23 de jul. de 2023

A CAMINHO DO INFERNO


 

Por André Bozzetto Jr

           

            Nunca fui de ficar pensando sobre sorte, azar, destino, esse tipo de coisa. Simplesmente vivi um dia de cada vez e pronto. Mas, pelo menos naquela noite eu deveria ter desconfiado de que alguma coisa estava errada. O passado devia ter me ensinado uma lição. Começou quando a guria me mandou mensagem depois da meia-noite. Disse que era para eu ir na casa dela, assim, sem mais nem menos. Eu já vinha xavecando ela há tempos, mas o negócio não avançava. Às vezes parecia que ela queria, às vezes não. Daí me mandou mensagem do nada, deixando bem claro que ia rolar. E eu fui, né! Quem não iria? Uma gata daquelas...

            Peguei o carro e encarei a estrada. Aqui preciso dizer que fazia muito tempo – uns quatro anos – que eu evitava de todo jeito transitar naquele trecho de noite. Não era por causa das lendas. Também nunca fui de acreditar em assombração. Mas acontece que eu lembrava do que aconteceu com os meus amigos e ficava nervoso. Me dava tipo uma crise de ansiedade só de pensar que era para eu estar junto na noite em que morreram. Tínhamos combinado que iríamos a um show em Chapecó no sábado de noite. Só que durante a tarde eu estava tirando um cochilo no sofá e tive um sonho muito estranho. Sonhei que já estávamos indo para o show. Betinho, Rodrigo, Barata e eu. No som estava tocando Higway to Hell, do AC/DC, o que já seria de deixar qualquer um com a pulga atrás da orelha. Só que no sonho eu fiquei empolgado com a música e quis me esticar desde o banco de trás para aumentar o volume do rádio. Com isso acabei atrapalhando o Betinho, que estava dirigindo. Ele perdeu o controle do carro – o seu famoso Gol branco rebaixado – e acabamos saindo da estrada e capotando, lá na curva da zona. Quando o carro começou a pegar fogo eu acordei de supetão, molhado de suor, parecendo que ainda ouvia os gritos de desespero dos meus amigos dentro da minha cabeça enquanto eram queimados vivos.

            Senti uma queimação no estômago e um aperto no peito. Disse para mim mesmo que o suor devia ser porque eu estava com febre, mas hoje sei que estava apenas inventando uma desculpa. Eu fiquei apavorado por causa do sonho, isso sim. Liguei para os caras e disse que não iria no show porque estava doente. Passei a noite agitado, quase sem conseguir dormir até que de manhã veio a notícia. Já imagina, né? Os caras se acidentaram na curva da zona e estavam todos mortos. Queimados.

            Eu pirei com aquilo. Contei para todo mundo sobre o sonho. Acho que alguns acreditaram, outros não. Os meus pais pensaram que eu estava ficando meio louco e me levaram em psicólogo e psiquiatra. Comecei a fazer terapia e tomar medicamento, até praticamente me convencer de que estava tudo bem, que o sonho foi apenas uma coincidência, ou talvez nem tivesse ocorrido de verdade. O choque com a notícia da morte dos meus melhores amigos teria me induzido a criar uma memória falsa, algo assim.

            Com o tempo fui me sentindo melhor e passei a evitar pensar sobre aquilo. Só continuava evitando passar pelo local do acidente à noite. Até receber a tal mensagem da guria. Mulher mexe com a cabeça da gente, né? Com a de cima e a de baixo.

            Então, lá fui eu. Era quase uma hora da madrugada e a estrada estava deserta. Até a cidade vizinha, onde a guria morava, era apenas alguns minutos, mas tinha que passar pela curva da zona. Já comecei a ficar ansioso um quilômetro antes do local, mas tentei não dar bola. Quando cheguei no ponto exato, parecia que o meu coração iria saltar pela boca, mas assim que passei começou a aliviar. Mas, só por alguns metros. Começou aquele barulho e eu já deduzi o que era. Tive que parar, porque não tinha outro jeito. E, lá estava: pneu furado. Traseiro, lado esquerdo. Eu já tinha carteira de habilitação há seis anos, dirigia todos os dias, mas nunca tinha furado um pneu antes. E aí, por mais que não queira, começa a vir muitas coisas na cabeça. A mensagem surpreendente da guria, o  pneu furado pela primeira vez, poucos metros à frente do local do acidente, a estrada vazia, com fama de ser assombrada. Sabe quando o medo começa a tomar conta da gente?

