15 de mar. de 2021

NA MONTANHA DO PAVOR - PARTE FINAL


 

Por André Bozzetto Junior

 

            Para ler a PARTE I desta história, clique AQUI, e para ler a PARTE II clique AQUI.

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            Mesmo sem que fosse preciso trocar qualquer palavra sobre o acontecido, todos os fugitivos remanescentes sabiam perfeitamente o que aqueles gritos significavam. Intimamente, um toque de melancolia fustigou cada um deles, mas o desespero e a ânsia por manterem-se vivos fizeram com que logo suas atenções tornassem a ser direcionadas apenas para a fuga que poderia salvar suas vidas.

            Quase no mesmo instante em que o velho guiou o grupo até uma escarpa mais íngreme que as demais circundantes – e passou a escalá-la com uma desenvoltura surpreendente para alguém daquela idade – a chuva que ameaçava cair sobre o vale durante a maior parte do dia finalmente desabou de forma torrencial em meio a relâmpagos e trovoadas.

            Enquanto Milton e Cíntia seguiam o ancião de perto, apensar das inegáveis dificuldades provocadas pelos tropeços e resvalos, Rafael havia ficado um pouco para trás, pois além do tempo que perdeu cogitando ajudar Paulina, ainda estava sendo prejudicado pela chuva que rapidamente transformava em lama o sopé da escarpa e fazia com que ela se tornasse inconvenientemente escorregadia.

            – Desçam pela direita e me esperam na entrada daquele bosque! – disse Jaime ao casal de namorados, tão logo chegaram à parte superior do íngreme aclive – Eu vou ajudar o amigo de vocês a subir e depois encontraremos vocês lá.

            – Podemos ajudar também! – ponderou Milton.

            – Não! Vão à frente! – insistiu o velho – Eu conheço a região e logo alcançaremos vocês!

            Desistindo de insistir, Milton pegou Cíntia pela mão e a puxou no rumo indicado pelo ancião, tentando correr o mais rapidamente possível. Por sua vez, Jaime deitou-se na borda da encosta e estendeu o braço para baixo, na direção de Rafael, que se arrastava à duras penas até lá.

            – Segure a minha mão, rapaz! Vamos! – gritou Jaime, tentando fazer sua voz soar audível em meio às insistentes trovoadas.

            Sem titubear, Rafael estendeu seu braço para o velho e sentiu-se parcialmente aliviado ao constatar, instantes depois, que já estava do lado de cima da escarpa.

            – Até eu recuperar o fôlego, me responda uma coisa, vovô... – disse o rapaz, enquanto sentava-se ao lado do velho, que se encontrava tão ofegante quanto ele – Essa coisa que está nos seguindo é o tal rapaz que você procurava, certo?

            – Sim. – respondeu o ancião, em tom melancólico – É o José Cláudio. Ele é um lobisomem.

            – Um lobisomem?!

            – Isso mesmo. Ele já é assim há muitos anos, desde que foi contaminado quando voltava de um baile. Sempre que é noite de lua cheia eu o tranco em uma jaula para impedir que ele machuque alguém.

            - Ora, vovô, conte direito essa história! – esbravejou Rafael – Se você sempre o mantém trancado, então porque há tantos relatos terríveis sobre esse lugar?! Vai tentar me convencer de que ele não tem nada com isso?!

            – Bem, a verdade é que no início as coisas foram difíceis – disse Jaime, constrangido – Imagine se isso acontecesse com você, como se sentiria?! O pobre rapaz demorou a compreender a sua situação e finalmente optar por se trancafiar na jaula. Antes disso, infelizmente, algumas pessoas acabaram tendo o azar de topar com ele em noites de lua cheia.

            – Você continua me enrolando, velhote! – exclamou Rafael – Vamos deixar de enrolação e abrir o jogo! Eu e os meus amigos vimos dois cadáveres hoje à tarde! E eles não eram tão antigos assim!

            – Acontece que o José Cláudio fugiu uma vez! – respondeu o ancião, com voz trêmula – Ou melhor: duas! E em ambas às vezes pessoas inocentes acabaram sofrendo as consequências! É muito triste que isso tenha acontecido, mas ele não fez por mal! Acontece que, quando é lua cheia, ele simplesmente não consegue se controlar!

            – Não fez por mal?! – vociferou furiosamente o rapaz – Então quer dizer que ele acabou de devorar a minha namorada sem querer?! Ora, faça-me o favor! Se eu soubesse de tudo isso antes, teria metido dez tiros naquele desgraçado ao invés de um só!

            – Você deu um tiro nele?! – exclamou Jaime, surpreso.

