"A Carne do Medo: Uma Análise Macabra e Metafísica de IT (1990) e Suas Reencarnações Cinematográficas"
Por Clayton Alexandre Zocarato
ATENÇÃO: Este texto contém Spoilers.
No subterrâneo escuro da psique humana,
onde a luz da razão hesita em penetrar, habita aquilo que não ousamos nomear.
E
ainda assim, Stephen King o nomeia: IT.
Não
como monstro, mas como conceito, entidade, princípio.
Uma
coisa ancestral que veste os trajes de nossos medos mais primordiais. Na
minissérie de 1990, dirigida por Tommy Lee Wallace, somos levados pelas mãos geladas
da infância até as cavernas interiores onde o terror mora.
Já
nas refilmagens recentes de Andy Muschietti, It: Chapter One (2017) e Chapter
Two (2019), a besta retorna com dentes mais afiados, mas também com maquiagem
digital que suaviza, às vezes, a agonia metafísica que a encarnação original
sugeria.
Não
é apenas uma história sobre um palhaço que devora crianças.
É
um estudo espectral do medo — não como reação, mas como substância.
Como
matéria psíquica.
Como
herança evolutiva.
Em
Pennywise, interpretado com sardônica majestade por Tim Curry na obra de 1990,
a encarnação do horror se faz teatro, pantomima, eucaristia profana. Curry não
atua: ele encarna.
Sua
performance pulsa numa cadência quase barroca, onde cada sorriso é uma ferida aberta,
cada piada, um sussurro de morte.
Em
contrapartida, Bill Skarsgård nos traz um Pennywise que é o outro: alienígena,
parasítico, desprovido do sarcasmo humano que dava ao palhaço original sua
monstruosidade grotescamente familiar.
Skarsgård
é um avatar do medo cósmico à la
Lovecraft, onde o terror não é tanto o que ele faz, mas o que ele é: uma
ausência de compreensão encarnada.
Mas
o que é It, senão um espelho invertido da consciência humana?
Um
inconsciente coletivo que se alimenta do que esquecemos deliberadamente? A cidade de Derry, palco de ambos os filmes, é
menos cenário e mais organismo simbiótico.
Uma
cidade que consente com a monstruosidade.
Uma
cidade que esquece. Que nega. Um símbolo junguiano do recalque.
A
criatura desperta a cada 27 anos — número cabalístico, ciclo de Saturno — como
uma espécie de retorno do reprimido. Freud sorriria, amargamente, diante dessa
repetição mórbida.
A
análise crítica, então, deve se deslocar para além do roteiro, além da
fotografia, e alcançar o âmago filosófico do que está sendo proposto.
O
horror aqui é ontológico.
O
medo não vem de fora. Pennywise não é externo — ele é um sintoma. Lacan, em
suas espirais labirínticas, diria que o real é insuportável. O real sem costuras, sem simbolização.
It
é precisamente isso: o retorno do real em forma de trauma coletivo.
A
criatura se alimenta do medo porque ele é a fonte primária de nossa humanidade
— não a coragem, não o amor.
O medo é anterior. É amniótico.
Não
há separações nítidas entre realidade e fantasia nesses filmes.
A
mente das crianças é palco. A infância, aqui, é território maldito. Um lugar
onde as barreiras cognitivas são porosas e o inconsciente invade o cotidiano.
A
neurociência contemporânea, ao investigar os mecanismos do medo, fala do papel
da amígdala, do hipocampo, das respostas neurovegetativas. Mas nada disso
explica o sorriso de Pennywise.
O
terror é mais do que resposta neural: é abismo.
É
o contato com o que não deveria ser tocado.
As
refilmagens tecnicamente brilham, mas carregam consigo um fardo: o de tornar o
horror explicável.
Há
flashbacks, explicações, até uma origem quase mitológica para It como entidade
cósmica.
Mas
talvez seja justamente na ausência de explicações que o verdadeiro horror
reside.
Em
1990, a produção, limitada pela tecnologia, criava horrores mais sutis — mas
por isso mesmo, mais permanentes.
O
medo que não se mostra é o medo que cresce. O medo que se insinua é o que não se
esquece.
