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6 de jul. de 2022

NO ESCURO DA FLORESTA

 

Por André Bozzetto Jr

 

          Bianca largou suas coisas e sentou escorada em uma árvore. Estava suada e ofegante depois de tantas horas de caminhada. Eu nem tinha largado minha mochila quando o cheiro nojento de sovaco e cerveja chegou às minhas narinas. Logo depois eles apareceram. Eram dois. Um gordo barbudo e um magrelo desdentado. Caipiras bêbados armados com espingardas.

          – Pelo jeito não fomos longe o suficiente. – disse Bianca, depois de olhar para os sujeitos com desapontamento.

          – Estamos atrás de vocês desde a estrada, boneca. – disse o gordo, coçando o saco e sorrindo de forma maliciosa.

          As intenções ali estavam muito claras. Aqueles porcos iriam estuprar a minha esposa, roubar nossas coisas, nos matar e enterrar no mato. Numa floresta daquele tamanho, nossos corpos nunca mais seriam encontrados. Pelo menos era nisso que eles acreditavam.

          – Que tal tirar essa roupa para nos divertirmos um pouco, hein, gatinha? – disse o magrelo, enquanto abria o zíper das próprias calças.

          – Boa ideia! – concordou Bianca, começando a se despir imediatamente.

          A escuridão fria da noite já começava a tomar conta da mata. Estávamos a vários quilômetros da civilização. Ninguém ouviria os gritos.

          Bianca já estava completamente nua. Os caipiras nojentos se entreolharam desconfiados, surpresos por ser tão fácil. Mas isso durou só um momento. Logo estavam sorrindo de novo, tomados de excitação.

          Dei um passo à frente e o gordo não pensou duas vezes em apertar o gatilho de sua espingarda. O tiro me atingiu no peito e doeu pra caralho quando cai no chão úmido da floresta. Mas logo passou. Quando reabri os olhos, vi a lua cheia raiando por entre as árvores. Então o lobo despertou em meu interior.

          Levantei enquanto minhas roupas se rasgavam e meu corpo começava a ser recoberto por uma espessa camada de pelos negros. Foi nesse momento que os gritos começaram. Bianca já estava completamente transformada. A metamorfose dela sempre era mais rápida do que a minha. Um dos caipiras estava suspenso no ar, agarrado no pescoço pelas garras da formidável criatura. O outro tentava fugir rastejando pelo chão. Mas ele não iria longe. Não depois de Bianca ter lhe arrancado a perna direita.

          Fomos até lá em busca de paz, mas a morte cruzou o nosso caminho novamente. Então, que seja a morte desses porcos imundos de quem ninguém sentirá falta. Esse foi o último pensamento articulado que passou pela minha mente naquela noite. Depois a minha transformação se completou e fui me juntar à Bianca no abate.  

23 de dez. de 2021

O MAIS BIZARRO CONTO DE NATAL

 

 

Por André Bozzetto Junior

 

Ele usava vários disfarces diferentes, dependendo da época e da circunstância. Já havia sido palhaço, mágico, Batman e até Zé Gotinha. O importante era se aproximar de crianças e adolescentes, conquistar sua confiança, distraí-los e, quando estivessem sozinhos e vulneráveis, sequestrá-los. Às vezes até algo mais simples funcionava. Por exemplo, durante a última Copa do Mundo – a de 1990 – naquela fatídica noite em que o Brasil foi eliminado nas oitavas de final pela Argentina, ele capturou um casal de gêmeos apenas usando uma camiseta da Seleção Brasileira, cara pintada de verde e amarelo e peruca colorida. Agora era a sua época favorita do ano, as vésperas do Natal, e a fantasia de Papai Noel lhe garantia mais efetividade do qualquer outra. Suas atividades hediondas ficavam tão mais fáceis nesses dias! Doces e promessas de presentes diversos eram sempre muito eficazes.

