3 de jul. de 2023

O ESTRANHO FUGITIVO

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Esse tipo de fugitivo é dos mais estranhos, porque sua fuga começa quando não há ninguém lhe perseguindo. Na verdade, ele gostaria que houvesse. Ser perseguido, ser notado, ser almejado – por mais paradoxal que seja – é estar vivo e, às vezes, ele se sente morto.

            O estranho fugitivo não foge de algum lugar ou indivíduo específico, mas sim da realidade. Ele olha ao redor e o que vê lhe parece hostil, não porque lhe ameaça, mas porque o ignora. A sensação de não pertencimento o instiga a partir. Ele não sabe ao certo para onde. A escuridão das dúvidas lhe oprime e o medo do escuro reverbera o medo do desconhecido. Fugir para um lugar novo não parece seguro. E se o novo for pior do que o antigo? E se lá ele se sentir ainda mais vazio, mais frio, mais sozinho, mais perdido? Não, definitivamente, as incertezas do futuro não são atraentes para esse perfil de fugitivo. Mas, se o presente lhe hostiliza e o futuro lhe amedronta, para onde mais ele pode fugir? Então, nesse paradoxo, se desvela a sua mais marcante característica: o estranho fugitivo é aquele que quer fugir para o passado.

            Mas, é claro, o passado que ele almeja é um passado idealizado, um recorte composto somente pelos momentos bons – alguns notadamente reais, outros consciente ou inconscientemente exagerados e superestimados, e outros ainda que existem apenas em sua mente.

            Na encruzilhada em que o fugitivo se encontra há várias rotas de fuga, mas todas são efêmeras, porque no passado não há permanência. Tal qual a areia de uma ampulheta, escorre sempre de forma inexorável. Seu destino é desvanecer.

            Ouvir recorrentemente as músicas que serviram de trilha sonora aos grandes momentos, rever os filmes clássicos que marcaram época, jogar os velhos videogames que sedimentaram a diversão de toda uma geração. Rememorações prazerosas, porém fugazes. Miragens fadadas a desaparecer na aridez de um deserto interior onde já não brilha mais sol nenhum. Tudo que era, tudo que houve, já não está mais lá. Não há mais troca de discos de vinil e fitas K7. As locadoras de vídeo morreram melancólicas e vazias, com não mais do que alguns poucos nostálgicos para chorar suas memórias em meio a fitas VHS empoeiradas e DVDs riscados. Jogos de 8 e 16 bits? Todos humilhados e trucidados pelas armas modernas de guerreiros moldados em gráficos realistas, de telas de PC e consoles de última geração, altamente treinados por horas infindáveis de partidas on-line. Para contar a História dessa fase idílica perdida, não há mais sítios arqueológicos lá fora. Os resquícios, as fontes históricas jazem agora em HDs, “nuvens on-line” e streamings. O passado virou pó e o futuro é virtual. Para o presente sobrou só um buraco, escuro, triste e vazio.

            Mas essas são as rotas secundárias, obscuras, lembradas por poucos e frequentadas por quase ninguém. A grande freeway que conduz ao “Eldorado” litorâneo do passado é acessada in loco. O estranho fugitivo é um viajante irredutível e o seu ponto de chegada nunca está lá na frente, mas sempre ali atrás. Trafega na contramão do trânsito ordinário, navega no contrafluxo da correnteza. E quando finalmente chega ao seu destino em busca do antigo, se defronta com o novo.

            A busca é pelas paisagens de ontem, mas elas já foram soterradas pelas de hoje. Onde havia aquela casa de estilo peculiar, emanando imagens de existência pitoresca, agora há um arranha-céu de face espelhada, que reflete apenas a frieza do trivial. Aquele prédio antigo, tão singular, tão cheio de história, foi posto abaixo e no seu lugar irrompeu outro, maior e mais moderno, mas que não é cenário de nenhuma crônica, não instiga nenhum devaneio. Uma torre de concreto e ferro desinteressada no que ficou para trás e indiferente ao que está por vir. Monumento indolente, não representa nada, porque foi erigido para ser apenas mais um entre tantos outros.

