Em
1986, o diretor Mike Marvin lançou The Wraith, um filme que, à primeira vista,
poderia ser rotulado apenas como mais um exemplar da era dos “super‑carros,
rachas e neon” dos anos 80.
No entanto, a despeito das suas
limitações narrativas evidentes, o filme revela camadas simbólicas que
justificam uma leitura mais aprofundada — envolvendo questões metafísicas,
filosóficas, estéticas, de realismo fantástico, literárias, históricas,
sociológicas e mesmo psicanalíticas.
Ao colocar o protagonismo nas mãos
de Charlie Sheen (no papel de Jake / The Wraith) e num contexto de ruas
desertas, gangues de racha, vingança pós‑morte e automóveis
quase sobrenaturais, o filme articula uma fábula que vai além do simples
espetáculo de ação.
No filme, Sheen interpreta Jake
Kesey — que, ao longo da narrativa, revela‑se como o mistério
“The Wraith”, uma entidade que regressa após um assassinato para exterminar uma
gangue de drag‑racers que violaram normas morais e
violentas.
A atuação de Sheen, embora limitada
em termos de profundidade cénica (visto que o filme privilegia mais o carro, os
rachas e a estética do que o conflito interior verbalizado), assume uma função
simbólica importante: ele é o mediador entre dois mundos — o mundano (a cidade‑deserto
de Brooks, Arizona) e o liminar (aquele que regressa da morte ou do além para
cumprir uma justiça).
Esse papel coloca‑o
numa posição filosófica: Jake/Sheen representa o sujeito que ultrapassa os
limites do humano comum, que atravessa o limiar entre vida e pós‑vida,
entre carne e metáfora, entre o visível e o invisível.
Sua presença na tela é marcada por
uma estética de distância — ele não se insere plenamente no mundo da gangue,
nem no mundo legal do xerife; atua de modo espectral, silencioso, quase sem
diálogo, frequentemente vestido de couro ou capacete (quando assume a
identidade de The Wraith).
Essa articulação remete à figura do “estrangeiro”
ou do “forasteiro” que chega para restabelecer uma ordem perturbada.
Sob a lente psicanalítica, Jake pode
ser visto como o sujeito que encarna o retorno do recalcado: ele volta não
apenas para vingar‑se, mas para trazer restauração
simbólica à comunidade que sofreu a perda de Jamie Hankins (assassinato
cometido pela gangue).
Essa lógica de retorno e justiça remete ao que
Lacan chama de “gozo” do além‑túmulo e à invasão
do traumático no simbólico.
O filme introduz elementos que
escapam ao realismo estrito: o carro invencível (uma Dodge M4S
Turbo Interceptor conceitual) conduzido por um piloto enigmático que parece não
seguir as regras do mundo comum.
A movimentação entre vida e morte, a
identidade dupla de Jake/Wraith e Jamie, a sensação de que o herói não pertence
inteiramente ao mundo dos vivos: tudo isso aponta para o realismo fantástico —
no qual o extraordinário aparece no interior do mundo cotidiano, e a hesitação
(conceito de Tzvetan Todorov) entre explicação racional e inexplicável
permanece aberta.
Em termos metafísicos, o filme
coloca em jogo a questão do que acontece depois da morte, da justiça que não é
nem da lei nem do mundo visível, e da lógica de vingança que rompe o contrato
social.
A gangue de rachas domina pelo medo
e pela violência sem sentido, e Jake surge como “outro” que reintroduz um
princípio moral além do visível.
Essa figura de retorno do morto, de espírito
vingador, associa‑se à tradição de
ficção sobrenatural (fantasma, wraith = espectro) e também à estética do road‑movie, do racha, do asfalto e dos motores
— o que configura uma hibridação que torna o filme curioso do ponto de vista
estético‑filosófico.
A estética do filme (cenários
desertos do Arizona, túnel de estrada, neon, metal, explosões, som de motores)
cria uma liminaridade: o mundo humano é estendido para um espaço onde as
máquinas, a velocidade, a morte e o sobrenatural convergem.
Nesse sentido, a obra se relaciona
com as reflexões de Gilles Deleuze sobre zonas de indiscernibilidade — aqui
entre humano e máquina, vivo e morto, vigilante e espírito — e com a provocação
estética de que o real pode conter o irreal sem ruptura brusca.
Liricamente, The Wraith emprega
vários motivos clássicos: a vingança, o pacto, a metamorfose, a fuga da
mortalidade.