Após a captura, suas vítimas eram conduzidas a um prédio decadente e abandonado na área mais escura e degradada da Avenida Farrapos, que cada vez mais adquiria status de local maldito e mal-afamado, habitado apenas por um número crescente de prostitutas, drogados e sujeitos de péssima reputação. Ou seja, um lugar perfeito para a prática de todo o tipo de perversidade doentia a que costumava submeter os desafortunados que caíam em suas mãos. Quando enjoava, depois de ter feito de tudo com os capturados, ele os matava a golpes de faca e desovava os corpos em um lamaçal repleto de lixo no lado norte da Ilha Grande dos Marinheiros, onde ninguém fazia questão de ir por motivo algum.

Naquela noite ele tinha nada menos do que quatro prisioneiros, um verdadeiro recorde, com o qual pretendia passar horas e horas de sádica e mórbida diversão. Todos aparentavam ter por volta de treze ou quatorze anos. Três foram capturados de uma só vez, no final da tarde anterior, em uma parte deserta do Parque da Redenção. Dois garotos e uma menina, que, pelas roupas que usavam, pareciam ser de classe média. Ele não sabia o que o grupinho pretendia fazer lá isolado no meio das árvores distantes. Talvez fossem fazer alguma sacanagem ou apenas fumar um baseado, mas o que importava é que, naquele momento, estavam ajoelhados no chão sujo daquele porão sombrio, tremendo e chorando baixinho, temendo por suas vidas.

O quarto capturado havia sido sequestrado apenas algumas horas antes, em um beco imundo e fétido entre dois prédios antigos, também nos arredores da Redenção. Era um menino de rua, maltrapilho e encardido, que se configurava no principal tipo de vítima do falso Papai Noel, pois além desses indivíduos serem facilmente atraídos com qualquer promessa vazia, também significavam a certeza da impunidade, uma vez que ninguém ligava para o sumiço deles e muito menos se daria ao trabalho de investigar seus desaparecimentos.

Ele entrou em um aposento anexo, separado do resto do porão por uma pesada porta de metal, e retornou de lá trazendo o menino de rua – quase que de arrasto – e o jogou no chão, ao lado dos outros três que fungavam e enxugavam as lágrimas que escorriam por seus rostos apavorados.

– Ho, ho, ho! – exclamou ele, emulando com voz debochada a risada tipicamente atribuída ao Papai Noel, ao mesmo tempo em que começou a balançar no ar de forma provocativa uma enorme faca de lâmina reluzente – Agora este bom velhinho vai analisar quais dessas crianças foram boazinhas e quais foram malvadas. Algumas vão ganhar um pirulito e outras vão chupar um prego! Mas todas vão ter o que chupar! Ho, ho, ho!

As três primeiras crianças passaram a chorar de forma cada vez menos contida. Apenas o garoto de rua permanecia sério e calado, olhando fixamente para uma pequena janela de vidros empoeirados através da qual invadia o recinto uma estreita faixa de luminosidade esbranquiçada emanada pela lua cheia, que lá fora reinava soberana sobre o céu poluído da cidade.

– Como é o seu nome, magricela? – indagou ele, apontando a faca na direção do primeiro menino.

– Frederico... – respondeu ele, em tom de voz quase inaudível.

– Frederico, que rima com penico! Ho, ho, ho!

Apenas as risadas dele ecoavam pelo porão.

– E o seu, loirinha? – questionou, aproximando a faca do rosto da menina.

– Al... Alice... – respondeu ela com voz trêmula.

– Alice, que rima com chatice! Ho, ho, ho! Acho que já sei o que você vai ganhar para chupar, hein!

O choro então passou a se tornar mais audível do que as risadas.

– E você, gordinho, como se chama? – perguntou ele, erguendo a cabeça do garoto com um puxão nos cabelos.

– Miguel!

– Miguel, que rima com pastel! Ho, ho, ho! Você tem uma pança de quem deve comer muito pastel mesmo! Mas deixa eu te contar uma coisa: hoje de noite só quem vai comer algo vou ser eu! Ho, ho, ho!

Ele sorriu com sádica satisfação ao ver as três primeiras crianças chorando de forma cada vez mais copiosa. Contudo, ficou intrigado ao ver que o menino de rua não parecia nada assustado. Na verdade, ele parecia estar rindo também.

Tentando demonstrar a mesma confiança de sempre, ele se posta diante do garoto esfarrapado.

– Meu Deus, como você é feio! Parece que passou um trator em cima da sua cara! Diz aí, como é o seu nome, feioso?!