               Outdoors decrépitos e rasgados tomam o lugar onde antes havia a sombra aconchegante de árvores frondosas. Fachadas de redes de farmácias se impõe onde antes estava o comércio tradicional, que foi julgado ultrapassado e teve que fechar as portas há muito tempo. Muros altos e pichados, cercas elétricas e intimidadoras escondem a lembrança de onde existiam gramados verdejantes para crianças brincarem e varandas aconchegantes para casais se sentarem ao final da tarde. Cores – que eram vivas porque tinham vida – foram encobertas por tons monocromáticos e melancólicos.

            O estranho fugitivo descobre que sua fuga nunca será um sucesso, pois seu refúgio é uma utopia. Anseia por aquilo que não existe mais. Procura o que não pode mais ser encontrado. Anda em círculos, mas nunca chega onde deseja, pois, tal qual um ouroboros, está sempre mordendo a própria cauda.

            Ainda há frestas por onde ele consegue vislumbrar resquícios do que era, focos de resistência que se impõe ante o avanço implacável do porvir. Uma banca de jornal de onde vieram os gibis que embalaram fantasias, um restaurante que sediou refeições memoráveis, uma praça que aconchegou momentos singelos, mas marcantes. Sobrevivem, porém, diferentes. A catarse só pode ser parcial, porque se nem as fotos resistem ao desgaste inflexível do tempo, as paisagens muito menos.

            E os habitantes desse refúgio idealizado? A maioria partiu para sempre e só vai existir em memórias tênues enquanto alguém ainda se lembrar deles. Alguns ainda estão lá, mas mudaram, porque quiseram, porque precisaram ou simplesmente porque foram arrastados  pelo fluxo impiedoso do tempo, que não poupa nada e nem ninguém, sentenciando todos à ruína e ao esquecimento, mais cedo ou mais tarde. É claro que ainda há um ou outro outsider que reluta bravamente em entregar os pontos e ceder à maré metamorfoseante de contemporaneidade, mas estes heróis de outras épocas hoje estão reduzidos a observadores nostálgicos de impérios que já ruíram. O poder está nas mãos de outros e o único status que lhes restou foi o de “fora da lei”. Não aceitam o papel de prisioneiros, mas também estão condenados, pois o tempo é um adversário contra o qual não adianta querer lutar e do qual não há como escapar. Para não ser esmagado por ele, só o que resta é seguir o fluxo.

            Essa é a grande lição que o estranho fugitivo aprende em sua jornada. Ele é obrigado a seguir em frente, mas pode escolher onde, como e com quem quer fazer isso. Sempre haverá uma porta aberta, sempre haverá um meio de continuar, sempre haverá alguém com quem compartilhar o percurso. A estrada está lá, basta decidir como percorrê-la. A busca é o desafio e o prêmio não está no fim, mas no trajeto. Tentando fugir, ele descobriu que é livre.

23 de jun. de 2023

SUL ASSOMBRADO - A ESTRADA

 

Por André Bozzetto Jr

 

            O seu nome oficial é um tabu. Não deve ser mencionado. Não deve ser apontado nos mapas. Como sílabas blasfemas, causa mal-estar em quem ouve, estigmatiza quem pronuncia. Um filho bastardo cuja existência constrange o núcleo familiar. Uma promessa grandiosa nunca cumprida, que envergonha a honra do falastrão. Está no topo da lista dos assuntos sobre os quais é melhor não comentar. Daqueles que é melhor fingir que não existem.

            Contudo, ela existe. Ela está lá. Como uma cicatriz antiga e profunda, corta o território de leste a oeste, acelerando ódio em cada reta, envergando angústias em cada curva.         

            Tal como na fluidez de suas formas, o medo não trabalha com números exatos, mas a imaginação simbólica sim. 666 km de asfalto, poeira, sangue e lágrimas. “Estrada da Morte”, “Rota do Inferno”, apelidos clichês para um mal que também nada possui de original. São décadas atropelando sonhos, estilhaçando esperanças e esmagando futuros. Ano após ano, ceifando vidas.