            Fui até o porta-malas disposto a trocar o pneu tão rápido quanto um “pit stop” de Fórmula 1. Mas, é claro, o estepe estava completamente vazio. Eu nunca tinha lembrado de calibrar aquela porra desde que comprei o carro, três anos antes. Agora, me lembrando, percebo que não era verdade o que eu falei antes, sobre não acreditar nessas coisas de destino. Provavelmente eu sempre acreditei sim, mas negava, evitava ficar pensando porque tinha medo. Me esforçava para aceitar quando os médicos diziam que o sonho e tudo o mais eram apenas coisa de trauma, confusão da minha mente. Só que, naquela hora, tudo veio à tona e o medo foi virando pânico.

            Fiquei pensando no que fazer. Fechar o carro e ir a pé? Ainda faltava uns cinco quilômetros e a escuridão era quase total. Me trancar no carro e aguardar alguém passar para então pedir ajuda? Ali? Do ladinho do local onde os meu amigos fritaram até a morte? Sem chance. Ir até a zona em busca de socorro? Não ia adiantar. Estranhamente já estava fechada. Até o famoso letreiro vermelho de neon estava desligado. E o celular? Totalmente sem sinal.

            Se havia alguma outra opção naquele momento, não sei, porque não deu tempo de pensar. Vi faróis se aproximando, na descida. Cheguei a acreditar que era a minha salvação. Alguém iria parar, me ajudar e pronto, tudo resolvido. Só que não. Conforme o carro ia chegando mais perto, comecei a sentir uma sensação estranha. Era como se o ar de repente tivesse ficado mais pesado e aquele sentimento de pavor estivesse de volta com força total. Comecei sentir um cheiro forte de coisa queimada. E então eu ouvi. Highway to Hell tocando a todo volume no interior do veículo. Era um Gol branco e rebaixado que estava estacionando ali, bem ao meu lado. A película preta no para-brisa, as rodas cromadas. Era inconfundível.

                Eu não queria, realmente não queria, mas não consegui evitar. Olhei para dentro do carro e lá estavam Betinho, Rodrigo e Barata. Queimados, descarnados, mutilados, com os ossos à mostra, e ainda assim vivos – mortos-vivos – estendendo o que havia sobrado de seus braços na minha direção e gritando meu nome.

            Depois disso eu só lembro de partes do que aconteceu. Embarquei no meu carro, dei um cavalo de pau no meio da pista e toquei de volta na direção de casa. Fui acelerando tudo que dava, chorando e gritando de pavor. O pneu furado foi se despedaçando pelo caminho, perdendo lascas de borracha até se desmanchar. Daí foi aquela faisqueira da roda esmerilhando no asfalto, fazendo um barulhão infernal.

            Os meus pais e o meu irmão contam que larguei o carro no meio da rua, entrei gritando e me enfiei debaixo da cama. Não me lembro direito dessa parte. Dizem que fiquei três dias e três noites praticamente sem sair do quarto. Precisavam levar a comida e os remédios até lá, porque eu me recusava a sair a não ser para ir rapidamente ao banheiro.

            Com o carro, o estrago foi grande. Do pneu não sobrou nada, nem sequer um pedaço de arame. A roda já era. Entortou, lixou, se foi. O eixo estragou também e deu mais alguns problemas que não estou lembrando. Custou um dinheirão para arrumar tudo. No asfalto na frente de casa ficou um verdadeira canaleta no local onde o metal veio esmerilhando o chão. Tá lá até hoje e segue a se perder de vista.