A estrutura narrativa lembra a fábula gótica
ou pulp‑fantástica: um jovem assassinado (Jamie),
uma moça traumatizada (Keri) (Sherilyn Fenn), uma gangue de predadores
(Packard Walsh e seus homens), e o retorno do justo que desafia a ordem
estabelecida.
A
figura de Jake/ Wraith é quase borgiana: como em Jorge Luis Borges, o universo
visível está entrelaçado com um outro invisível, o espectro que revela‑se sobjacente à realidade.
No aspecto literário, o mundo do
filme pode ser comparado ao “fantástico” descrito por Todorov ou ao “estranho”
segundo Sigmund Freud — o retorno do recalcado, o familiar que se torna
inquietante, o veículo conhecido que assume uma função de mediador entre
mundos.
Como Freud postula em “Das Unheimliche”*,
aquilo que parecia seguro repentinamente revela‑se
ameaçador.
O carro, a estrada, o racha —
elementos familiares dos anos 80 — tornam‑se
veículos de vingança e de intervenção sobrenatural.
Narrativamente, o filme situa‑se também no campo da moralidade violenta:
os atos da gangue não são apenas crimes comuns, mas transgressões simbólicas
(roubo de identidade através de carros, dominação sexual da moça, assassinato
impune).
A presença do herói espectral traz a
restituição de uma ordem quebrada — algo presente em narrativas de vingança de
literatura popular (como no faroeste) ou no mito. A crítica cinematográfica identifica esse aspecto: “Death on
Wheels, Love from the Beyond…” **
Assim, o filme dialoga com formas literárias
de redenção e expiação.
O filme surgiu em meados da década
de 1980, um período marcado por certa epiderme de cultura juvenil irritada,
pela ascensão do consumismo automotivo, pelo domínio simbólico do carro como
extensão da masculinidade, e pelo paradoxo entre liberdade (a estrada, o motor)
e controle (gangues, instituições).
Nesse contexto, a gangue de racha
encarna um terrorismo simbólico local — em vez de uma ameaça externa ou global,
o mal é interno, banhado por luzes de neon e couro.
Socialmente, o filme toca na
vulnerabilidade da comunidade (Brooks, Arizona) frente a forças violentas que
escalam o racha, o roubo, a humilhação.
A figura do xerife (interpretado por
Randy Quaid) aparece impotente, simbolizando a falha da autoridade convencional
frente à transgressão sobrenatural.
Assim, o retorno do Wraith pode ser lido como
reivindicação simbólica da comunidade contra o descontrole do consumo, da
violência, da masculinidade tóxica associada aos motores.
Historicamente, a filmagem no
Arizona e a ambientação de estrada evocam o vazio pós‑industrial, o “fim do caminho” americano —
desertos, auto‑estradas vazias,
gangues jovens que precisam encontrar sentido no racha e no roubo.
Em termos de cultura
cinematográfica, o filme se insere no resquício da era do automóvel‑herói, do vigilante solitário em máquina
potente, mas acrescenta o fantástico e o sobrenatural, o que o distingue de
meros filmes “pop” dos motores.
Do ponto de vista psicanalítico,
podemos ler o Wraith como figura do ego que retorna para confrontar o superego
pervertido da gangue e da comunidade que assentou sobre a violência.
A gangue representa o pulsional descontrolado
— desejo de poder, domínio, roubo, humilhação — sem freios simbólicos.
A resposta, Jake/Wraith, vem como
figura que incorpora sublimação vingativa: ele regressa não para matar sem
sentido, mas para restaurar ordem — embora vernizada na forma do espetáculo de
destruição automotiva.
O carro invencível torna‑se símbolo de potência libidinal
sublimada, mas também da mortalidade vencida: o Wraith atravessa obstáculos
humanos, máquinas quebram‑se, mas o veículo
persiste — metáfora de que a justiça atravessa o tempo.
A identificação de Keri com o Wraith
sugere igualmente a figura da mulher‑traumatizada
que encontra no herói espectral um agente de libertação.
A presença de cicatrizes no corpo de
Jake (notadas no filme) indica que ele viveu um trauma que o projetou num corpo‑máquina de vingança.
Em suma, o filme propõe — talvez sem
querer de forma sofisticada — que a violência simbólica retorna transformada, e
que o motor e a estrada são palco de uma dialética entre vida‑morte, desejo‑culpa, humano‑sobrenatural.