            Crateras na pista que espelham os buracos deixados no interior de quem viu seus entes queridos embarcarem para a última viagem, da qual nunca mais voltaram.

            Placas pichadas, amassadas e quebradas indicam – em ruínas – os destinos para os quais alguns partiram, mas nunca chegaram.

            Vegetação insidiosa que invade o acostamento e sorrateiramente oculta cruzes improvisadas e tristes flores mortas deixadas como réquiem para alguém que não está mais lá. Não está mais aqui. Não está mais em lugar nenhum.

            Reformas fictícias adicionam camadas de ilusão sobre o sangue ressecado. Monumentos fúnebres onde não há ninguém enterrado. Piras funerárias com cheiro de piche e dinheiro queimado. Obras póstumas de expectativas jamais concretizadas.

           Circular por ela de dia é uma tarefa hercúlea. De noite é vivenciar um pesadelo de olhos abertos. Fantasmas que assombram trechos desertos. Aparições que irrompem de pontos mal-afamados. Espectros oriundos de tragédias. Assombrações originadas de desgraças.

            Em locais onde muita gente de cá costuma passar para o lado de lá, às vezes a porta acaba ficando aberta. Quem é mais sensível consegue enxergar através da fresta. Vê a sobreposição do aquém e do além. Vislumbra a encruzilhada dimensional por onde transitam os vivos e também os mortos.

            Estranhas ilusões, tão perturbadoras quanto a loucura. Tão reais quanto a morte.

31 de mai. de 2023

O MAL QUE LIBERTA

 

Por André Bozzetto Jr

 

            A melancolia está impressa como uma tatuagem arcaica no entardecer da pequena cidade. Há lixo espalhado por todos  os lados. Carros batidos, incendiados, abandonados. Nenhum em movimento. Cadáveres de metal que não transportam mais ninguém. As casas têm as portas e janelas abertas ou quebradas. Desolação escancarada, para dentro e para fora. No fim da rua, dois prédios estão pegando fogo. Duas tochas gigantes esperando para saudar a escuridão vindoura.

            Há mortos na calçada por onde Alan vem passando. Na sarjeta, o corpo de uma mulher com os pulsos cortados. Ela já fora bonita um dia, mas, com o sangue que escorreu pelo asfalto foi-se embora também sua beleza. Na velha árvore, balança o corpo de um idoso enforcado. Humano e vegetal, duas antigas testemunhas de um mundo que não existe mais. Lá na varanda daquela casa está o corpo de um homem grande e gordo em uma cadeira de balanço. A têmpora direita está arrebentada e há um revolver em sua mão. Alan observa a tudo de forma impassível. Em uma realidade em que a morte se tornou mais presente do que a vida, não há mais lugar para o espanto e o choque. O funeral do mundo já transpôs a fase do choro e do ranger de dentes.

            Em sua caminhada, Alan olha através da janela de uma casa. Lá dentro há uma poltrona de onde pendem os braços ensanguentados de alguém. Está morto, obviamente, mas a TV continua ligada. Nela se vê a imagem de um jornalista de terno e gravata segurando uma folha de papel em mãos enquanto lê uma mensagem: “... manchas vermelhas que podem ou não vir acompanhadas de prurido, febre, que pode atingir a marca de 39º, derrame ocular severo, dissociações cognitivas ocasionadas por alterações neurológicas que induzem à alucinação e...”.

            Alan volta a caminhar pela rua imunda. O resto do texto ele sabe de cor.

            “Já são dois dias repetindo essa mensagem o tempo todo. Merda de linguagem técnica. Deviam dizer: ‘você vai desenvolver feridas nojentas, dor de cabeça, olhos vermelhos e daí vai começar a alucinar até ficar completamente louco e se matar’. Fim do drama”.

