computação mantidas pela Prefeitura, e, quando não estava trabalhando, ficava enfiado dentro de casa, mexendo no computador ou assistindo TV. De Porto Alegre até a nossa cidade natal dá umas três horas de viagem, então eu sempre procurei visitá-lo uma ou duas vezes por mês, aos finais de semana e geralmente o encontrava mobilizado em construir algo. Geralmente algum aparelho eletrônico que não funcionava – ou, nas raríssimas ocasiões em que funcionava – se revelava completamente inútil.

            Na sexta-feira tive uma noite agitada por pesadelos estranhos e acabei perdendo a hora no sábado de manhã. Saí de Porto Alegre quando já era praticamente meio-dia. Durante a viagem, percebi que o céu ia ficando cada vez mais escuro conforme avançava. Quando finalmente cheguei, a impressão era de que um temporal iria desabar sem demora.

            Me chamou a atenção o fato de que as ruas da cidadezinha estavam completamente desertas. Por mais que a população fosse de apenas 3 mil habitantes, era incrível não ver uma pessoa sequer nas calçadas, nenhum carro transitando.

            Ao estacionar diante da casa do Francis, o silêncio era tanto que chegava a causar um mal-estar. Comecei ter a sensação de que algo estava errado. Bati na porta e ele não atendeu. Chamei, gritei pelo seu nome, e nada. Tentei abrir a porta, mas estava trancada. Então dei a volta no pátio e encontrei a porta da cozinha aberta. O interior da casa estava escuro e cheirava mal. Pilhas de louça suja na pia e restos de comida sobre a mesa. Havia uma bagunça em todos os cômodos, com caixas de papelão e plástico bolha pelo chão. Parecia que o meu irmão tinha comprado muitas coisas recentemente.

            Aquele pressentimento desagradável que eu sentia desde que cheguei na cidade, só foi aumentando com o sumiço do Francis e o estado da casa, e piorou ainda mais quando me aproximei da escrivaninha do seu quarto e dei uma olhada no monte de papéis que estavam espalhados ali. Havia projetos que pareciam ser de máquinas e estranhos aparelhos eletrônicos, mas também desenhos feitos à mão de criaturas monstruosas e horríveis, além de algumas paisagens sinistras e sombrias. Sobre a cama estavam jogados alguns livros de bruxaria, demonologia ou merdas desse tipo, ao lado de um caderno que continha anotações que, para mim, pareciam completamente sem sentido, envolvendo algo chamado “Dillodokers”. Comecei a temer que a sanidade do meu irmão tivesse desandado de vez.

            Decidi ir até a casa ao lado falar com os Gardelli, que eram nossos vizinhos desde quando nossos pais anda estavam vivos. Talvez eles tivessem informações sobre o Francis.

            Como ninguém atendeu quando bati na porta, girei a maçaneta e ela abriu. O senhor Luiz e a dona Marli estavam sentados no sofá diante, da TV. Tinham o olhar vidrado, como se estivessem hipnotizados. Nem reagiram à minha presença. Falei com eles, mas não responderam. Achando aquilo muito estranho, tentei falar mais alto e até gritar, mas sem resultado. Por fim, chacoalhei pelos ombros tanto o velho quanto a velha, mas nenhum deles reagia. Permaneciam em silêncio, olhando para a TV com expressões sérias.

            E por falar na TV, quando olhei para a tela, me senti ainda mais incomodado e até com uma ponta crescente de medo. A imagem escura e cheia de chuviscos exibia uma série de cenas bizarras, com seres deformados e grotescos se movendo por lugares tenebrosos, intercalando com a exibição de atos de violência e perversão sexual entre pessoas que pareciam completamente enlouquecidas.

            Apesar do horror das imagens, eu não consegui tirar os olhos da tela. Talvez fosse acabar entrando em transe também, e permaneceria ali, hipnotizado, se algo não tivesse desviado minha atenção. Percebi que alguns daqueles locais medonhos e várias das criaturas monstruosas que estavam sendo exibidas eram idênticas às dos desenhos que encontrei no quarto do meu irmão. Essa constatação me fez ter um sobressalto e parei de olhar para a TV.

            Com a certeza de algo realmente ruim estava acontecendo, saí da casa dos Gardelli e caminhei até o outro lado da rua, onde morava a Dona Cleide. Pela janela entreaberta da sala, vi ela, a filha adolescente e a mãe idosa sentadas no sofá, assistindo àquelas cenas infernais através da televisão. Chamei, gritei, mas nenhuma delas esboçou qualquer reação.

            Não satisfeito, andei até a casa ao lado, do Beto, nosso amigo de infância. Como sabia que ele nunca trancava a porta, nem bati, já abri e fui entrando. Na sala de estar não havia ninguém, mas quando fui para a cozinha, lá estava ele, sentado à mesa com um lata de cerveja na mão, que já devia estar vazia há muito tempo. Estava tão hipnotizado quanto todos os outros, com os olhos vidrados na TV sobre o balcão.