            É claro que quase ninguém acreditou na minha história. Uns acham que eu estava drogado, outros pensam que eu tive um surto. Já faz um ano que isso aconteceu e agora eu tomo ainda mais comprimidos do que antes. Não saio mais na rua. Tranquei a faculdade e pedi demissão do emprego. Às vezes faço uns bicos, consertado ou formatando computadores para conhecidos, aqui em casa mesmo.

            No fundo não sei ao certo o que pensar sobre tudo isso. Acho que os remédios me deixam um pouco confuso. Em alguns dias tenho certeza que tudo foi real, em outros quase me convenço que poderia ser só coisa da minha cabeça mesmo. Eu liguei para a guria um tempo depois daquela noite e ela me disse que nunca me mandou mensagem nenhuma. E o pior é que nem tenho como conferir, porque perdi o celular no desespero de fugir daquele lugar. Meu irmão e meu pai foram até lá, procuraram, mas não acharam.

            Um dia eu assisti um filme que falava sobre a possível existência de realidades paralelas por onde a nossa consciência poderia transitar, muitas vezes sem que a gente se desse conta. Achei intrigante e fui pesquisar na internet. Até comprei uns livros sobre o assunto. Então li que existem teorias sobre essas múltiplas realidades alternativas, onde diferentes versões de nós mesmos levam vidas que podem ser muito parecidas ou muito diferentes daquela que consideramos “a verdadeira”. Se realmente há casos onde se pode passar de uma para outra, fico me perguntando se não existe uma versão onde eu causei o acidente que levou à morte os meus amigos e, de alguma forma, transferi minha consciência para cá, nessa dimensão onde não fui ao show com eles e, assim, não morri. Há quem acredite que certos lugares são mais propícios a se passar de uma realidade para outra, como se fossem portais dimensionais. Será que aquele trecho da estrada, que já ganhou até apelidos como “Estrada da Morte” e “Rota do Inferno” não é um desses? Será que todas as histórias de assombração sobre aquele lugar não têm ligação com isso? Será que os meus amigos mortos não atravessaram de uma dimensão para a outra com a intenção de me buscar, já que causei a morte deles e “fugi” para outra realidade? Aquele sonho estranho poderia muito bem ter sido isso, um lapso de consciência que me transferiu daquela dimensão para esta.

         Não sei se algum dia vou encontrar a resposta. Não sei se em algum momento vou conseguir lidar melhor com isso tudo. Terei uma vida normal novamente? No momento acho difícil. Assim que anoitece tomo meu remédio para dormir e vou para a cama, com muito medo de acordar no meio da madrugada ouvindo Highway to Hell e vendo meus amigos mortos me chamando para partir com eles a caminho do inferno.

3 de jul. de 2023

O ESTRANHO FUGITIVO

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Esse tipo de fugitivo é dos mais estranhos, porque sua fuga começa quando não há ninguém lhe perseguindo. Na verdade, ele gostaria que houvesse. Ser perseguido, ser notado, ser almejado – por mais paradoxal que seja – é estar vivo e, às vezes, ele se sente morto.

            O estranho fugitivo não foge de algum lugar ou indivíduo específico, mas sim da realidade. Ele olha ao redor e o que vê lhe parece hostil, não porque lhe ameaça, mas porque o ignora. A sensação de não pertencimento o instiga a partir. Ele não sabe ao certo para onde. A escuridão das dúvidas lhe oprime e o medo do escuro reverbera o medo do desconhecido. Fugir para um lugar novo não parece seguro. E se o novo for pior do que o antigo? E se lá ele se sentir ainda mais vazio, mais frio, mais sozinho, mais perdido? Não, definitivamente, as incertezas do futuro não são atraentes para esse perfil de fugitivo. Mas, se o presente lhe hostiliza e o futuro lhe amedronta, para onde mais ele pode fugir? Então, nesse paradoxo, se desvela a sua mais marcante característica: o estranho fugitivo é aquele que quer fugir para o passado.