            No seu caminho há um bar com mesas montadas na calçada. Em uma delas está um cara morto, sentado em uma cadeira escorada na parede. A garganta está dilacerada. Em sua mão, um pedaço de vidro quebrado e ensanguentado. Há muitas garrafas de cerveja em cima da mesa. Do outro lado, um cara musculoso, usando camiseta da seleção brasileira de futebol, fala de forma exasperada com o cadáver diante de si: “Ninguém sabe a origem?! Que nada! Foram aqueles filhos da puta que envenenaram o vento!”. Está febril, alucinando. Alan sabe o que vai acontecer com ele em breve.

            Logo adiante, sentado de pernas cruzadas na calçada, está um garoto, olhando fixamente para uma pedra que tem em mãos. Ele levanta a cabeça, olhando para Alan. Está suando, com os olhos vermelhos. “Meu celular ficou sem bateria...”, diz, de forma aborrecida. Medo e delírio, só que não em Las Vegas. Nada de glamour nestes recônditos apocalípticos.

            Na amargura de sua jornada, Alan vê diante do pátio de uma casa a desconcertante cena de uma adolescente despejando o líquido de um galão de gasolina sobre si. Ela lhe encara com olhos insanos, vermelhos como brasas.“Vou fazer como aquela youtuber explicou...”, diz ela, um segundo antes de acender o isqueiro e atear fogo em si mesma.

            Ainda que pesaroso, Alan se afasta, deixando a garota em chamas para trás. Diante do excesso de horror, a sombria impassibilidade se tornou o verniz de sua fachada decadente. Ele entendia a loucura de cada uma daquelas mentes.

            “Eles me enxergam, mas não no mundo real. Me veem apenas como coadjuvante no mundo de suas próprias ilusões”.

            Sob as nuvens escuras do fúnebre anoitecer, Alan percebe flocos esbranquiçados caindo do céu. Ele manuseia a substância.

            “Neve? Não. São cinzas. Símbolos que vêm do céu. A derrocada de nosso tempo”.

            Descobre a origem do fenômeno ao passar diante do hospital pegando fogo. Diante do prédio há vários carros batidos e abandonados. Há também cadáveres. Nenhum sinal de vida.

            “O colapso do último socorro. Esperanças ardendo como a febre”.

            Após mais alguns minutos de soturna caminhada, Alan avista um bosque obscuro, de árvores grandes a antigas, já no final da cidade.

            “Lá está a floresta, nos observando enquanto a civilização queima. As árvores poderiam rir de nós? Acho que não. Só os humanos seriam tão mesquinhos”.

            Em gesto quase teatral, ele retira da mochila um calhamaço de papéis. A reflexão sobre eles tem o efeito de uma unha indelicada que arranha as cicatrizes de feridas antigas e profundas.

            “Foi lá que tive pela primeira vez essa pretensão de ser escritor. Quase quarenta anos depois e nenhum livro concluído. Apenas uma coletânea de bobagens pretensiosas e mentiras mal contadas. A sina de nossos dias”.

            Encenando seu derradeiro drama – ainda que sem qualquer plateia – Alan segue caminhando e espalhando pelos ares as folhas do manuscrito, que voam detrás de si.

            “Mas, como réquiem de uma era, a verdade finalmente vem bem a calhar”.

            Na entrada do bosque, à meia distância, Alan avista a menina olhando para ele. É como ele se lembrava: loira, com os longos cabelos presos em duas tranças, uma de cada lado da cabeça. O vestido imaculado adornando a pureza de seus treze anos. Ela tem um sorriso nos lábios.

            “Lá está ela. Com a beleza preservada pelas décadas passadas. Nada das máculas do nosso tempo. Livre do peso do agora”.

            A menina se embrenha na floresta escura e Alan a segue.

            “O vento está mais forte. Talvez sejam nossas próprias vozes, ecoando desde o passado”.

            Eles passam por um casal de idosos enforcados um ao lado do outro, no galho de uma grande árvore.

            “Quem morre aqui fica em paz? Prefiro acreditar que sim. Cheiro de terra molhado ao invés de esgoto. A leveza da relva ao invés do peso do concreto”.

            Logo adiante, caído abraçado em um galão de agrotóxico, está o corpo de um homem gordo com roupas de caipira. Alan não destina qualquer atenção ao cadáver. Está compenetrado em observar a menina andando à sua frente, entre as árvores.

