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31 de out. de 2025

HALLOWEEN

 

           "Halloween e Michael Myers: a máscara do medo na cultura contemporânea"

 Por Clayton Alexandre Zocarato

                 

            Desde o final da década de 1970, o Halloween deixou de ser apenas uma festividade de raízes celtas, marcada por rituais de colheita e crenças sobre o retorno dos mortos, para tornar-se um fenômeno globalmente mediado pela cultura cinematográfica.          Nenhum personagem sintetiza melhor essa transfiguração cultural do medo do que Michael Myers, o assassino mascarado da franquia Halloween (1978–presente), concebida por John Carpenter.

            A figura de Myers não é apenas um artefato de entretenimento, mas um espelho perturbador das angústias modernas — uma síntese do mal como força anônima, silenciosa e inevitável.

            Sob essa ótica, o personagem transcende o cinema de horror e passa a ocupar o imaginário coletivo como metáfora do vazio existencial e da violência latente nas estruturas sociais e psicológicas do Ocidente contemporâneo.

            O contexto histórico do surgimento de Halloween é crucial para compreender sua força simbólica.

            O final dos anos 1970 nos Estados Unidos foi um período de crise de valores: a Guerra do Vietnã havia deixado marcas profundas, o escândalo Watergate corroera a confiança nas instituições, e o sonho americano parecia ruir diante do desencanto pós-moderno.

             Em meio a essa atmosfera de incerteza, o terror cinematográfico floresce como válvula de escape e reflexão.

            Michel Foucault, ao discutir a relação entre poder e medo, observou que o controle social opera não apenas por coerção, mas pela internalização do pavor — e é exatamente isso que Carpenter captura.

            Myers não precisa justificar seus atos; sua ausência de motivação o torna o símbolo perfeito da banalidade do mal descrita por Hannah Arendt. Ele mata porque o mal, em sua forma mais pura, não necessita de causa: ele simplesmente é.

            A máscara branca de Michael Myers constitui, talvez, o elemento mais emblemático dessa representação.

             Sem expressão, ela reflete o vazio do sujeito moderno, fragmentado e despersonalizado.

            Se Nietzsche anunciava a “morte de Deus” e o consequente colapso das referências morais, Myers representa o que resta após esse colapso: o niilismo encarnado. Ele é o homem sem vontade, sem desejo, sem dor — uma presença silenciosa que paira sobre a vida cotidiana e a destrói com frieza maquinal.

            O horror de Halloween não reside na violência explícita, mas na constatação de que o mal é impessoal, inescapável e, sobretudo, familiar.

            A trilha sonora composta pelo próprio John Carpenter intensifica esse aspecto filosófico e emocional. Minimalista, construída sobre notas repetitivas e insistentes em compasso 5/4, ela ecoa o ritmo mecânico da perseguição e a inevitabilidade da morte.     Adorno e Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento, argumentaram que a cultura de massa tende a reproduzir a lógica da repetição industrial; a música de Halloween não foge a isso, mas inverte seu sentido.

            Ela transforma a repetição em instrumento de angústia, revelando a alienação estética do mundo moderno.

            Cada tecla do sintetizador parece ressoar como um batimento cardíaco universal, lembrando-nos de que o medo é, antes de tudo, um estado de consciência aprisionada.

            No plano cultural, o Halloween cinematográfico tornou-se também um ritual moderno de catarse coletiva.

             Assim como os antigos ritos pagãos buscavam exorcizar os temores do desconhecido, os filmes de terror funcionam hoje como laboratórios simbólicos da morte e da moralidade. Sigmund Freud, em O Estranho (Das Unheimliche), descreve o terror como o retorno do reprimido — aquilo que o sujeito tenta ocultar, mas que inevitavelmente ressurge.

             Michael Myers é exatamente essa figura do retorno: ele volta, incessantemente, a cada sequência, a cada remake, a cada nova geração de espectadores.

             Sua imortalidade não é física, mas cultural; ele é o inconsciente coletivo do medo, reencenando o trauma de uma sociedade que não sabe lidar com sua própria violência.

            No aspecto social, o sucesso duradouro de Halloween e de personagens similares reflete a transformação do medo em mercadoria.

            O capitalismo tardio, conforme analisado por Fredric Jameson, estetiza a experiência e transforma até mesmo o pavor em produto.

             O que antes era o domínio do sagrado e do místico — a noite em que os mortos retornam — converte-se em espetáculo comercial, impulsionado por campanhas publicitárias e merchandising.