Para situar o filme no panorama
cinematográfico, vale estabelecer comparações:
Em relação a Christine (1983,
adaptação de Stephen King) — outro filme de carro possuído/assassino — The Wraith
difere por colocar a vingança pós‑morte
como motor central, em vez de simplesmente a possessão automotiva.
Comparado com os filmes de “invasão”
ou de vingança fantasmagórica nos anos 80, The Wraith adota uma estrutura que
remete ao faroeste de vigilante solitário, mas transplantado para o asfalto e o
motor.
Com relação a filmes mais explícitos
de horror sobrenatural (por exemplo, The Crow, 1994), o Wraith antecipa o tema
do morto que volta para vingar‑se, embora com
menos densidade narrativa e mais campo estético.
Como aponta Mana Pop, “Anyone
who’s read … The Crow … will notice the family resemblance.” (“Qualquer pessoa
que tenha lido … O Corvo … vai notar a semelhança familiar.”).
Do ponto de vista do realismo
fantástico, o filme se aproxima de obras em que o extraordinário se insinua no
mundo comum sem grande microexplicação — um princípio destacado por Todorov.
Assim, a forma do carro, a cicatriz
de Jake, a invisibilidade da lógica do além‑túmulo,
todos são deixados em aberto, gerando o efeito de estranhamento.
Do ponto de vista simbólico, embora o filme
não se proponha explicitamente a uma reflexão filosófica complexa, ele abre
janelas para leituras.
O automóvel como corpo híbrido
(máquina/ser), o motor como pulsão, o racha como desordenamento social.
The Wraith, em seu núcleo simbólico,
constitui mais do que um filme de racha e super‑carros:
ele articula um híbrido entre ação, terror leve, fantasma e justiça vingativa.
O protagonista representa um sujeito
liminar, atravessado por cicatrizes e por uma justiça além do mundo dos vivos.
A estética do filme — estrada,
motor, noite, explosões — conjuga‑se
ao elemento metafísico do retorno pós‑morte
e à estética do realismo fantástico: o sobrenatural irrompe no mundo cotidiano
sem explicações completas, mas com força simbólica.
Esse filme revela‑se, portanto, um terreno fértil para
reflexões sobre tecnologia, mortalidade, desejo vingativo, falha institucional,
redenção e alteridade.
Ao compará-lo com outras
obras de carro‑terror ou vingança
espectral, observa‑se que The Wraith
ocupa uma posição singular — menos sofisticada, talvez, do que clássicos do
fantástico, mas mais ousada em cruzar gêneros e em apostar no mito automotivo
como expressão simbólica.
The Wraith é um produto estético de
seu tempo — os Estados Unidos dos anos 1980 — mas paradoxalmente se descola de
sua condição puramente datada ao lançar mão de elementos que permitem uma
leitura pelo viés do realismo fantástico.
O retorno de um morto sob a forma de
um justiceiro automobilístico, a indistinção entre espectro e humano, o carro
como extensão ontológica do herói e a hesitação entre explicações racionais e
sobrenaturais são marcas que o aproximam das grandes inquietações da literatura
fantástica.
Voltando a Borges, especialmente em
contos como “O Aleph” e “A Morte e a Bússola”, encontramos o conceito de um
mundo onde o extraordinário não se impõe com grandiloquência, mas com a frieza
da lógica metafísica.
Como em The Wraith, há em Borges o gosto por protagonistas
que estão deslocados do mundo ordinário, muitas vezes retornando para fechar
uma história de maneira circular — como um destino que se cumpre fora do tempo
cronológico. Jake Kesey ressuscita de maneira misteriosa.
Seu corpo, reconfigurado como uma
entidade parcialmente mecânica, retorna não como o mesmo indivíduo, mas como
uma instância simbólica que reconfigura a realidade. Borges escreve: “El tiempo
es la sustancia de que estoy hecho. El tiempo es un río que me arrebata, pero
yo soy el río.”
Jake é exatamente essa figura: ele
não volta “como era”, mas retorna como o tempo que vinga a si mesmo, como a
memória do trauma que reconfigura a cidade (ou o mundo narrativo) até
restabelecer uma ordem perdida.
Assim como em “A Morte e a Bússola”,
onde a solução do enigma exige uma leitura metafísica dos eventos, The Wraith
só encontra coerência quando aceitamos que o filme está menos preocupado com
causalidade física do que com causalidade simbólica.
Franz Kafka, por sua vez, nos legou
o universo do absurdo, da transformação involuntária e da opacidade das
motivações existenciais.