            Já começando a ficar desesperado, balancei o Beto de um lado para o outro, dei um tapa no seu rosto e tentei arrancá-lo da cadeira. Nada disso fez qualquer efeito. Olhar para a TV com aqueles olhos arregalados e expressão séria era tudo o que ele fazia.

            Voltei correndo para a casa da nossa família. Peguei o telefone e liguei para o Dr Lauro, médico e amigo da nossa família desde sempre. Talvez ele tivesse alguma notícia sobre o Francis ou pudesse fazer ideia do que estava acontecendo. Ninguém atendeu. Liguei então para o hospital, e novamente, ninguém atendeu. Cada vez mais amedrontado e irritado, liguei também para a Polícia, mas, sem resultado.

            Sem saber o que fazer, saí para a rua, gritando um monte de palavrões. O céu estava tão escuro e repleto de trovões ecoando para todos os lados que parecia só um questão de pouco tempo até começar um dilúvio.

            Embarquei no carro e comecei a andar lentamente pelas ruas da cidadezinha. Vi um gato em cima de um muro ali, dois cachorros revirando uma lata de lixo mais para lá, mas nada de seres humanos. Nem um único carro circulando. Em algumas casas onde havia janelas, cortinas ou portas entreabertas, dava para se ver pessoas imóveis assistindo TV. Zumbis, não em busca de carne fresca como nos filmes, mas sim de imagens bizarras emanadas através das telas de aparelhos eletrônicos.

            Estava tentando decidir se iria até o hospital ou à delegacia, na esperança de encontrar algo diferente ou uma pista do paradeiro do meu irmão, quando um forte relâmpago me induziu instintivamente a olhar para o alto, na direção dos morros que circundavam a cidade. Foi aí que avistei algo que me chamou a atenção. A torre de metal que havia lá em cima, e que estava abandonada há décadas. Ela tinha pertencido a um pequeno canal de TV comunitário, que funcionou por pouquíssimo tempo e logo foi fechado. Percebi que uma grande antena, nova e reluzente havia sido instalada no alto da torre. Ela não estava lá na última vez em que eu estivera na cidade, uns 15 dias antes. Do que será que se tratava? Sentindo uma incômoda intuição, acelerei e parti naquela direção.

            Em poucos minutos já estava no topo da colina, cuja estrada de acesso era totalmente cercada pela mata. Estacionei diante da cerca que delimitava a propriedade e vi que o portão estava aberto. Quando entrei, a primeira surpresa: o Fiat Uno do meu irmão estava estacionado ali, com as portas dianteiras e do porta-malas abertas. Havia caixas da papelão, plástico bolha e papel de embrulho espalhados pelo chão, na direção do pequeno prédio retangular que ficava aos pés da torre.

            Pichações, vidros quebrados e mato crescendo por entre os ambientes deixavam claro o estado de abandono a que o local foi sujeitado com o passar dos anos e reforçavam sua aparência incômoda e assustadora. Com o coração batendo acelerado, entrei pela porta de metal enferrujado, que não estava trancada. O que vi lá dentro me apavorou tanto que acreditei que fosse desmaiar, ou perder completamente a sanidade.

            No fundo do aposento havia um painel – visivelmente recém-instalado – cheio de componentes eletrônicos e luzes coloridas e piscantes... E diante dele estava o meu irmão.

            Francis estava suspenso por correntes presas em seus pulsos e afixadas no teto. Sua cabeça estava partida – arrebentada de dentro para fora, é a maneira correta de descrever – e no interior do seu crânio alguma coisa se movia, um tipo de criatura que projetava finos tentáculos para fora e que se conectavam nas entradas dos equipamentos como se fossem plugues orgânicos e gosmentos. Por mais incrível que pareça, tive a impressão de que talvez o meu irmão pudesse não estar morto. Seus olhos semicerrados pareciam mais de alguém em estado de coma do que propriamente um cadáver.

            Mas, não tive como averiguar melhor. O monstro que estava dentro do crânio de Francis deve ter notado a minha presença, pois começou a fazer uns barulhos medonho e balançar alguns tentáculos na minha direção. Foi então que a surpresa e o choque deram lugar ao pavor e ao desespero. Comecei a gritar – tomado pelo pânico e pela raiva – e gritando saí porta afora procurando por alguma arma improvisada.

            Como dei de cara com o carro do Francis, contornei até o porta-malas e retirei de lá a chave de rodas. Aos gritos e com os olhos cheios de lágrimas, retornei ao interior do prédio e comecei a distribuir pancadas para todos os lados. Bati nos tentáculos da criatura que estavam conectados nos aparelhos, mas, além de não dar muitos resultados, ela passou a tentar me agarrar com os membros livres. Na confusão, comecei a bater também nos equipamentos, que se quebravam causando curtos-circuitos e gerando faíscas e pequenas labaredas ao redor.