Outras
obras dialogam com esse mesmo terror ancestral. A Nightmare on Elm Street traz
Freddy Krueger como uma figura do inconsciente destrutivo. The Babadook de
Jennifer Kent transforma o luto em monstro, evidenciando a ligação íntima entre
afeto e assombro.
Hereditary,
de Ari Aster, radicaliza o conceito, trazendo o horror como herança — não
genética, mas ontológica.
It,
porém, se distingue porque o horror não é apenas uma consequência, mas uma
estrutura. Um fundamento.
Críticos
literários como Harold Bloom, apesar de sua relutância em aceitar King no
cânone, reconheceram o poder arquetípico de suas narrativas.
Camille
Paglia, com sua sensibilidade para o dionisíaco e o profano, talvez visse em It
um rito de passagem. Um mergulho no horror como revelação.
O
medo, nesse sentido, não é degeneração, mas iluminação. Atravessá-lo é
necessário.
E
então chegamos ao fim — ou melhor, ao eterno retorno. Pois It não morre. Não porque é invencível, mas porque é
interno.
Porque
somos nós. O horror psicológico proposto por King e dramatizado nos filmes é
uma ontologia do medo: não um monstro a ser vencido, mas um espectro a ser
reconhecido. Pennywise dança, sim.
Mas
sua dança é a mesma que Nietzsche viu no abismo. Aquela que nos olha de volta.
Assim,
no silêncio entre os risos do palhaço e os gritos das vítimas, ouvimos algo
mais profundo: o eco de nossas próprias infâncias.
O
medo de não sermos amados. O medo de sermos esquecidos. O medo de sermos...
reais.
E
se o medo for, na verdade, um método de preservação do real?
Uma
âncora contra a dissolução?
Diante
de Pennywise, o palhaço dançarino, não é apenas a infância que vacila — é a
própria estrutura da identidade.
Cada
criança em It é mais que um personagem: é um arquétipo psicanalítico, um
fragmento do que somos ou fomos. Um relicário de traumas.
Bill Denbrough, com seu luto silenciado
pela culpa, representa o trauma fundador: a perda. Seu irmão Georgie é a
primeira vítima visível de Pennywise, mas também símbolo do que foi arrancado antes
mesmo da linguagem dar conta da dor.
Na
ausência de luto processado, o trauma se cristaliza, e Pennywise se alimenta
dessa estagnação. Segundo Freud, o luto é um trabalho. Bill jamais o realiza.
Sua gagueira — uma falha no fluxo da fala — é um sintoma direto da
impossibilidade de narrar o horror. O trauma o petrifica no tempo. E assim, o
monstro volta.
Porque o que não é dito, retorna. Sempre.
Beverly Marsh, por sua vez, é o corpo
sexualizado antes do tempo, a infância violada pelo olhar incestuoso. Em sua
casa, o terror não vem de fora — ele vive ali, no banheiro, nos olhos do pai,
nos gritos que não ecoam.
Pennywise não precisa se esforçar para
assustá-la: ele apenas encarna a opressão que já habita o cotidiano.
A
mancha de sangue que jorra do lavatório, vista apenas por Beverly, é o signo da
feminilidade negada, da puberdade transformada em pesadelo. O sangue que em
outras narrativas representa vida, aqui é puro espanto. Julia Kristeva, em sua
teoria do abjeto, escreveria que o sangue menstrual — ou todo sangue fora do
corpo — é aquilo que o simbólico recusa. Beverly é abjeta. E portanto, perfeita
oferenda ao monstro.
Eddie Kaspbrak,
com seu inalador e hipocondria, personifica a neurose criada pela
superproteção.
Sua
mãe é a figura fálica do controle — um superego vivo —, e sua fragilidade
física é psíquica: o corpo como palco da mentira internalizada. Pennywise se
apresenta a Eddie como doença.
Como
contaminação.
Como
o colapso do corpo — talvez o medo mais arcaico de todos. A neurociência hoje
entende que o medo da doença está entre os mais universais. Ele ativa os
circuitos de sobrevivência com mais força do que o medo da violência. Porque a
doença nos ataca por dentro, assim como faz It.