            – Dei sim! – respondeu Rafael, sem disfarçar a irritação – Foi um acidente, mas agora me arrependo é por não ter dado outros!

            – Bem, isso explica porque ele não foi para casa ao entardecer. – ponderou o velho, pensativo – Quando chegou à hora de trancafiá-lo e percebi que ele não estava lá, logo entendi que algo devia ter acontecido.

            Antes que o diálogo pudesse ser levado adiante, um uivo terrificante ressoou em meio às trovoadas, deixando claro que a besta continuava no encalço de suas presas.

            – Merda! – esbravejou o rapaz, levantando-se apressadamente – Ele já está ali embaixo! E agora, qual é o plano, vovô?!

            Apesar da indagação do rapaz, Jaime nada respondeu. Apenas levantou-se dissimuladamente erguendo com sigo uma pedra tão grande que mal cabia em sua mão direita. Aproveitando-se do fator surpresa e da distração de Rafael – que estava tentando avistar em meio às sombras a criatura que os perseguia – o ancião aproximou-se do jovem e o atingiu com uma violenta pedrada na cabeça, tão forte que o fez tombar já desacordado e rolar vertiginosamente para baixo da escarpa.

            – Isso é por ter atirado no meu filho, seu garoto imbecil! Toda essa confusão é culpa sua! – vociferou Jaime, ao mesmo tempo em que, metros abaixo, as mandíbulas poderosas do monstro rasgavam a garganta de Rafael e partiam sua coluna vertebral.

 *

            Na entrada do bosque à direita da escarpa, Milton e Cíntia discutiam sobre o que deveriam fazer.

            – Não adianta nos enfiarmos no meio do mato com essa escuridão! – exclamou Milton – Precisamos esperar pelo velho!

            – Veja! – gritou Cíntia apontando para a esquerda – Não é o velho descendo para lá?!

            – É sim! – concordou o rapaz, após observar mais atentamente o vulto que se embrenhava rapidamente no bosque sem lhes destinar maiores atenções.

            Intrigados com a atitude de Jaime, os jovens decidiriam correr em seu encalço.

            – Jaime! Jaime! – gritou Cíntia – Você não ia nos chamar?!

            – Ah, sim! – respondeu o velho, sem muita convicção – Entrei no bosque tão apavorado que nem vi vocês.

            – Onde está o nosso amigo? – indagou Milton, andando logo atrás do ancião.

            – Ele já era. – respondeu Jaime, sem nem olhar para trás – Rolou do barranco e foi pego.

            – Meu Deus! Meu Deus! – exclamou Cíntia, caindo em prantos novamente.

            – Que merda! – gritou o Milton – E você não conseguiu ajudá-lo?!

            – Não. – concluiu secamente o velho, acelerando o passo.

            – E agora, o que faremos?! – insistiu o rapaz.

            – Vamos até o açude. – resmungou Jaime.

            – Açude?!

            – Sim. – confirmou o ancião – Um lago que é utilizado por um morador que vive do outro lado do morro para criar carpas. Lá há um pequeno barco a remo que é utilizado na pesca. Acho que ele poderá ser útil.

            – Não seria melhor tentar chegar até a sua casa, ou de algum outro morador da região?

            – Não dá tempo! – retrucou o velho – Ele nos alcançaria antes de chegarmos. Por isso vamos apelar para o barco. Acredito que, se conseguirmos remar até o meio do açude, ficaremos em segurança.

            Após poucos minutos de apressada caminhada, Jaime – que conhecia perfeitamente cada palmo da região – conduziu os apavorados jovens até a margem do pequeno lago. Naquele momento a chuva já havia cessado e a lua cheia voltava a encontrar brechas por entre as nuvens para lançar sua luminosidade fantasmagórica sobre a paisagem. Sem muito esforço, o velho localizou o pequeno barco amarrado a um palanque em uma minúscula enseada. Nervosamente, ele desprendeu a embarcação das amarras e a empurrou para a água.

            – Esse barquinho não é pequeno demais para três pessoas?! – indagou Cíntia, em meio aos soluços.

            – Acontece que ele vai conduzir apenas uma. – respondeu o ancião, abaixando-se para pegar um remo que se encontrava no assoalho do barco.

            Milton já estava abrindo a boca para questionar a afirmação do velho, mas não teve tempo de pronunciar sequer uma palavra. De maneira súbita e inesperada, Jaime virou-se na direção do rapaz e o atingiu no rosto com um violento golpe de remo.

            Com um grito abafado, Milton tombou na relva molhada e imediatamente sentiu o gosto de sangue lhe inundando a boca.

            – Mas o que é isso?! – gritou Cíntia, enquanto se agachava para amparar o namorado com uma expressão apavorada no semblante.