Em A Metamorfose, Gregor Samsa transforma-se
em inseto sem explicação plausível; em O Processo, Josef K. é acusado por um
crime não revelado e enfrenta um tribunal impassível.
Em The Wraith, Jake morre — e
retorna sem palavras para explicar sua transformação. Assim como Kafka nunca
nos revela o "porquê" da metamorfose, Marvin não oferece qualquer
explicação científica, religiosa ou mitológica para a reencarnação espectral de
Jake. Isso é crucial.
Jake é, como Kafka descreve em O
Castelo, alguém que está “no mundo, mas não pertence a ele”.
Seu rosto é jovem, mas seu corpo foi
reconstruído; ele habita a cidade como estrangeiro, mesmo sendo, em segredo, um
antigo habitante.
Essa duplicidade, essa ambiguidade
entre o pertencimento e a alienação, é tipicamente kafkiana.
Kafka nos diz que a razão humana é
impotente diante de certas forças — o tribunal, o castelo, a metamorfose. Em The
Wraith, o mesmo ocorre com o espectro automobilístico.
O xerife não pode compreender, os
inimigos não podem resistir, e nem mesmo a amada reconhece o amado até que a narrativa
esteja praticamente encerrada.
Há uma lógica do absurdo que rege os
eventos, com a única certeza sendo que o retorno do morto cumpre uma função que
escapa à lógica racional comum.
Tzvetan Todorov, em sua obra
fundamental Introdução à Literatura Fantástica, define o fantástico não pelo
evento em si, mas pelo efeito que ele causa: a hesitação entre uma explicação
racional e uma sobrenatural.
Essa hesitação é o cerne do efeito
fantástico — quando nem o narrador nem o leitor (ou, no caso do cinema, o
espectador) sabem ao certo se aquilo que estão vendo pertence ao plano do
natural ou do extraordinário. Em The Wraith, a hesitação é total.
Jake voltou dos mortos? Ele é um
espectro, um mutante, um robô, um anjo vingador, um morto-vivo, ou uma projeção
coletiva do desejo de justiça?
O filme nunca responde. E isso é justamente o
que o aproxima da teoria de Todorov. A estética do filme, com seus desertos
surrealmente vazios, as luzes de neon que não iluminam nada, o carro futurista
sem explicação tecnológica, tudo isso contribui para essa ambiguidade.
Todorov escreve: “O fantástico ocupa
o tempo desta incerteza. Assim que ela se decide — se o personagem opta por uma
explicação ou outra —, ele deixa o terreno do fantástico para entrar no maravilhoso
ou no insólito.”
The Wraith se mantém,
intencionalmente ou não, nesse limiar: jamais nos dá uma explicação completa.
Isso o diferencia de filmes
meramente sobrenaturais, onde o “espírito” é claramente identificado, ou de
ficções científicas, que explicam o fenômeno por tecnologia.
A escolha pela opacidade narrativa
coloca o filme numa zona fértil da estética fantástica. A comparação com Borges
permite enxergar Jake como um avatar do tempo e da memória que retorna para
corrigir uma disfunção simbólica.
Com Kafka, lemos sua condição como a
do estranho transformado que precisa cumprir um destino sem que lhe seja
oferecida comunicação ou redenção no sentido tradicional.
Com Todorov, percebemos que o filme
todo repousa na indecidibilidade — e é precisamente essa hesitação que permite
sua leitura como exemplo tardio e cinematográfico do realismo fantástico.
Dessa forma, The Wraith é um
exemplar subestimado de um tipo específico de narrativa híbrida: entre o terror
simbólico, a ficção fantástica e a fábula moralista de vingança.
Sua estética o ancora no imaginário
dos anos 1980, mas seu conteúdo o projeta como um objeto interpretável sob
lentes muito mais ricas do que sua superfície sugere. Não é exagero, portanto, dizer que The Wraith, como Borges e
Kafka, habita um universo onde os mortos voltam não para dar susto, mas para
revelar que o real é, por natureza, um espaço instável, onde o tempo se dobra,
a identidade se dissolve, e o impossível insiste em retornar.
Na superfície, The Wraith parece um
filme sobre vingança juvenil com carros futuristas. No subsolo narrativo, no
entanto, pulsa uma inquietação mais profunda: o que é um ser que morreu e
voltou com um propósito? A pergunta não é apenas sobrenatural — é filosófica.