O menino então o encarou nos olhos e ele sentiu, de imediato, o sangue lhe gelar nas veias. Olhos inumanos o fitavam com ódio e excitação, ao mesmo tempo em algum tipo de bizarra metamorfose se processava naquele ser ajoelhado diante dele. Olhos demoníacos!

– O meu nome é... JARBAS! – urrou de forma gutural aquilo que antes fora um garoto, enquanto se levantava, prestes a ter o seu corpo totalmente transformado em um ser licantrópico, enorme e aterrador.

Mesmo tomado pelo pavor, o dublê de Papai Noel tentou esboçar um golpe, mas, com uma velocidade sobre-humana, o monstro atingiu com uma violenta patada a mão que segurava a faca e a fez voar ao outro lado do recinto, deixando um risco de sangue no ar ao longo de sua trajetória. Ele caiu então de joelhos, gritando e tentando estancar com a mão esquerda o sangue que jorrava do antebraço direito.

Isso durou apenas alguns segundos. Logo ele sentiu os dedos, vigorosos como aço, do lobisomem se fechando em torno de seu pescoço e o suspendendo no ar. Uma dor indescritível lhe invadiu quando as garras da criatura começaram a rasgar seu ventre – de forma lenta, mas vigorosa – e arrancar para fora seus intestinos.

Os gritos do sujeito, que mais pareciam os guinchos de um porco sendo abatido de forma rude, finalmente pareceram despertas as três crianças do traumático torpor em que se encontravam mediante a horrenda cena que presenciavam e então, além de gritar, também se puseram a correr. Removeram a tranca que bloqueava a porta de acesso à escada e se precipitaram para fora do porão infernal.

Quando já estavam chegando ao andar térreo daquele prédio sombrio e arruinado, Miguel, “o gordinho”, tropeçou no último degrau e rolou de volta pela escada, indo parar novamente no interior de seu cativeiro.

Procurando ignorar a dor que parecia abranger cada centímetro do seu corpo, Miguel se esforçou para levantar o mais rápido possível. Nesse meio tempo, de forma quase automática, seus olhos se voltaram para o interior do porão e o que viu foi uma cena que passou a habitar seus mais pavorosos pesadelos pelo resto de sua vida. O monstro estava agachado, roendo tranquilamente algo que parecia ser uma perna humana. O Papai Noel de araque estava deitado em uma viscosa e bizarra poça formada não apenas pelo seu sangue, mas também pelos fluídos viscosos dos órgãos arrancados que jaziam expostos para fora de seu abdômen dilacerado. Além da mão direita, faltavam-lhe também as duas pernas, mas ele ainda estava vivo. Com a mão esquerda, tentou fazer um aceno, como se pedindo ajuda. Mas, é claro, ninguém iria ajudá-lo. Nunca mais.

Miguel correu de volta pela escada, pulando os degraus de dois em dois, e quando chegou ao topo, ofegante e dolorido,  encontrou seus amigos, que olhavam para baixo, como se tentando decidir o que fazer. Novamente juntos, os três removeram sem grandes dificuldades algumas tábuas estrategicamente posicionadas para barrar a entrada principal e, no instante seguinte, já estavam na rua, chorando, gritando e correndo em busca de socorro na direção dos faróis de um carro qualquer.   



15 de out. de 2021

A PRATA DA CASA

 

Por Adriano Siqueira

             

            No bairro do Capão do imbuia em Curitiba-PR, Franciele e Loberval, um casal muito apaixonado conversavam no café da manhã.

            ─ Querido. Já coloquei o seu almoço na sua pasta. Gostou dos meus bolinhos de chuva?

            ─ Eu sempre vou amar seus bolinhos querida. Devo voltar tarde hoje. Tenho reunião.

            ─ Eu entendo querido. Mas fico triste quando você está fora. Eu vou limpar a casa toda. Tem muita poeira. Ai...

            Loberval vê que Franciele coloca a mão na cabeça e se senta.

            ─ Tem tomado os remédios?

            ─ Sim. Mas cada dia as dores aumentam e os pesadelos...

            ─ Não se preocupe. Trarei mais remédios hoje. O hospital está lotado. Muita gente doente.