            “Ela está me levando ao local exato. Há lugares que se tornam verdadeiras cápsulas do tempo. Palcos para cenas marcantes de alguma vida. Tragédias? Por que não?”.

            A menina para ao lado de uma árvore específica. Imóvel, olha para Alan com expressão série.

            “Ali está. Estranhamente, cresceu uma acácia no local”.

            Então, Alan sente sua mente sendo invadida por uma torrente de imagens. Um fluxo contínuo que jorra de algum lugar do passado e lhe mostra os tons sombrios daquela tarde em que menina está sentada em um tronco com um garotos ao seu lado. Ele tem a mesma idade que ela, mas parece mais novo. Ambos estão sorrindo e cochichando, em clima de romance. É como uma cena de flashback com a menina e ele, quando jovens. E o problema é justamente esse. Não importa quantas vezes você assista o mesmo filme, o final é sempre o mesmo.

            “Naquela época havia apenas um tronco de árvore podre aqui...”.

            O rosto do garoto está bem perto da orelha da menina, confidenciando algo.

            “... onde abri meu coração...”.

            A menina dá uma gargalhada, empurra o jovem Alan com uma mão e com a outra faz sinal de negativo, balançando o dedo indicador.

            “... e ela me rejeitou!”.

            A menina se distrai, de joelhos, colhendo algumas flores. Ingênua, desconhecedora do ódio e do ressentimento, não vê quando o garoto se aproxima dela por trás, com olhar transtornado e um galho de árvore em mãos.

            “O fim da inocência. A ascensão de um coração negro e mau. Que sentimento é esse que macula para sempre toda uma existência?”.

            O rosto dele está encrespado de fúria quando seus braços baixam, desferindo o golpe.

            “Quando o sangue inocente é derramado, não há mais chance de redenção. Nunca mais”.

            Com o porrete improvisado e ensanguentado em mãos, o jovem Alan olha para cima. Começa a chover. O corpo da menina morta jazendo aos seus pés, em meio às flores que colheu, agora pisoteadas e esmagadas.

            “Talvez a chuva fosse a tentativa da floresta de limpar a mancha que deixei na história de suas eras... ”.

            O garoto cava a terra com as próprias mãos, debaixo de chuva.

            “... ou fosse apenas o choro das árvores, em luto por causa dela”.

            Ele tapa o buraco manualmente.

            “Ninguém nunca a encontrou...”.

            Em pé, ele observa a cova recém-concluída. Poças já se formam ao redor, por causa da chuva.

            “... e nem seria possível. Esse era um lugar que existia só para nós”.

            Com sua mente vacilante e doentia já de volta ao tempo presente, Alan – o fosso negro de ressentimento e amargura que aquele garoto se tornou – retira da mochila uma pá de jardinagem.

            “Chegou a hora. Enquanto ainda tenho tempo...”.

            Ele escava aos pés da acácia.

            “... de buscar uma apoteose para essa tragédia dos anos perdidos...”.

            A ossada da menina, com partes decompostas do vestido, aparece em meio à terra.

            “... e encontrar você. Pela última vez”.

            De joelhos diante do buraco aberto, Alan – muito suado, trêmulo e com os olhos sendo progressivamente tingidos por um grotesco tom de vermelho –  retira da mochila uma faca de caça.

            “Não tenho medo de ir para o inferno”.

            Apesar de trêmula, a mão de Alan não hesita. Ele corta a própria garganta com a grande faca. O sangue jorra.

            “Vivi no inferno até hoje. Ele sempre esteve dentro de mim”.

            Ele cai no interior da cova.

            “Rejeição, desprezo, medo, remorso, solidão, dor, loucura... Cicatrizes eternas tatuadas na minha alma”.

            Recosta a sua cabeça junto ao crânio descarnado da menina.

            “Mas agora sinto que isso está acabando. Talvez seja tudo uma ilusão, e quando eu reabrir os olhos estaremos de novo naquele dia, sentados no velho tronco, antes de você descobrir que o mal existia”.