Que tipo de existência possui alguém
que já não é totalmente vivo, mas também não é completamente morto? Jake Kesey,
ao retornar como The Wraith, é uma figura ontologicamente ambígua. Como nos
diria Martin Heidegger, o “ser-para-a-morte” é a condição fundamental da
existência humana: vivemos à sombra de nossa finitude.
Jake, ao morrer e retornar, suspende
essa lógica — ele torna-se algo além da existência ordinária, uma presença
espectral que desafia a finitude e, por isso, já não está no campo do humano
pleno.
Ele está no que Derrida chamou de “hauntologia”***:
o ser assombrado pela ausência e pelo retorno do que não está mais. Segundo
Jacques Derrida, em Spectres de Marx, o espectro é uma figura que carrega
consigo a urgência ética e o apelo da justiça: “Um espectro sempre volta para
nos lembrar de uma promessa não cumprida, de uma dívida não paga.”
Assim é The Wraith: ele não é apenas
um morto que volta — ele é a encarnação de uma dívida simbólica que precisa ser
saldada. A cidade, o xerife, a gangue, todos participaram ou consentiram no
assassinato de Jamie Hankins (o “eu” anterior de Jake). O retorno, então, não é
apenas vingança: é a busca por um realinhamento cósmico da justiça.
No Livro X da República, Platão
narra o Mito de Er, onde almas dos mortos, após passarem pelo juízo no Hades,
são recompensadas ou punidas antes de retornarem ao mundo dos vivos para reencarnar.
The Wraith pode ser interpretado à luz desse
mito: Jake, injustamente assassinado, retorna ao mundo físico não apenas para
punir, mas para corrigir uma assimetria cósmica. A morte injusta quebra uma
ordem moral que, em termos platônicos, precisa ser reequilibrada. Mas há uma
torção: em Platão, o retorno das almas é parte de um ciclo impessoal de
reencarnações. Em The Wraith, o retorno é pessoal e orientado por desejo, amor
e justiça.
Há aqui uma ressonância com a ideia
cristã do retorno escatológico, onde os mortos ressuscitam para o juízo final. Porém,
Jake não espera o Juízo — ele o executa. Isso o torna uma figura quase
apocalíptica, um anjo vingador ou “psicopompo”**** (condutor das almas), como
nas mitologias greco-romanas.
A alma e o corpo máquina:
pós-humanismo e dualismo ontológico. O corpo de Jake, ao retornar, é
reconfigurado. Seu “novo corpo” é o do piloto sem rosto, vestindo uma armadura
negra, com um carro igualmente invulnerável.
Isso gera uma questão filosófica essencial: a
alma é o que permanece após a morte, ou o corpo reconfigurado é parte de sua
nova identidade?
Paul Ricoeur, em Soi-même comme un
autre*****, argumenta que a identidade pessoal se dá numa tensão entre o idem
(o mesmo) e o ipse (a continuidade narrativa).
Jake não é mais “o mesmo” (idem),
mas permanece o “ele mesmo” (ipse) porque sua narrativa interior não foi
rompida — o amor por Keri, o desejo de justiça, a memória da violência. Essa
concepção se liga ao debate clássico entre o dualismo cartesiano e as visões
integrativas do ser.
Jake seria, nessa chave, um ser
pós-humano — onde o espírito habita um corpo intermediado por tecnologia (o
traje, o carro, a ausência de ferimentos). Isso
antecipa debates contemporâneos do transumanismo: o que permanece da identidade
quando o corpo é descartável?
Em Nietzsche, especialmente em Assim
Falou Zaratustra, a vontade de potência é o impulso fundamental da vida. Não é
mera “vontade de viver”, mas de afirmar-se, de se impor sobre o caos. A
vingança de Jake não é rancorosa: ele não tortura, não grita, não mata de forma
cruel. Ele impõe o seu retorno como afirmação de si. Cada corrida contra um
membro da gangue é quase ritualística — uma espécie de provação simbólica em
que o Wraith se revela superior. Nietzsche também adverte contra o
ressentimento: o impulso de vingar-se por fraqueza.
Mas Jake parece operar por uma lógica distinta
— seu retorno é mais próximo do que o filósofo chama de “eterno retorno do
mesmo”: ele reencena o trauma para encerrá-lo, sem se submeter a ele.
É por isso que, ao final, ele se
despe do papel de Wraith e entrega o carro (símbolo de seu poder) ao irmão do
morto, Billy.