            – Isso é para vocês aprenderem, seus garotos estúpidos! – esbravejou o ancião, já a bordo do pequeno barco – Quem vocês pensam que são para atirar no meu filho?! Agora aguentem as consequências do que fizeram!

            – Seu velho filho da puta! – vociferou Cíntia, em prantos.

            Mesmo atordoado pelo golpe recebido, Milton levantou-se com a mão no rosto ensanguentado e tentou adentrar no açude ao encalço de Jaime, mas a embarcação já estava fora de alcance. Perplexo, o casal de namorados permaneceu imóvel por um instante, observando o ancião que se afastava remando rapidamente para o meio do pequeno lago, cuja placidez só era fustigada pela luminosidade esbranquiçada da lua cheia que refletia em suas águas.

            De repente, Milton agarrou Cíntia pela mão e a puxou com rispidez, conduzindo-a quase de arrasto através da pequena trilha que costeava o açude.

            – Para onde estamos indo?! – indagou a moça.

            – Para qualquer lugar longe daqui! – respondeu com dificuldade o rapaz, em função do rosto machucado – Não ouviu o barulho na mata lá atrás?! Aquela coisa já está vindo!

            Ao longo de um período que seria incapaz de precisar, Milton escoltou a namorada através da trilha que se afastava do lago e subia em direção a um barranco cuja encosta era totalmente recoberta por capim. Ele tinha certeza de que pelo menos uns dois dentes haviam se quebrado com o golpe desferido pelo velho e talvez até o maxilar. A dor em toda a sua face era intensa. O sangue continuava a escorrer de sua boca e a cada minuto que passava ele sentia-se mais fraco, mas, mesmo assim, procurava ignorar o mal-estar, os tropeços e as quedas para amparar Cíntia e tentar levá-la para um local seguro o mais rapidamente possível.

            Quando chegaram ao topo do aclive, os jovens avistaram uma luz proveniente do que parecia ser uma casa, localizada a uma distância não muito grande de onde se encontravam.

            – Veja! – exclamou a moça, apontando para o local de onde provinha a luminosidade – Vamos descer até aquela casa e pedir ajuda!

            Milton apenas assentiu com a cabeça e seguiu ao lado da namorada, ainda que de forma cada vez mais trôpega.

            Do outro lado do morro, o terreno era recoberto por capim apenas na parte mais próxima ao topo. Na medida em que desciam na direção da casa, os jovens se embrenhavam em uma área onde a mata era mais densa e as árvores de grande porte – inicialmente esparsas – tornavam-se cada vez mais frequentes e próximas umas das outras, fazendo com que, em certa altura, seus galhos e folhagens se emaranhassem a ponto de formar um verdadeiro túnel natural, através do qual o luar não conseguia penetrar.

            Em dado momento, Milton trombou de encontro ao tronco de uma árvore e caiu sentado. Tentou levantar-se de imediato, mas vacilou ao sentir que as forças já o abandonavam.

            – Que merda! – resmungou o rapaz, em um tom sussurrado e exausto – Não enxergo nada nessa escuridão!

            – É só continuarmos descendo em linha reta! – disse Cíntia, tentando motivar o namorado – Logo vamos atravessar esse bosque e então avistaremos a casa com facilidade.

            Milton queria dizer que sim e com isso manter a motivação da namorada, mas quando vislumbrou duas esferas avermelhadas e reluzentes aproximando-se rapidamente em meio a escuridão, tudo que conseguiu foi emitir um gemido de pavor que logo foi substituído por um lancinante grito de dor.

            Quando Cíntia percebeu, a criatura que ostentava aquele par de olhos rubros e demoníacos já havia saltado sobre seu namorado. Na escuridão, ela não enxergava quase nada, mas os urros vorazes emitidos pelo monstro e os berros desesperados que escapavam da boca ensanguentada de Milton não deixavam dúvidas sobre o que estava acontecendo. A moça permaneceu estática, gritando e chorando desesperadamente, incapaz de fazer qualquer coisa enquanto o rapaz era devorado vivo. Sua transtornada imobilidade só foi rompida no instante em que ela ouviu o barulho perturbador do que lhe pareceu ser algo robusto se partindo, no exato instante em que Milton emitiu um grito ainda mais forte e estridente do que os anteriores, para em seguida se calar. Nesse mesmo momento um líquido quente e viscoso espirrou de encontro ao rosto da moça e ela logo compreendeu do que se tratava.