Richie Tozier é a máscara do riso. O
palhaço que teme o palhaço. A logorreia nervosa de Richie é o mecanismo de
defesa contra o vazio. Jung diria: a sombra de Richie é o silêncio.
E
é nesse silêncio que Pennywise espreita. Nas refilmagens, sua homossexualidade
reprimida é sutilmente explorada como mais um estrato do medo: o medo de si
mesmo. Não há terror mais dilacerante do que olhar no espelho e ver um
estranho.
Mike Hanlon, o guardião da memória,
vive o peso da história. Em suas mãos repousa o terror transgeracional. Em
Derry, ele é o único negro — o Outro absoluto. Seu
medo é ancestral. É o fogo cruzado da violência racial, da exclusão.
Pennywise,
para Mike, é a voz de um tempo que nunca passa. O monstro o visita não apenas
como palhaço, mas como símbolo da supremacia que queima, que lincha, que apaga.
E o mais sinistro: Derry consente.
Ben Hanscom, o garoto gordo, é o poeta
da marginalização. Seu medo é o desprezo, a invisibilidade.
Pennywise,
para Ben, é a risada coletiva. O bullying encarnado. O desprezo das massas. Ele
é a carne sobre a qual a sociedade projeta seu nojo. A psicologia do medo nos
ensina que o riso pode ser instrumento de exclusão. Pennywise ri porque sabe
que o riso é arma.
Esses
personagens são, portanto, feridas
abertas. Pennywise não é causa — é consequência.
Ele aparece onde já havia dor.
Onde
a estrutura da mente já vacilava.
Onde
o medo já havia sido plantado pela cultura, pela família, pela história.
Na
filosofia da mente, o problema do qualia — a experiência subjetiva — é central.
O
que é sentir medo? Podemos mapear os neurônios, observar os neurotransmissores,
descrever o circuito neural?
Mas
a experiência do pavor, do arrepio que paralisa, da sensação de ser observado
no escuro, permanece além do físico.
Pennywise, nesse sentido, é um qualia narrativo:
um esforço de King para simbolizar o terror puro.
Não apenas o medo de morrer — mas o medo de
saber que se está vivo e que há algo que não se pode compreender.
É
aí que a refilmagem falha, em parte.
Ao
tentar racionalizar It, ao dar-lhe uma origem interdimensional, ao transformar
o horror em ficção científica, perde-se o abismo.
O
It de 1990 — com suas limitações visuais e suas atuações teatrais — é mais
verdadeiro justamente porque é mais onírico. O terror é mal definido. É
sugestão.
Como
nos clássicos do expressionismo alemão (Nosferatu, O Gabinete do Dr. Caligari),
o medo nasce do ambiente, da distorção, do excesso de sombra. Pennywise
aparece, às vezes, apenas como um balão vermelho. E esse balão é o que nos
mata.
No
horror japonês (Ringu, Ju-On), há uma mesma ética do não dito. O medo não é
grito, mas sussurro. Em King, e em It, há uma tentativa de conciliar o horror
metafísico do desconhecido com a cultura pop americana — o que resulta num
híbrido fascinante.
A
estética de It não é apenas assustadora — é perturbadora.
Porque o monstro tem rosto de festa infantil.
Porque o mal vem com confete.
Mas
talvez a questão mais metafísica seja: por que o medo da infância é o mais
duradouro?
Por
que tememos o armário, o porão, o palhaço, mesmo depois de adultos? A neurociência sugere que memórias
formadas na infância têm uma carga emocional mais profunda, pois são
registradas em um cérebro ainda em formação.
A
plasticidade neural é maior, mas também mais vulnerável. O medo infantil não se
apaga: ele se transforma em sintoma. Em escolha de vida. Em fobia adulta. Pennywise é um trauma que ganhou carne.
E
o mais cruel: quando adultos, os personagens quase esquecem. A mente os
protege. E, com isso, também os fragiliza.
O
trauma não lembrado é o mais perigoso. Ele não cicatriza. Ele se esconde. E
espera.
Stephen
King nunca escreveu sobre monstros.
Escreveu
sobre pessoas. Os monstros apenas revelam aquilo que os personagens já não
podiam esconder.