            ─ Você é o médico que mais amo nesse mundo.

            Eles se beijam e Loberval vai para o hospital trabalhar. Enquanto isso. Franciele arruma a casa. Abre o sótão, acende a luz e desce as escadas vagarosamente. Passa pelo espelho, que é do tamanho do seu corpo, olha para os lados. Ela vê que tem muito trabalho para fazer, mas sente uma leve pontada na cabeça. Uma dor aguda.

            Franciele passa pelo espelho e percebe algo estranho. O seu reflexo. Não era ela. Era outra mulher. Ela tenta se afastar mas o reflexo segura a sua mão. Franciele fica apavorada. Ela tenta gritar mas o reflexo coloca a mão na sua boca e começa a falar.

            ─ Ele matou nós duas e vai fazer isso de novo se desconfiar.

            Franciele é libertada e ela olha para a mulher. Começa a reconhecer o seu rosto.

            ─ Georgia. seu nome é Georgia.

            ─ Sim. Finalmente. Então você está lembrando quem somos Franciele?

            ─ Os pesadelos. Horríveis. Morte, corpos, Sangue.

            ─ Loberval nos matou. Éramos enfermeiras desse hospital. Ele queria você, mas você me amava e ele me matou.

            ─ Não! Somos casados faz muito tempo. Ele não faria isso é um médico bom ele junta as partes dos corpos. Ele religa os membros. Ele...

            ─ É um assassino. Me matou e vc me viu toda desmembrada aqui no sótão e quando vc ia avisar a policia ele te matou também.

            ─ Eu estou louca. Estou enlouquecendo. Vou ligar para ele.

            ─ Não! Hoje ele não voltará cedo. É noite de Lua Cheia. Ele adora retalhar corpos.

            ─ Georgia! Eu não sei o que fazer.

            ─ Ele retalhou nossos corpos. Levou para o hospital. Remendou nos duas. Ele fez uma nova mulher com a gente. Veja as cicatrizes no seu corpo todo. Nós somos o seu brinquedo.

            ─ O que vamos fazer?

            ─ Prata. Muita prata. Reunir tudo aqui deixar bem espetado e jogar ele aqui dentro.

            ─ Mas ele é forte Georgia. Estou com medo.

            ─ Nos também somos fortes. Quando passar os efeitos dos remédios que ele te dá, vai ver o quanto temos poder.

            ─ Não dá para acreditar que um homem possa ser tão cruel.

            ─ Tenta levantar aquela lavadora de roupas de ferro.

            Franciele vai até a maquina e ri. Sabe que é pesada demais. Mesmo assim ela tenta por brincadeira. E consegue ela levanta muito alto.

            ─ Joga no Chão de madeira. Vamos fazer um grande buraco.

            Franciele joga a maquina com força e abre um grande buraco no chão. Ela olha para as suas mãos e fica impressionada.

            ─ Sou mesmo forte.

            ─ Somos. Agora vamos vc precisa arrumar toda a prata e jogar aqui. Cobrir o buraco e matar o lobo mau.

            ─ Você vai comigo Georgia?

            ─ Ele ligou nossos cérebros. Estou dentro de você. Está com meus seios, minhas mãos, meu nariz e minha vida. Somos um e vamos mandar ele para o inferno.

            Elas pegam tudo que é de valor na casa e recolhem em vários lugares, todo o tipo de prata. Conseguem um bom material para fazer a armadilha.

            Até as dez horas da noite de lua cheia elas conseguiram montar a armadilha. Franciele conseguiu fazer lâminas cortantes em todas a pratas que pegou. A força que tinha, a prata em suas mãos eram como massa de modelar. Depois colocaram o tapete e cobriram o buraco.

            ─ Pronto Georgia. Agora é só esperar o Doutor Frankenstein chegar.

            ─ Seis meses ele conseguiu nos enganar. Mas esse assassino vai ter o que merece.

            ─ Ele disse que minhas cicatrizes eram de um acidente de infância.

            ─ Vamos ficar juntas para sempre.

            Franciele coloca a mão no seu coração.

            ─ Eu te amo Georgia.

            ─ Eu também Franciele.



Arte Original: Maria Ferreira Dutra
Edição de Imagem: André Bozzetto Jr