            A máscara de Myers, vendida em massa durante o Halloween real, encarna a ironia pós-moderna: usamos o rosto do assassino para brincar, dançar e rir, neutralizando o horror através do consumo.

            No entanto, essa banalização não elimina o poder simbólico da obra. Ao contrário, ela revela a capacidade do cinema de horror de operar como crítica cultural disfarçada.

            O personagem de Michael Myers denuncia, em sua mudez, a falência da comunicação humana em uma era saturada de ruídos.

            Sua impassibilidade lembra a alienação descrita por Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo: o homem moderno, perdido entre imagens e simulacros, já não distingue o real do ficcional. Myers é o simulacro perfeito — uma sombra que atravessa a tela e se insinua na vida cotidiana, confundindo a fronteira entre o medo representado e o medo vivido.

            Do ponto de vista histórico, Halloween marca uma ruptura estética com o horror clássico das décadas anteriores. Se o cinema de monstros dos anos 1930 e 1940 — Frankenstein, Drácula, O Lobisomem — buscava o extraordinário e o grotesco, Carpenter desloca o terror para o espaço doméstico.

            As ruas suburbanas, as casas iluminadas e os quintais de Illinois tornam-se palcos da violência.

            É o terror cotidiano, o mal que habita o lar, o vizinho, a normalidade. Tal mudança reflete, segundo o filósofo Jean Baudrillard, a hiper-realidade do fim do século XX: o horror não está mais fora, mas dentro da vida ordinária, dissolvido no tecido da civilização. Michael Myers é o produto dessa dissolução — o assassino que poderia ser qualquer um.

            Musicalmente, o tema de Halloween tornou-se um dos ícones sonoros mais reconhecíveis da história do cinema, funcionando como signo cultural independente do próprio filme.

            Sua estrutura minimalista influenciou não apenas trilhas posteriores de terror, mas também a música eletrônica e o rock industrial, estabelecendo uma ponte entre o cinema e a cultura pop.

            A simplicidade da melodia sugere um retorno ao essencial: o medo como pulsação rítmica, como repetição que captura o corpo antes mesmo da mente.

            Pierre Schaeffer, teórico da música concreta, afirmava que o som, despido de sua origem, adquire poder de evocação pura; Carpenter faz exatamente isso, reduzindo o horror a sons primários, quase matemáticos, que nos devolvem à experiência arcaica do pavor.

            Filosoficamente, a figura de Michael Myers permite múltiplas leituras. Pode ser vista como o “homem sem qualidades” de Robert Musil, o sujeito moderno desprovido de identidade e sentido.

            Ou como o “homem unidimensional” de Herbert Marcuse, aprisionado pela racionalidade instrumental e pela repressão dos desejos.

            Em Myers, o silêncio é absoluto: ele não fala, não explica, não hesita. Ele age. Sua violência é a do sistema que produz e consome corpos sem significação.

            Por isso, talvez, ele permaneça tão perturbador — porque encarna o medo essencial de uma sociedade que já não encontra transcendência nem propósito.

            Historicamente, o sucesso de Halloween também impulsionou o subgênero “slasher”, que se tornaria dominante nas décadas seguintes com Friday the 13th, A Nightmare on Elm Street e outros.

            Porém, enquanto muitos imitadores reduziram o horror a fórmulas comerciais, o original de Carpenter conserva uma dimensão quase metafísica.

             O silêncio das ruas, a ausência de trilha em certos momentos, o olhar subjetivo da câmera — tudo contribui para um sentimento de vigilância e destino. Michel de Certeau, ao discutir o espaço urbano, dizia que o olhar transforma o cotidiano em território simbólico.

            Em Halloween, o subúrbio americano é o novo labirinto de Minotauro, e Michael Myers, o monstro que nos obriga a confrontar o que está escondido sob o verniz da normalidade.

            No campo cultural, o personagem também se tornou matéria de reinvenções e debates sobre o mal.

             As releituras contemporâneas, especialmente as dirigidas por David Gordon Green entre 2018 e 2022, atualizam o mito para discutir trauma, memória e masculinidade tóxica.

            Laurie Strode, sobrevivente original, ressurge como símbolo de resistência e reconstrução identitária.

            Tal reconfiguração dialoga com o pensamento de Judith Butler sobre a performatividade do gênero e o corpo como espaço político: Laurie transforma o corpo traumatizado em campo de luta e afirmação.

            Assim, a máscara de Myers — símbolo do opressor — é contraposta ao rosto marcado, mas humano, da sobrevivente.