A
obra inteira de King é um atlas do medo americano: o medo da exclusão (Carrie),
do isolamento (The Shining), da perda (Pet Sematary), da loucura (Misery). Em It, ele reuniu todos os medos numa só
entidade.
Um
Deus do horror. Um demiurgo do abismo.
É
por isso que, ao fim, os adultos precisam voltar. Porque aquilo que não
enfrentamos nos chama.
Porque
o medo, uma vez plantado, torna-se raiz. E nada mais cresce direito sobre ele.
Derry não é apenas uma cidade. É uma metáfora.
Um
lugar dentro de cada um. E Pennywise é o guardião desse espaço.
Rimos
de nervoso. Fingimos não ver. Mas o balão flutua. Vermelho como o sangue.
Vermelho como o primeiro grito. Vermelho como aquilo que não se esquece.
A
essência do mal em It não é o monstro em si, mas o ritual silencioso da
repetição, da eterna volta ao mesmo ponto de ruptura. Georges Bataille, em seus
escritos sobre o sagrado e o profano, apontaria que o horror é uma forma de
experiência extática, um “excesso” que quebra os limites da ordem racional e
social.
Pennywise
é esse excesso: a irrupção do caos na superfície ordenada da pequena Derry, onde o sagrado é profanado e
o profano se apresenta disfarçado de festa infantil.
A liturgia do medo, portanto, é um rito que se
repete a cada 27 anos, um retorno sacrificial que mantém o equilíbrio entre o
conhecido e o insondável.
Antonin
Artaud, com seu Teatro da Crueldade, desafiaria a percepção do espectador para
além do simples entretenimento — It é teatro cru, espetáculo do horror que
penetra a carne da mente. Tim Curry, no papel original, é Artaud em forma de
palhaço: não apenas um personagem, mas uma experiência visceral, um choque.
A refilmagem, embora tecnicamente refinada,
carece desse grito primitivo — é um sussurro digital diante do rugido teatral.
Em
Cioran, o pessimismo radical encontra eco nas sombras de King.
O
mal não é apenas externo; é o abandono de si mesmo, a queda no abismo interior.
A essência do horror em It é esse desespero
silencioso, o reconhecimento de que, por trás das máscaras da infância e da
memória, existe um vazio que não se pode preencher — um vazio que é o próprio
It.
Michel
Foucault nos recordaria que o poder, o controle social, estão implicados no
terror que permeia Derry. O silêncio dos adultos, a conivência da cidade, são
formas de poder disciplinar que mantêm It vivo.
O
monstro se alimenta da negação coletiva, da recusa em confrontar o passado e a
sombra. É o terror do que a sociedade esconde, e que retorna sempre mais feroz.
Assim,
It é mais que horror — é uma liturgia metafísica, uma dança gótica do medo que
nos obriga a olhar para dentro.
Não
para vencer o monstro, mas para reconhecê-lo como parte do que somos.
O
terror psicológico da obra não é apenas o medo do palhaço, mas o medo do
abandono, da perda, da rejeição, da morte de nossos próprios eus fragmentados.
E
quando o balão vermelho flutua no ar pesado da noite, quando o riso gélido ecoa
no corredor escuro, não é apenas Pennywise que se aproxima.
É
o encontro com nossa própria essência abissal — o sussurro eterno que não pode
ser silenciado, pois habita o silêncio.
Assim,
o horror de It é o horror da mente que se revela — o espelho quebrado onde as
múltiplas faces do medo refletem o que sempre esteve oculto: que somos feitos
não apenas de luz, mas de sombras que dançam, palhaços que riem, e monstros que
habitam o silêncio.
No
cerne do abismo em que It mergulha, o medo do escuro e do desconhecido se impõe
não apenas como um instinto primitivo, mas como uma força capaz de dissolver os
limites entre a vida e a morte, o ser e o nada.
Aqui,
a teoria sociológica de Émile Durkheim sobre o suicídio oferece uma lente
inquietante para entender a pulsão autodestrutiva que emerge do medo profundo —
não apenas o medo de Pennywise, mas o medo existencial que permeia cada
personagem, cada recanto sombrio de Derry.