            Coloca a mão sobre os ossos da clavícula, como se estive tentando abraçar a morta de forma afetuosa.

            “Ou talvez você não esteja mais lá... talvez eu não te veja nunca mais... talvez a escuridão desse céu sem estrelas... as sombras dessa floresta secular... me tomem por completo...”

            O sangue que escorre de sua garganta cortada é abundante. Seus olhos vermelhos já estão vidrados... se apagando...

            “... e eu fique aqui para sempre... chorando e sangrando... sozinho... no escuro”.

 

 

 

 

P.S:
Uma versão em quadrinhos deste conto foi publicada na clássica revista CALAFRIO, edição de Nº 76, com desenhos de João Ferreira. Para quem tiver interesse em adquirir essa ou outras edições da revista, é possível requisitar diretamente com o editor Daniel Saks através do e-mail: revistacalafrio@gmail.com

 


   


 

14 de mai. de 2023

EM ALGUM LUGAR DA RS-332

 

Por André Bozzetto Jr

 

            As luzes estroboscópicas que animam a festa fazem às vezes de portal dimensional e eu estou de novo lá. Só mais uma vez – como das outras – que nunca é a última de verdade. Dançando com a ginga de um bloco de mármore e a desenvoltura de uma montanha de granito. Bebendo cerveja morna e azeda, mas que depois das 03 da manhã parece um elixir dos deuses. Observando em meio às luzes coloridas os rostos que, no ar etílico da noite, parecem sempre mais bonitos, sempre mais jovens. Não é curioso, que no fim de um baile de interior tanta gente feia se torne bonita, e que muitos rejuvenesçam como se por mágica? Apenas em relação ao cheiro é que não cabe muita poesia. Perfume é joia rara. O comum é o trinômio: cerveja, cigarro e sovaco. Será que ainda está dando briga lá fora?

            Embarcamos no Chevette vermelho daquele amigo engraçado e partimos. A madrugada já vai adiantada e seguimos felizes pela RS-332, a rodovia da parte alta do vale, por onde transitaram tantos sonhos e agora, para mim, emergem lembranças a cada curva. Naquele ginásio teve uma festa de carnaval com banho de espuma. Ali na frente uma vez pifou o Opala no qual voltávamos de outra festa tipo essa. Naquela curva quatro amigos capotaram em outro Chevette – um branco, dessa vez.

            O motorista ligou o rádio e estava tocando The Killing Moon, da banda Echo and The Bunnymen. Bem, essa parte não é verdade. Essa música é a que estou ouvindo agora, enquanto escrevo essas linhas. Naquela noite o rádio devia estar tocando axé, pagode romântico ou, na melhor das hipóteses, dance music, pois estávamos em meados da década de 90 e era isso que infestava as rádios. Mas quem está fazendo o relato sou eu e muitas vezes a ficção é bem mais divertida do que aquilo que chamamos de realidade, não é mesmo?

            Fiz todas essas digressões apenas para contar que naquela ocasião, assim como em várias outras, eu vi aquele cara. Ele apenas observava. Na época eu ainda não sabia quem era, e como ele não fazia nada além de observar de forma discreta e até sorrateira, eu o apelidei de “O Espião”. O sujeito tinha uma aparência estranhamente familiar e sempre que eu o via sentia uma sensação esquisita, como um déjà-vu ao contrário. Não era como vivenciar uma cena com a impressão de já ter vivido essa mesma cena anteriormente, mas sim como se o fato ainda fosse ser vivenciado de novo, no futuro. 

           Como alguém se sentiria se conseguisse perceber que não está revivendo suas próprias memórias, mas sim participando das memórias de um outro alguém? Talvez tenha sido a primeira vez em que fiquei intrigado com essa espécie de paradoxo.

            Mas, as reflexões tiveram que ser interrompidas. Alguém me sacudiu no banco de trás e eu acordei. Desci do Chevette meio cambaleante e percebi que o domingo já estava raiando. Passaríamos o dia curando a ressaca e na segunda-feira seríamos adultos de novo.