Esse ato simboliza que a justiça foi
feita — e que ele pode ir embora. Nietzsche diria: ele venceu o niilismo. O
tempo, em The Wraith, não é linear. O morto retorna, os culpados revivem o
trauma por meio das corridas, o herói revive seu amor com Keri — mas tudo em
nova chave.
Paul Ricoeur analisa, em Tempo e
Narrativa, que o tempo da ficção difere do tempo cronológico: é um “tempo
refigurado”, onde a lógica da narrativa pode suplantar a cronologia do real. A
presença do Wraith suspende o tempo da cidade. Cada membro da gangue que morre
é repetidamente confrontado com seu próprio crime.
O que se repete não é o evento, mas
o sentido: o trauma é revisitado até que possa ser simbolicamente encerrado.
Trata-se de um tempo mítico, ritualístico — muito mais próximo da narrativa
religiosa ou arquetípica do que do tempo da causalidade comum. O sobrenatural
como zona ética: entre o castigo e a redenção. O sobrenatural em The Wraith não
é terror puro — é uma forma de ética.
Ele surge quando o sistema legal falha: o
xerife não consegue punir os criminosos, a comunidade se cala, e a vítima
precisa retornar para fazer justiça com as próprias mãos (ou pneus). Isso
conecta o filme a uma tradição simbólica em que o além age quando o aquém se
corrompe.
Essa lógica aparece no Antigo
Testamento, nos profetas que anunciam o castigo divino, e nos filmes
contemporâneos como O Corvo (1994) ou Ghost (1990), em que o retorno dos mortos
visa restaurar a ordem.
Mas em The Wraith, há uma
peculiaridade: o sobrenatural não é explicado por Deus, nem por pacto
demoníaco, nem por ciência. Ele é. A ausência de explicação metafísica
explícita amplia sua força simbólica: o retorno do justo é, por si, inevitável.
The Wraith é mais do que um filme B
de vingança: é um estudo simbólico sobre a persistência da identidade além da
morte, sobre a justiça que não se realiza nos tribunais, sobre o corpo que se
torna máquina, sobre o amor que sobrevive ao fim, sobre o tempo que se dobra
sobre si mesmo.
A figura do Wraith, ao unir o
sobrenatural com uma lógica moral, estética e filosófica, transforma-se num
operador narrativo que nos obriga a rever nossos conceitos de vida, de justiça
e de permanência do eu.
Ao invés de oferecer explicações, o filme
apresenta lacunas — e é nessas lacunas que o pensamento filosófico encontra seu
espaço. Nas palavras de Derrida: “A vida é assombrada. A história é assombrada.
O pensamento é assombrado. Não há pensamento sem espectro.” E talvez The Wraith
nos lembre disso da forma mais literal e simbólica possível.
Notas:
*O termo vem do ensaio “Das Unheimliche” (1919) de Sigmund Freud, onde ele investiga o sentimento peculiar que surge quando algo é ao mesmo tempo familiar e estranho — algo que deveria ter permanecido oculto mas retorna, provocando desconforto. Freud parte da palavra heimlich, que em alemão significa “doméstico, familiar, íntimo”, mas que também carrega um segundo sentido: “escondido, secreto”. O prefixo “un-” transforma-a em unheimlich — aquilo que, sendo familiar, se torna estranho por reaparecer de maneira deslocada. Assim, o inquietante é o retorno do que foi reprimido — uma familiaridade distorcida, uma memória que volta de forma incômoda.
**“Morte sobre Rodas, Amor do Além…” - Death on Wheels, Love from the Beyond” soa como uma fusão de dois motivos clássicos do gótico moderno: a estrada como símbolo do destino, do movimento entre vida e morte; o amor que ultrapassa a morte, o vínculo que resiste mesmo quando o corpo desaparece.
***
O termo “hauntologia” é fascinante e cheio de camadas — ele mistura filosofia,
crítica cultural e teoria da música. Aqui vai um resumo detalhado: Criado pelo
filósofo Jacques Derrida em seu livro Spectres de Marx (1993).
É um trope linguístico com “ontologia”: enquanto ontologia é o estudo do ser, hauntologia trata do “ser assombrado” ou do retorno de espectros.
**** A palavra vem do grego: psyche (alma) + pompos (guia, condutor).
*****
Soi-même comme un autre” é um livro filosófico do pensador francês Paul Ricœur,
publicado em 1990, cujo título se traduz literalmente como: “A si mesmo como
outro”.