            Mas, é claro, o passado que ele almeja é um passado idealizado, um recorte composto somente pelos momentos bons – alguns notadamente reais, outros consciente ou inconscientemente exagerados e superestimados, e outros ainda que existem apenas em sua mente.

            Na encruzilhada em que o fugitivo se encontra há várias rotas de fuga, mas todas são efêmeras, porque no passado não há permanência. Tal qual a areia de uma ampulheta, escorre sempre de forma inexorável. Seu destino é desvanecer.

            Ouvir recorrentemente as músicas que serviram de trilha sonora aos grandes momentos, rever os filmes clássicos que marcaram época, jogar os velhos videogames que sedimentaram a diversão de toda uma geração. Rememorações prazerosas, porém fugazes. Miragens fadadas a desaparecer na aridez de um deserto interior onde já não brilha mais sol nenhum. Tudo que era, tudo que houve, já não está mais lá. Não há mais troca de discos de vinil e fitas K7. As locadoras de vídeo morreram melancólicas e vazias, com não mais do que alguns poucos nostálgicos para chorar suas memórias em meio a fitas VHS empoeiradas e DVDs riscados. Jogos de 8 e 16 bits? Todos humilhados e trucidados pelas armas modernas de guerreiros moldados em gráficos realistas, de telas de PC e consoles de última geração, altamente treinados por horas infindáveis de partidas on-line. Para contar a História dessa fase idílica perdida, não há mais sítios arqueológicos lá fora. Os resquícios, as fontes históricas jazem agora em HDs, “nuvens on-line” e streamings. O passado virou pó e o futuro é virtual. Para o presente sobrou só um buraco, escuro, triste e vazio.

            Mas essas são as rotas secundárias, obscuras, lembradas por poucos e frequentadas por quase ninguém. A grande freeway que conduz ao “Eldorado” litorâneo do passado é acessada in loco. O estranho fugitivo é um viajante irredutível e o seu ponto de chegada nunca está lá na frente, mas sempre ali atrás. Trafega na contramão do trânsito ordinário, navega no contrafluxo da correnteza. E quando finalmente chega ao seu destino em busca do antigo, se defronta com o novo.

            A busca é pelas paisagens de ontem, mas elas já foram soterradas pelas de hoje. Onde havia aquela casa de estilo peculiar, emanando imagens de existência pitoresca, agora há um arranha-céu de face espelhada, que reflete apenas a frieza do trivial. Aquele prédio antigo, tão singular, tão cheio de história, foi posto abaixo e no seu lugar irrompeu outro, maior e mais moderno, mas que não é cenário de nenhuma crônica, não instiga nenhum devaneio. Uma torre de concreto e ferro desinteressada no que ficou para trás e indiferente ao que está por vir. Monumento indolente, não representa nada, porque foi erigido para ser apenas mais um entre tantos outros.

               Outdoors decrépitos e rasgados tomam o lugar onde antes havia a sombra aconchegante de árvores frondosas. Fachadas de redes de farmácias se impõe onde antes estava o comércio tradicional, que foi julgado ultrapassado e teve que fechar as portas há muito tempo. Muros altos e pichados, cercas elétricas e intimidadoras escondem a lembrança de onde existiam gramados verdejantes para crianças brincarem e varandas aconchegantes para casais se sentarem ao final da tarde. Cores – que eram vivas porque tinham vida – foram encobertas por tons monocromáticos e melancólicos.

            O estranho fugitivo descobre que sua fuga nunca será um sucesso, pois seu refúgio é uma utopia. Anseia por aquilo que não existe mais. Procura o que não pode mais ser encontrado. Anda em círculos, mas nunca chega onde deseja, pois, tal qual um ouroboros, está sempre mordendo a própria cauda.