Durkheim
categorizou o suicídio em quatro tipos — egoísta, altruísta, anômico e
fatalista — cada um refletindo uma relação distinta entre o indivíduo e a
sociedade.
Em
It, percebemos ecos dessa teoria na trajetória dos membros do Clube dos
Otários. O medo que Pennywise insufla, aliado à negligência social e familiar,
cria um terreno fértil para o suicídio egoísta: uma alienação do indivíduo
perante a coletividade que deveria protegê-lo.
A
infância marcada pela exclusão, pela violência e pelo silêncio, torna-se um
cárcere onde o desespero se enraíza.
Este
desespero é musicalmente evocativo em “Fear of the Dark”, do Iron Maiden — cuja
atmosfera gótica e sombria parece sintonizar-se com a ansiedade pulsante do
desconhecido.
A
música narra a experiência atemporal do temor do escuro, símbolo universal
daquilo que não pode ser visto, nomeado ou controlado. “Porque o medo do escuro
é algo que eu realmente entendo,” canta Bruce Dickinson, refletindo a
inevitável luta contra as sombras internas.
Assim
como as crianças de Derry, todos nós carregamos um “medo do escuro” que é ao
mesmo tempo literal e metafórico: o medo da morte, do abandono, do vazio
existencial.
Esse
medo do escuro pode ser associado diretamente aos pecados capitais, estruturas
morais ancestrais que catalogam as fraquezas humanas diante do desconhecido e
do desejo.
A
ira, por exemplo, reverbera nas explosões violentas de Pennywise, bem como na
hostilidade da cidade que prefere o silêncio à justiça.
A inveja se manifesta nas rivalidades
infantis, mas sobretudo na comparação dolorosa entre o “normal” e o
marginalizado.
A
preguiça, enquanto apatia social, é refletida no consentimento coletivo da
população de Derry, que mantém o monstro vivo pelo esquecimento.
A
gula se traduz na voracidade do monstro, na fome incessante pelo medo e pela
vida. A luxúria, por sua vez, encontra sombra nas agressões e abusos que
Beverly enfrenta, e na sexualidade infantil que é simultaneamente descoberta e
reprimida.
A
vaidade e o orgulho, quase ausentes nas crianças, reaparecem na necessidade
adulta de negar o passado, de fingir que nada aconteceu.
Dentro
dessa teia, o suicídio surge como um resultado trágico das falhas humanas em
lidar com seus próprios demônios.
Durkheim
enfatiza que o suicídio anômico acontece quando a ordem social é perturbada —
quando as normas falham, e o indivíduo se vê perdido. It encarna isso em sua
máxima expressão: Derry é uma sociedade anômica, em constante negação de sua
própria sombra. Pennywise é o espelho do fracasso coletivo, o reflexo de uma ordem
social corrompida.
Sob
o prisma da psicanálise, o medo do escuro é o medo do inconsciente — o
território onde jazem desejos reprimidos, traumas ocultos e pulsões mortais.
Freud
via o inconsciente como um território selvagem, e Pennywise é sua manifestação
externalizada, uma força que não pode ser domesticada pelo ego.
A música “Fear of the Dark” ecoa essa ideia,
pois o escuro é aquilo que o ego tenta evitar, mas que o sujeito deve
confrontar para alcançar a integração psíquica.
No
campo da neurociência, estudos indicam que a resposta ao escuro ativa regiões
cerebrais ligadas à ansiedade e à vigilância, como a amígdala e o córtex
pré-frontal.
O
medo, nesse contexto, é um mecanismo adaptativo, mas quando exacerbado,
torna-se patológico. It é a dramatização desse limite tênue, onde o medo se
torna criatura e devora a própria mente.
Portanto,
a analogia entre a obra de Stephen King, a teoria de Durkheim, a música do Iron
Maiden e os pecados capitais traça um mapa sombrio e intricado do terror
psicológico.
Não se trata apenas de enfrentar o monstro
externo, mas de reconhecer que o verdadeiro horror reside na falha humana de
integrar suas sombras, seus medos e suas pulsões.
O
balão vermelho flutua, então, como um símbolo não apenas do perigo iminente,
mas da necessidade urgente de iluminar o escuro dentro de nós, para que a
criança perdida em Derry — e dentro de cada um — não sucumba ao silêncio
eterno.