            Saindo daquela espécie de transe que a mantinha imóvel, Cíntia desatou-se a correr ladeira abaixo em meio à escuridão. Na descida, trombou com árvores e pedregulhos, tropeçou em galhos e caiu por diversas vezes, mas, movida pelo intenso desespero, levantou-se após cada queda e, ignorando os ferimentos que maculavam seu corpo, prosseguiu correndo. Quando finalmente conseguiu sair da parte densa do bosque, constatou com um grito de satisfação que a casa que avistara do alto do morro já estava bastante próxima. Poucos minutos depois já se encontrava esmurrando a porta da residência e gritando por socorro.

            Após alguns segundos que lhe pareceram longos como a eternidade, a porta finalmente foi aberta e uma velha apareceu.

            – Querida, o que está acontecendo?! – indagou a anciã.

            – Tem um monstro lá fora! – gritou Cíntia, praticamente atirando-se para dentro da residência e fechando a porta detrás de si – Ele matou os meus amigos e agora está vindo atrás de mim!

            – Calma, minha menina! – disse a velha, em um tom sereno que não demonstrava nenhum espanto – Está vendo estas grades na janela e a tranca na porta? São de prata! Ele não pode entrar aqui. Fique tranquila.

            – Ah, então a senhora já sabe da existência dele! Mas o meu namorado ainda está lá fora! Eu preciso ajudá-lo!

            – Talvez só lhe reste ajudar a si mesma.

            Cíntia compreendeu o que a anciã quis dizer, mas naquele momento seus olhos vislumbraram uma espingarda presa na parede, logo acima da pia da cozinha e a esperança voltou a fustigar seu coração.

            – Me dê aquela arma! – ordenou a moça – Vou voltar para ajudar o meu namorado!

            – Talvez só lhe reste ajudar a si mesma. – repetiu a velha, ainda em um tom de voz condolente.

            – Então pelo menos eu vou encher de chumbo aquele filho da puta! – gritou Cíntia – Meu amigo deu um tiro nele e eu vou dar outro! Bem no meio da cara do desgraçado!

            – Seu amigo deu um tiro nele?! – questionou a anciã, surpresa.

            – Deu sim!

            – Mas e depois, o que aconteceu?!

            – Meu amigo atirou nele sem querer, mas atirou! Se soubesse da verdade certamente teria atirado mais! E depois, quando o monstro começou a nos perseguir, aconteceu o pior: um velho escroto disse que nos ajudaria a fugir, mas escapou sozinho de barco e nos deixou para trás! E ainda deu uma pancada com o remo no rosto do meu namorado!

            – Fugiu de barco?! – indagou novamente a velha.

            – Sim! E por culpa desse velho nojento o Milton foi pego! Agora temo que tenha sobrado apenas eu!

            – Sobrou apenas você?! – perguntou mais uma vez a velha, no mesmo tom de voz monótono.

            – Sim! – esbravejou Cíntia, irritada com as perguntas retóricas da anciã – Agora me dê aquela merda de arma, pois eu vou acertar as contas com aquele bicho filho da puta!

            – Certo, certo. – concordou a velha, finalmente retirando a espingarda do suporte na parede e entregando-a para Cíntia.

            Com a arma em mãos, a moça rapidamente precipitou-se porta afora.

            – Adeus! – disse a velha, voltando a trancar-se na segurança da casa.

            Cíntia nada respondeu, pois todas as suas atenções estavam voltadas para a criatura que naquele exato instante saia de dentro do bosque e seguia lentamente na direção da residência. Uma criatura enorme e de aspecto repulsivo, onde se destacavam os olhos avermelhados e perversos que reluziam à distância.

            Mesmo sem nunca ter empunhado uma arma antes, Cíntia apontou a espingarda na direção do monstro e – tomada pelo ódio – apertou o gatilho com convicção. Para a sua surpresa, apenas um suave estalo metálico seguiu-se ao seu gesto.

            – Meu Deus! – gritou a moça, em pânico – Essa porra de arma está descarregada!

            – É claro que está descarregada! – vociferou a velha em resposta, por detrás da porta da casa – Acreditou mesmo que eu permitiria que você atirasse no meu filho?!

            Cíntia pensou em todas as ofensas e xingamentos que conhecia e almejou despejá-los contra a anciã que a fizera cair em uma armadilha, mas não teve tempo de pronunciar uma palavra sequer antes que o lobisomem arrancasse a arma de suas mãos e a suspendesse no ar, agarrando-a pelo pescoço.

            Quando os gritos de dor e pavor da moça começaram a ecoar, deixando claro que o sangrento ritual de abate havia iniciado, a velha aproximou-se da janela e espiou para fora através de uma pequena fresta.

            – Aproveite bem, seu menino sapeca, pois amanhã você volta para a jaula! – exclamou a anciã, com um sorriso terno e maternal preenchendo-lhe os lábios.

 

Fim  

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