            Ainda há frestas por onde ele consegue vislumbrar resquícios do que era, focos de resistência que se impõe ante o avanço implacável do porvir. Uma banca de jornal de onde vieram os gibis que embalaram fantasias, um restaurante que sediou refeições memoráveis, uma praça que aconchegou momentos singelos, mas marcantes. Sobrevivem, porém, diferentes. A catarse só pode ser parcial, porque se nem as fotos resistem ao desgaste inflexível do tempo, as paisagens muito menos.

            E os habitantes desse refúgio idealizado? A maioria partiu para sempre e só vai existir em memórias tênues enquanto alguém ainda se lembrar deles. Alguns ainda estão lá, mas mudaram, porque quiseram, porque precisaram ou simplesmente porque foram arrastados  pelo fluxo impiedoso do tempo, que não poupa nada e nem ninguém, sentenciando todos à ruína e ao esquecimento, mais cedo ou mais tarde. É claro que ainda há um ou outro outsider que reluta bravamente em entregar os pontos e ceder à maré metamorfoseante de contemporaneidade, mas estes heróis de outras épocas hoje estão reduzidos a observadores nostálgicos de impérios que já ruíram. O poder está nas mãos de outros e o único status que lhes restou foi o de “fora da lei”. Não aceitam o papel de prisioneiros, mas também estão condenados, pois o tempo é um adversário contra o qual não adianta querer lutar e do qual não há como escapar. Para não ser esmagado por ele, só o que resta é seguir o fluxo.

            Essa é a grande lição que o estranho fugitivo aprende em sua jornada. Ele é obrigado a seguir em frente, mas pode escolher onde, como e com quem quer fazer isso. Sempre haverá uma porta aberta, sempre haverá um meio de continuar, sempre haverá alguém com quem compartilhar o percurso. A estrada está lá, basta decidir como percorrê-la. A busca é o desafio e o prêmio não está no fim, mas no trajeto. Tentando fugir, ele descobriu que é livre.

23 de jun. de 2023

SUL ASSOMBRADO - A ESTRADA

 

Por André Bozzetto Jr

 

            O seu nome oficial é um tabu. Não deve ser mencionado. Não deve ser apontado nos mapas. Como sílabas blasfemas, causa mal-estar em quem ouve, estigmatiza quem pronuncia. Um filho bastardo cuja existência constrange o núcleo familiar. Uma promessa grandiosa nunca cumprida, que envergonha a honra do falastrão. Está no topo da lista dos assuntos sobre os quais é melhor não comentar. Daqueles que é melhor fingir que não existem.

            Contudo, ela existe. Ela está lá. Como uma cicatriz antiga e profunda, corta o território de leste a oeste, acelerando ódio em cada reta, envergando angústias em cada curva.         

            Tal como na fluidez de suas formas, o medo não trabalha com números exatos, mas a imaginação simbólica sim. 666 km de asfalto, poeira, sangue e lágrimas. “Estrada da Morte”, “Rota do Inferno”, apelidos clichês para um mal que também nada possui de original. São décadas atropelando sonhos, estilhaçando esperanças e esmagando futuros. Ano após ano, ceifando vidas.

            Crateras na pista que espelham os buracos deixados no interior de quem viu seus entes queridos embarcarem para a última viagem, da qual nunca mais voltaram.

            Placas pichadas, amassadas e quebradas indicam – em ruínas – os destinos para os quais alguns partiram, mas nunca chegaram.

            Vegetação insidiosa que invade o acostamento e sorrateiramente oculta cruzes improvisadas e tristes flores mortas deixadas como réquiem para alguém que não está mais lá. Não está mais aqui. Não está mais em lugar nenhum.

            Reformas fictícias adicionam camadas de ilusão sobre o sangue ressecado. Monumentos fúnebres onde não há ninguém enterrado. Piras funerárias com cheiro de piche e dinheiro queimado. Obras póstumas de expectativas jamais concretizadas.

           Circular por ela de dia é uma tarefa hercúlea. De noite é vivenciar um pesadelo de olhos abertos. Fantasmas que assombram trechos desertos. Aparições que irrompem de pontos mal-afamados. Espectros oriundos de tragédias. Assombrações originadas de desgraças.