No
âmago da narrativa de It, os laços que unem as crianças do Clube dos Otários
são tanto um refúgio quanto um espelho dos conflitos sociais que produzem o
medo. Bill Denbrough, carregando a
culpa e o luto não processado, vive sob o peso da anomia — conceito
durkheimiano que define o estado de desorientação que surge quando as normas
sociais falham.
Seu
sofrimento, silencioso e sufocante, é a personificação do suicídio egoísta e
anômico.
A
ausência de apoio social claro e a perda precoce criam um vácuo existencial que
Pennywise explora com voracidade metafísica.
Essa
situação reverbera na canção “Fear of the Dark”, cuja letra não apenas narra o
medo literal da escuridão, mas sobretudo a angústia existencial da
invisibilidade e do isolamento.
O
trecho “I have a constant fear that something's always near” remete diretamente
ao estado psicológico dos personagens: um temor perpétuo do que não se pode
ver, mas que se sente sempre próximo, penetrando a alma.
Assim
como a escuridão da música, a cidade de Derry é um espaço saturado de ausência
de luz — tanto física quanto moral —, onde o mal se esconde e se alimenta dessa
penumbra.
A
presença do medo dentro do escuro, carregado de simbolismo, pode ser
compreendida como um portal para os pecados capitais, que aqui funcionam como
estruturas psíquicas e sociais que alimentam o horror.
A
ira está presente na violência implícita e explícita dos abusos e na fúria das
crianças que lutam contra Pennywise.
A
inveja e a vaidade revelam-se nas dinâmicas grupais e na alienação social,
enquanto a preguiça traduz o silêncio cúmplice dos adultos, que preferem negar
a existência do monstro a confrontá-lo.
A luxúria e a gula aparecem de maneira
distorcida e sombria, em abusos e na fome insaciável do ser monstruoso. Assim,
os pecados capitais não são apenas transgressões morais, mas forças
estruturantes do medo, manifestando-se no psicológico coletivo e individual.
A
relação entre a teoria do suicídio de Durkheim e a narrativa de It se torna
ainda mais evidente quando observamos o comportamento de Mike Hanlon, o
guardião da memória.
Ele
representa o elo com a história não resolvida, a consciência social que
confronta o esquecimento coletivo.
O
silêncio da cidade e a repetição do ciclo de horror são a encarnação da anomia:
a ausência de ordem moral deixa os indivíduos vulneráveis ao desespero e, por
consequência, ao suicídio — não necessariamente literal, mas simbólico, como a
morte da esperança e da infância.
Psicanaliticamente,
Pennywise funciona como a personificação do “Outro” — aquilo que o sujeito teme
e rejeita em si mesmo.
A
repetição do ciclo de horror é o sintoma da neurose coletiva que não se cura. A repressão do trauma e do medo infantil cria
fissuras na psique, gerando um estado de vulnerabilidade constante.
O
retorno do trauma em forma do palhaço indica o fracasso do trabalho de luto e
da integração do inconsciente.
No
plano neurocientífico, a resposta amplificada ao medo do escuro ativa circuitos
de alerta e defesa que, quando ativados continuamente, desencadeiam ansiedade
crônica, fobias e comportamentos autodestrutivos.
Assim,
o suicídio, enquanto ato extremo, pode ser visto como a última tentativa de
controlar ou extinguir esse terror interno inescapável.
Portanto,
a obra de Stephen King, ao combinar o horror externo (Pennywise) com o horror
interno (medos, traumas, pecados), cria uma narrativa profundamente simbólica
que dialoga com múltiplos níveis do sofrimento humano.
O
“balão vermelho”, como sinal visual, é o aviso permanente, a lembrança de que o
escuro nunca está vazio, e que os monstros que nele habitam são, em última
instância, parte da nossa própria alma fraturada.
No
cerne da experiência humana, o existencialismo revela o indivíduo lançado num
universo sem sentido, onde o absurdo é o terreno de fundo da existência.
Jean-Paul Sartre e Albert Camus desvelam o paradoxo do ser: a busca por sentido
em um cosmos indiferente, onde a morte é a única certeza e a liberdade absoluta
traz consigo o peso do nada.