            Em última instância, o fenômeno Halloween evidencia a permanência do mito em tempos de desencanto.

            Se, como sugeriu Joseph Campbell, os mitos são narrativas arquetípicas que estruturam o inconsciente coletivo, Michael Myers é o mito moderno do retorno eterno da morte.

            Sua presença constante nas telas, reeditada, reinventada, reciclada, confirma o diagnóstico de Nietzsche sobre o eterno retorno: o horror se repete porque o ser humano precisa revivê-lo para reconhecê-lo.

            O cinema de Carpenter, portanto, não é apenas entretenimento — é ritual, é filosofia, é espelho.

            Ao longo de quase cinco décadas, Halloween consolidou-se como uma das expressões mais profundas da relação entre medo e cultura.

            Sua estética simples, sua música hipnótica e seu personagem enigmático transcenderam o gênero, convertendo-se em alegoria da própria condição humana.   Michael Myers, mascarado e silencioso, continua caminhando — não apenas pelas ruas de Haddonfield, mas pela memória coletiva do Ocidente.

             Ele é o símbolo de uma sociedade que teme olhar para dentro de si, porque sabe que o verdadeiro monstro habita no interior.

             Halloween nos recorda que o medo não é o oposto da razão, mas seu reflexo mais fiel — e que, talvez, só compreendendo o horror possamos compreender o que resta de humano em nós.

            Michael Myers não é apenas um personagem de ficção; ele é um dispositivo simbólico que expõe a fragilidade das categorias modernas do bem e do mal.

            Slavoj Žižek, ao refletir sobre o cinema de horror, argumenta que o monstro é o retorno material do que a ideologia tenta reprimir.

            Em Myers, essa tese se torna quase literal: ele representa aquilo que a cultura americana — sustentada em mitos de pureza, moralidade e família suburbana — se recusa a ver.

            A cada aparição, Myers rompe a fachada do “american way of life”, mostrando o vazio que pulsa sob a superfície do conforto e da normalidade. Ele é a figura lacaniana do “Real”: aquilo que não pode ser simbolizado, o trauma que resiste à linguagem e retorna incessantemente para assombrar o sujeito.

            Jacques Lacan, ao discutir o conceito de das Ding (a Coisa), descreve o núcleo inominável do desejo humano, aquilo que nos atrai e repele simultaneamente. Myers é essa “Coisa” que retorna — o desejo e o medo amalgamados em um só corpo.

             Ele não deseja o prazer, mas a repetição; não busca a morte alheia por vingança, mas por compulsão. A repetição, em Lacan, é o que tenta simbolizar o trauma, e é exatamente essa lógica que estrutura a franquia Halloween: cada novo filme é uma reencenação do mesmo ato primordial, uma tentativa sempre fracassada de dar sentido ao sem-sentido. O horror, portanto, é a pedagogia do vazio.

            Ao mesmo tempo, o sucesso duradouro da figura de Michael Myers revela a necessidade social do mito em um mundo desencantado.

            Edgar Morin, em O Espírito do Tempo, afirmou que o cinema é a mitologia moderna: ele cria deuses e demônios adaptados à sensibilidade tecnológica da era industrial. Myers é um desses novos deuses — um deus negativo, sem palavra, sem rosto, sem promessa.

             Ele é o símbolo da transcendência impossível, da espiritualidade ausente, da morte como única permanência. Em sua mudez, ecoa o silêncio de um mundo que perdeu a fé, mas ainda teme o abismo.

            Byung-Chul Han, ao analisar a sociedade contemporânea em A Sociedade do Cansaço e A Agonia do Eros, descreve o desaparecimento da alteridade e a crise da experiência.

            Vivemos cercados por imagens e estímulos, mas incapazes de encontro real. Myers, nesse contexto, é o retorno brutal do Outro.

             Ele invade o espaço seguro da casa, do corpo, do cotidiano, lembrando-nos de que a alteridade radical — o desconhecido, o diferente — ainda existe, mesmo que tentemos bani-la através da tecnologia, do consumo e do espetáculo.

             Ele é o que resta de real em uma civilização saturada de simulações.

            Albert Camus via na figura de Sísifo a metáfora da condição humana: a busca incessante por sentido em um mundo indiferente.

             Em Halloween, o ciclo eterno de mortes e retornos de Myers repete essa lógica absurda. Ele é Sísifo ao contrário — em vez de empurrar a pedra da existência, ele a faz rolar sobre os outros, impondo o peso da finitude como destino comum.