            Em locais onde muita gente de cá costuma passar para o lado de lá, às vezes a porta acaba ficando aberta. Quem é mais sensível consegue enxergar através da fresta. Vê a sobreposição do aquém e do além. Vislumbra a encruzilhada dimensional por onde transitam os vivos e também os mortos.

            Estranhas ilusões, tão perturbadoras quanto a loucura. Tão reais quanto a morte.

31 de mai. de 2023

O MAL QUE LIBERTA

 

Por André Bozzetto Jr

 

            A melancolia está impressa como uma tatuagem arcaica no entardecer da pequena cidade. Há lixo espalhado por todos  os lados. Carros batidos, incendiados, abandonados. Nenhum em movimento. Cadáveres de metal que não transportam mais ninguém. As casas têm as portas e janelas abertas ou quebradas. Desolação escancarada, para dentro e para fora. No fim da rua, dois prédios estão pegando fogo. Duas tochas gigantes esperando para saudar a escuridão vindoura.

            Há mortos na calçada por onde Alan vem passando. Na sarjeta, o corpo de uma mulher com os pulsos cortados. Ela já fora bonita um dia, mas, com o sangue que escorreu pelo asfalto foi-se embora também sua beleza. Na velha árvore, balança o corpo de um idoso enforcado. Humano e vegetal, duas antigas testemunhas de um mundo que não existe mais. Lá na varanda daquela casa está o corpo de um homem grande e gordo em uma cadeira de balanço. A têmpora direita está arrebentada e há um revolver em sua mão. Alan observa a tudo de forma impassível. Em uma realidade em que a morte se tornou mais presente do que a vida, não há mais lugar para o espanto e o choque. O funeral do mundo já transpôs a fase do choro e do ranger de dentes.

            Em sua caminhada, Alan olha através da janela de uma casa. Lá dentro há uma poltrona de onde pendem os braços ensanguentados de alguém. Está morto, obviamente, mas a TV continua ligada. Nela se vê a imagem de um jornalista de terno e gravata segurando uma folha de papel em mãos enquanto lê uma mensagem: “... manchas vermelhas que podem ou não vir acompanhadas de prurido, febre, que pode atingir a marca de 39º, derrame ocular severo, dissociações cognitivas ocasionadas por alterações neurológicas que induzem à alucinação e...”.

            Alan volta a caminhar pela rua imunda. O resto do texto ele sabe de cor.

            “Já são dois dias repetindo essa mensagem o tempo todo. Merda de linguagem técnica. Deviam dizer: ‘você vai desenvolver feridas nojentas, dor de cabeça, olhos vermelhos e daí vai começar a alucinar até ficar completamente louco e se matar’. Fim do drama”.

            No seu caminho há um bar com mesas montadas na calçada. Em uma delas está um cara morto, sentado em uma cadeira escorada na parede. A garganta está dilacerada. Em sua mão, um pedaço de vidro quebrado e ensanguentado. Há muitas garrafas de cerveja em cima da mesa. Do outro lado, um cara musculoso, usando camiseta da seleção brasileira de futebol, fala de forma exasperada com o cadáver diante de si: “Ninguém sabe a origem?! Que nada! Foram aqueles filhos da puta que envenenaram o vento!”. Está febril, alucinando. Alan sabe o que vai acontecer com ele em breve.

            Logo adiante, sentado de pernas cruzadas na calçada, está um garoto, olhando fixamente para uma pedra que tem em mãos. Ele levanta a cabeça, olhando para Alan. Está suando, com os olhos vermelhos. “Meu celular ficou sem bateria...”, diz, de forma aborrecida. Medo e delírio, só que não em Las Vegas. Nada de glamour nestes recônditos apocalípticos.

            Na amargura de sua jornada, Alan vê diante do pátio de uma casa a desconcertante cena de uma adolescente despejando o líquido de um galão de gasolina sobre si. Ela lhe encara com olhos insanos, vermelhos como brasas.“Vou fazer como aquela youtuber explicou...”, diz ela, um segundo antes de acender o isqueiro e atear fogo em si mesma.