It
encarna esse drama ontológico. As crianças de Derry são seres expostos à
angústia primordial: a sensação de abandono, o enfrentamento do nada —
simbolizado pelo abismo de Pennywise.
O
palhaço-monstro é o absurdo em forma de criatura, um enigma que não se explica
e não se compreende.
Sua presença não depende de lógica, mas de uma
força irracional que devora a esperança e a segurança.
Bill,
com sua gagueira, não é apenas um menino ferido pela perda; é o sujeito
existencial que tenta encontrar sentido no caos.
Sua
trajetória é um esforço para afirmar sua liberdade e reconstruir o mundo
fragmentado pela morte do irmão.
Na
filosofia sartreana, isso é a “náusea”: o enfrentamento da contingência que
abala a essência.
Beverly,
presa a um ambiente abusivo, vive o horror da facticidade: a condição dada,
cruel e inescapável.
Sua luta representa a afirmação da liberdade
diante do determinismo social e familiar, um gesto de revolta contra o destino
imposto.
Eddie,
com seu medo da doença e da fragilidade, é o sujeito que busca no corpo um
refúgio, mas descobre que o corpo é também um cárcere.
Sua
neurose é a manifestação do conflito entre o desejo de segurança e a
inevitabilidade da vulnerabilidade humana.
A
angústia do medo do escuro, a vulnerabilidade exposta pela música “Fear of the
Dark”, é a expressão musical do absurdo que permeia o texto.
A
sombra não é apenas ausência de luz, mas a metáfora do vazio existencial que
oprime o sujeito.
O
retorno constante do monstro a cada 27 anos é o eterno retorno nietzschiano, um
ciclo de sofrimento que desafia a liberdade de ruptura.
Derry,
assim, é o espaço onde o indivíduo é confrontado com a repetição do trauma, o
qual só pode ser enfrentado pela coragem de reconhecer e transcender o medo.
Sob
a lente da psicanálise, esse enfrentamento é o trabalho do ego que deve
integrar as sombras do inconsciente, representar a consciência e construir a
narrativa do self. Pennywise é o id primitivo, a pulsão da morte, o retorno do
recalcado.
A resistência ao monstro é o esforço pela
síntese psíquica, pela saúde mental.
No
campo do horror clássico, It dialoga com obras como O Exorcista e O Iluminado,
onde o mal toma formas que são reflexos do inconsciente coletivo e individual.
Ao
contrário do terror gore ou do slasher, King propõe um horror metafísico, onde
a verdadeira ameaça é o vazio dentro do sujeito, o medo do esquecimento, da
morte e da solidão.
Assim,
It não é apenas uma obra de monstros, mas uma meditação profunda sobre o medo
como condição existencial.
A
repetição do horror, o balão vermelho, o escuro opressivo — todos são símbolos
da luta do ser contra o nada, contra a dissolução do sentido.
A
obra It dialoga com um panteão sombrio de clássicos do terror que exploram o
abismo do medo psicológico e a dissolução da identidade diante do inexplicável.
Em O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick,
adaptado da obra homônima de Stephen King, a ameaça reside no isolamento e na
loucura crescente, como uma espiral de desintegração psíquica e social.
O
Hotel Overlook é um microcosmo de opressão e memória do mal, refletindo a luta
interna do protagonista com seus próprios demônios — similar ao modo como Derry
se torna um espaço simbólico do trauma coletivo em It. Ambos os filmes
enfatizam a angústia existencial, a luta contra forças internas que se
manifestam no espaço externo.
Já
O Exorcista (1973), de William Friedkin, aborda o horror pela possessão
demoníaca, traduzindo o conflito entre o sagrado e o profano, o corpo e o
espírito, em uma batalha metafísica.
Diferentemente do terror corporal e explícito,
a possessão aqui é metáfora para o medo do desconhecido dentro do próprio corpo
e alma — uma luta que ressoa com a personificação de Pennywise como um mal
primordial que transcende a forma e a razão.
It
amplia essas abordagens ao inserir um monstro que é o produto de um trauma
coletivo e individual, um espectro que se alimenta dos medos reprimidos de uma
comunidade inteira.