            Um tentáculo do monstro se enroscou no meu pescoço, me obrigando a partir na direção do Francis e bater na sua cabeça, de onde saiam os membros daquela criatura nojenta. Eu gritava e batia com força, de novo e de novo, até sentir o aperto ao redor do meu pescoço ceder. Voava sangue e gosma para todos os lados e a coisa sibilava furiosa enquanto eu continuava batendo, e provavelmente continuaria até não sobrar mais nada, se o fogo originado nos aparelhos não tivesse se alastrado rapidamente, dando início a um incêndio.

            Corri para fora e, poucos instantes depois, o fogo já consumia o pequeno prédio por completo. Lá dentro, a criatura havia silenciado. Seria impossível tirar Francis daquelas correntes antes de as chamas bloquearem a saída. Além disso, ele não poderia estar vivo naquelas condições. Seria melhor que não estivesse.

            Não sei quanto tempo fiquei ali, olhando para o clarão das chamas que contrastava com a escuridão do céu, formando uma cena fantasmagórica. O reflexo das labaredas na estrutura metálica da torre contribuía para o tom espectral da paisagem.

            Então ouvi barulho de carros se aproximando. Quando olhei para trás, já havia pelo menos quatro veículos estacionando diante do portão, e várias pessoas começaram a desembarcar deles. Eu conhecia quase todas: o Zé, do açougue, o Antônio, da padaria, os dois irmãos Shwertz, Beto, o meu amigo de infância, entre outros. Mas, porque será que estavam portando facas, machados, facões e até armas de fogo? Teriam despertado do transe e deduzido o que se passava? O fogo na torre teria chamado sua atenção? Teriam vindo com a intenção de destruir o monstro que estava controlando a tudo? A maneira séria – eu diria até “furiosa” – com que olhavam para mim me fez desconfiar do contrário.

            Antes mesmo que eu pudesse dizer qualquer coisa, houve um estrondo e, quase ao mesmo tempo, o zunido de um bala que passou centímetros acima da minha cabeça e atingiu a parede logo atrás. Então o grupo começou a correr na minha direção com as armas em punho e ódio no olhar, gritando todo tipo de xingamentos contra mim. Estava claro – apavorantemente claro – que era eu quem eles queriam matar.

            Sem pensar duas vezes, saí correndo em total desespero. Passei rapidamente pela lateral direita do prédio em chamas e me embrenhei na mata fechada. Entre as árvores já estava bem escuro, pela presença das nuvens da tempestade iminente e pela noite que se aproximava. Depois de correr por alguns metros, tendo meu corpo arranhado e até cortado pelos galhos e arbustos do denso matagal, avistei um declive do meu lado direito. O barranco tinha uns três metros de altura, aproximadamente, e seguia em paralelo às grandes árvores na direção da estrada. Isso me deu uma ideia. Como tinha uma certa vantagem em relação aos meus perseguidores, que ainda não estavam no raio de visão, pulei para baixo da encosta e segui agachado, no sentido contrário ao qual tinha vindo. Alguns instantes depois, pude ver por entre a vegetação a turba passando reto lá em cima do barranco, seguindo para o interior da floresta.

            Segui desse jeito o mais rapidamente que pude, até avistar a cerca da propriedade. Então corri na direção do portão e embarquei no meu carro. Engatei ré pisando fundo e fazendo voar cascalhos para fora da estrada. Manobrei e parti acelerando na direção da rodovia. Pelo retrovisor, pude ver algumas pessoas surgindo logo atrás, saindo da mata. Escutei dois estrondos. Um dos tiros arrebentou o vidro do para-brisa traseiro e o outro atingiu o retrovisor da porta direita. Mas eu já estava fora de alcance. Em instantes cheguei ao asfalto e acelerei pra valer na direção sul. Quase ao mesmo tempo, o temporal que estava se ensaiando finalmente desabou. A chuva forte dificultava a visibilidade, mas eu não diminuía a velocidade. Não conseguiria aliviar o pé, mesmo se quisesse. 

        Agora, já faz mais de uma hora que estou na estrada. A chuva diminuiu bastante. Tenho cruzado por vários carros o tempo todo e pelas cidades por onde passei, tudo parece normal. O que quer que tenha acontecido lá na minha terra natal, parece ter sido um evento local, isolado. A sensação de “normalidade” é tão concreta que começo a me perguntar se as coisas realmente aconteceram do jeito que me parece terem acontecido. A hipótese de um pesadelo ou algum tipo de estranha ilusão começa a se tornar mais palpável. O que devo fazer? Estou pensando em voltar para casa – em Porto Alegre – e telefonar para o Francis. Se ele não atender, então o corpo dele ainda deve estar lá, no prédio da torre, consumido em chamas, com o cérebro devorado por algum tipo de monstro infernal. Caso ele atenda, então é porque nada mais faz sentido, e quem terá sido envolvido pelos tentáculos da loucura sou eu.