            Ainda que pesaroso, Alan se afasta, deixando a garota em chamas para trás. Diante do excesso de horror, a sombria impassibilidade se tornou o verniz de sua fachada decadente. Ele entendia a loucura de cada uma daquelas mentes.

            “Eles me enxergam, mas não no mundo real. Me veem apenas como coadjuvante no mundo de suas próprias ilusões”.

            Sob as nuvens escuras do fúnebre anoitecer, Alan percebe flocos esbranquiçados caindo do céu. Ele manuseia a substância.

            “Neve? Não. São cinzas. Símbolos que vêm do céu. A derrocada de nosso tempo”.

            Descobre a origem do fenômeno ao passar diante do hospital pegando fogo. Diante do prédio há vários carros batidos e abandonados. Há também cadáveres. Nenhum sinal de vida.

            “O colapso do último socorro. Esperanças ardendo como a febre”.

            Após mais alguns minutos de soturna caminhada, Alan avista um bosque obscuro, de árvores grandes a antigas, já no final da cidade.

            “Lá está a floresta, nos observando enquanto a civilização queima. As árvores poderiam rir de nós? Acho que não. Só os humanos seriam tão mesquinhos”.

            Em gesto quase teatral, ele retira da mochila um calhamaço de papéis. A reflexão sobre eles tem o efeito de uma unha indelicada que arranha as cicatrizes de feridas antigas e profundas.

            “Foi lá que tive pela primeira vez essa pretensão de ser escritor. Quase quarenta anos depois e nenhum livro concluído. Apenas uma coletânea de bobagens pretensiosas e mentiras mal contadas. A sina de nossos dias”.

            Encenando seu derradeiro drama – ainda que sem qualquer plateia – Alan segue caminhando e espalhando pelos ares as folhas do manuscrito, que voam detrás de si.

            “Mas, como réquiem de uma era, a verdade finalmente vem bem a calhar”.

            Na entrada do bosque, à meia distância, Alan avista a menina olhando para ele. É como ele se lembrava: loira, com os longos cabelos presos em duas tranças, uma de cada lado da cabeça. O vestido imaculado adornando a pureza de seus treze anos. Ela tem um sorriso nos lábios.

            “Lá está ela. Com a beleza preservada pelas décadas passadas. Nada das máculas do nosso tempo. Livre do peso do agora”.

            A menina se embrenha na floresta escura e Alan a segue.

            “O vento está mais forte. Talvez sejam nossas próprias vozes, ecoando desde o passado”.

            Eles passam por um casal de idosos enforcados um ao lado do outro, no galho de uma grande árvore.

            “Quem morre aqui fica em paz? Prefiro acreditar que sim. Cheiro de terra molhado ao invés de esgoto. A leveza da relva ao invés do peso do concreto”.

            Logo adiante, caído abraçado em um galão de agrotóxico, está o corpo de um homem gordo com roupas de caipira. Alan não destina qualquer atenção ao cadáver. Está compenetrado em observar a menina andando à sua frente, entre as árvores.

            “Ela está me levando ao local exato. Há lugares que se tornam verdadeiras cápsulas do tempo. Palcos para cenas marcantes de alguma vida. Tragédias? Por que não?”.

            A menina para ao lado de uma árvore específica. Imóvel, olha para Alan com expressão série.

            “Ali está. Estranhamente, cresceu uma acácia no local”.

            Então, Alan sente sua mente sendo invadida por uma torrente de imagens. Um fluxo contínuo que jorra de algum lugar do passado e lhe mostra os tons sombrios daquela tarde em que menina está sentada em um tronco com um garotos ao seu lado. Ele tem a mesma idade que ela, mas parece mais novo. Ambos estão sorrindo e cochichando, em clima de romance. É como uma cena de flashback com a menina e ele, quando jovens. E o problema é justamente esse. Não importa quantas vezes você assista o mesmo filme, o final é sempre o mesmo.