Aqui,
a psicanálise freudiana e lacaniana emerge nitidamente: Pennywise é o “Outro”
simbólico que reflete as fissuras do inconsciente e o medo do sujeito do que
está além da linguagem e do controle racional.
Filosoficamente,
It se apoia em conceitos de Heidegger sobre o “ser-para-a-morte”
(Sein-zum-Tode), onde o medo não é mera reação a estímulos externos, mas uma
condição ontológica que revela a finitude do ser.
O
monstro não é simplesmente uma ameaça física, mas o lembrete constante da morte
que espera, da aniquilação do ser. Essa perspectiva transcende o terror
imediato e se insinua como um horror existencial que dilacera a alma.
Outro
paralelo encontra-se em O Babadook (2014), que explora o luto, a depressão e a
repressão de traumas psicológicos através de uma criatura que personifica esses
estados emocionais.
A
similaridade com It reside na transformação do medo interno em forma tangível,
em espectro, e na necessidade de confrontar essas sombras para alcançar algum
grau de cura ou libertação.
Assim,
ao contrário de narrativas que privilegiam o choque ou o grotesco, It
privilegia o terror psicológico e metafísico, articulando o medo como uma
experiência
O
medo do escuro, presente em It e evocado na música “Fear of the Dark” do Iron
Maiden, é um arquétipo do terror psicológico.
Sob o olhar filosófico, o escuro não é mero
fenômeno físico, mas símbolo do desconhecido, do nada, do abismo que confronta
o sujeito com sua finitude e ignorância. Heidegger concebe o ser humano como um
“ser-no-mundo” cuja existência é definida pelo “ser-para-a-morte” — a
consciência da finitude.
O
escuro é a metáfora dessa finitude: um espaço onde a ausência de luz revela a
ausência de respostas, a suspensão do sentido.
Na
psicanálise, o escuro é o espaço do inconsciente — vasto, inexplorado,
carregado de desejos reprimidos, traumas e medos que o ego evita para preservar
a sanidade.
Freud já apontava que o medo infantil do
escuro representa a resistência do ego em lidar com o que está fora de seu
controle, fora da consciência.
Lacan, por sua vez, consideraria o escuro como
o “Real” — aquilo que escapa à simbolização, que não pode ser integrado na
linguagem, e que provoca a angústia pura. Pennywise,
enquanto manifestação do medo, é a personificação desse Real aterrador: um ser
que escapa a qualquer lógica ou narrativa que o ego possa construir.
A
ausência de estímulos visuais ativos o sistema de alerta do cérebro, aumentando
a vigilância e a produção de adrenalina — mecanismos que, em situações normais,
nos protegem, mas que, quando exacerbados, desencadeiam transtornos ansiosos.
Essa
resposta neurobiológica se materializa no medo visceral dos personagens, cuja
exposição prolongada ao escuro e ao desconhecido os empurra para estados de
pânico, dissociação e até comportamento autodestrutivo.
It
aprofunda esse estado ao colocar os personagens num ambiente onde o escuro é
onipresente — Derry é uma cidade onde o mal se esconde não só fisicamente, mas
nas memórias esquecidas e no silêncio social.
O
ciclo de terror se alimenta do medo coletivo, uma neurose social que mantém o
monstro vivo.
A música “Fear of the Dark” serve como trilha
sonora simbólica dessa luta interna e externa contra o desconhecido: o medo que
não se pode nomear, que não se pode dominar, mas que exige ser enfrentado.
A
analogia com os pecados capitais, especialmente a preguiça e a ira, reforça a
dimensão moral e social do medo.
A
preguiça, entendida como apatia e omissão, é a força que permite a persistência
do mal — o silêncio cúmplice dos adultos que negam os horrores de Derry. A ira, como resposta à injustiça e ao
sofrimento, pode ser tanto destrutiva quanto emancipadora, ilustrando a luta
dos personagens contra o monstro e contra as próprias sombras.
Este
entrelaçamento entre filosofia, neurociência e psicanálise oferece um panorama
complexo do horror em It: não um simples susto, mas uma experiência que toca o
núcleo do ser, a relação do homem com o desconhecido, com a morte e com seus
próprios demônios internos.