            “Naquela época havia apenas um tronco de árvore podre aqui...”.

            O rosto do garoto está bem perto da orelha da menina, confidenciando algo.

            “... onde abri meu coração...”.

            A menina dá uma gargalhada, empurra o jovem Alan com uma mão e com a outra faz sinal de negativo, balançando o dedo indicador.

            “... e ela me rejeitou!”.

            A menina se distrai, de joelhos, colhendo algumas flores. Ingênua, desconhecedora do ódio e do ressentimento, não vê quando o garoto se aproxima dela por trás, com olhar transtornado e um galho de árvore em mãos.

            “O fim da inocência. A ascensão de um coração negro e mau. Que sentimento é esse que macula para sempre toda uma existência?”.

            O rosto dele está encrespado de fúria quando seus braços baixam, desferindo o golpe.

            “Quando o sangue inocente é derramado, não há mais chance de redenção. Nunca mais”.

            Com o porrete improvisado e ensanguentado em mãos, o jovem Alan olha para cima. Começa a chover. O corpo da menina morta jazendo aos seus pés, em meio às flores que colheu, agora pisoteadas e esmagadas.

            “Talvez a chuva fosse a tentativa da floresta de limpar a mancha que deixei na história de suas eras... ”.

            O garoto cava a terra com as próprias mãos, debaixo de chuva.

            “... ou fosse apenas o choro das árvores, em luto por causa dela”.

            Ele tapa o buraco manualmente.

            “Ninguém nunca a encontrou...”.

            Em pé, ele observa a cova recém-concluída. Poças já se formam ao redor, por causa da chuva.

            “... e nem seria possível. Esse era um lugar que existia só para nós”.

            Com sua mente vacilante e doentia já de volta ao tempo presente, Alan – o fosso negro de ressentimento e amargura que aquele garoto se tornou – retira da mochila uma pá de jardinagem.

            “Chegou a hora. Enquanto ainda tenho tempo...”.

            Ele escava aos pés da acácia.

            “... de buscar uma apoteose para essa tragédia dos anos perdidos...”.

            A ossada da menina, com partes decompostas do vestido, aparece em meio à terra.

            “... e encontrar você. Pela última vez”.

            De joelhos diante do buraco aberto, Alan – muito suado, trêmulo e com os olhos sendo progressivamente tingidos por um grotesco tom de vermelho –  retira da mochila uma faca de caça.

            “Não tenho medo de ir para o inferno”.

            Apesar de trêmula, a mão de Alan não hesita. Ele corta a própria garganta com a grande faca. O sangue jorra.

            “Vivi no inferno até hoje. Ele sempre esteve dentro de mim”.

            Ele cai no interior da cova.

            “Rejeição, desprezo, medo, remorso, solidão, dor, loucura... Cicatrizes eternas tatuadas na minha alma”.

            Recosta a sua cabeça junto ao crânio descarnado da menina.

            “Mas agora sinto que isso está acabando. Talvez seja tudo uma ilusão, e quando eu reabrir os olhos estaremos de novo naquele dia, sentados no velho tronco, antes de você descobrir que o mal existia”.

            Coloca a mão sobre os ossos da clavícula, como se estive tentando abraçar a morta de forma afetuosa.

            “Ou talvez você não esteja mais lá... talvez eu não te veja nunca mais... talvez a escuridão desse céu sem estrelas... as sombras dessa floresta secular... me tomem por completo...”

            O sangue que escorre de sua garganta cortada é abundante. Seus olhos vermelhos já estão vidrados... se apagando...

            “... e eu fique aqui para sempre... chorando e sangrando... sozinho... no escuro”.

 

 

 

 

P.S:
Uma versão em quadrinhos deste conto foi publicada na clássica revista CALAFRIO, edição de Nº 76, com desenhos de João Ferreira. Para quem tiver interesse em adquirir essa ou outras edições da revista, é possível requisitar diretamente com o editor Daniel Saks através do e-mail: revistacalafrio@gmail.com