            A ausência de motivação transforma sua violência em gesto filosófico: o absurdo tornado carne.

            O espectador, diante disso, não teme apenas o assassino, mas o reconhecimento de que a vida, em última instância, é o território do incompreensível.

            Jean-Paul Sartre, ao definir o homem como “condenado à liberdade”, afirmava que a angústia nasce da responsabilidade absoluta sobre nossas escolhas.

            Michael Myers é a negação dessa liberdade: ele é o homem sem escolha, pura facticidade. Contudo, sua ausência de vontade provoca no espectador uma forma de angústia ainda maior — o medo de ser dominado pela própria ausência de sentido.       Assim, Myers encarna o extremo oposto do existencialismo: a completa desumanização, o ser reduzido a ato, a ausência de consciência. Sua existência é pura facticidade mecânica — o “em-si” sartreano levado ao extremo da monstruosidade.

            Do ponto de vista sociológico, o ciclo de consumo e revival da franquia Halloween também pode ser interpretado à luz de Zygmunt Bauman.

            Em Medo Líquido, Bauman descreve a modernidade como uma era em que o medo se torna difuso, global, sem objeto definido. Myers simboliza esse medo líquido: não há lugar onde ele não possa estar, não há razão que o delimite.

            Ele é o medo desterritorializado, a encarnação da insegurança existencial. Por isso, sua figura se adapta a cada tempo — o mesmo rosto vazio que, nos anos 1970, denunciava o mal reprimido da família tradicional, hoje reflete as ansiedades digitais, o anonimato, a solidão e a violência estrutural da era das redes.

            É interessante observar como, nas últimas décadas, o Halloween se transformou em um espaço de convivência paradoxal entre a morte e a celebração.

            As festas, fantasias e decorações macabras convertem o medo em estética, e o horror em prazer visual. Walter Benjamin já advertia, em A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica, que a reprodutibilidade transforma o sagrado em mercadoria.

            A imagem de Michael Myers, multiplicada em máscaras, memes e produtos, perde sua aura — mas, paradoxalmente, ganha onipresença.

             Essa difusão do medo como consumo revela a contradição central da pós-modernidade: o terror é desejado, o mal é estilizado, e o vazio é vendido como experiência estética.

            Nessa perspectiva, o Halloween cinematográfico é também um espelho político. O subúrbio branco e ordenado de Haddonfield, onde a narrativa se desenrola, simboliza a América idealizada — limpa, controlada, previsível.

            A irrupção do assassino rompe essa ilusão, revelando a violência latente que sustenta a ordem. Frantz Fanon, em Os Condenados da Terra, descreve como o poder colonial projeta o mal no Outro para manter a pureza do centro.

            Myers, nesse sentido, é a projeção reversa: o mal que emerge do próprio centro, da própria branquitude, da própria normalidade. Ele destrói não por vir de fora, mas por nascer de dentro.

            Há também uma dimensão teológica invertida em Michael Myers. Se o cristianismo tradicional personifica o mal em figuras demoníacas externas ao homem, Carpenter o reconfigura como ausência total de transcendência. Myers não é o Diabo — ele é o vazio deixado pela morte de Deus.

             A máscara, nesse contexto, torna-se o símbolo da teologia negativa: não há rosto porque não há essência.

             Emmanuel Lévinas, ao refletir sobre a ética do rosto, afirmava que o rosto do outro nos convoca à responsabilidade. Myers, sem rosto, é a negação da ética — o Outro que não interpela, apenas destrói. Diante dele, o sujeito não encontra alteridade, mas abismo.

            A filosofia contemporânea do medo, especialmente em pensadores como Paul Virilio e Hans Jonas, também encontra eco na estética de Halloween. Virilio via o medo como consequência da aceleração tecnológica — a consciência de que o progresso gera novos riscos.

            Myers é uma figura lenta, quase imóvel, e justamente por isso assustadora: ele representa a resistência do terror à velocidade, o retorno do arcaico no seio da modernidade.

             Hans Jonas, em O Princípio Responsabilidade, defendia que o medo poderia ter função ética, como consciência do perigo coletivo.

             No entanto, no universo de Carpenter, o medo é paralisante, não moralizador — ele revela a impotência da humanidade diante de suas próprias criações simbólicas.

            Se ampliarmos a leitura para a dimensão antropológica, podemos compreender o Halloween como ritual de inversão.

            Como apontou Mircea Eliade, toda sociedade necessita de momentos de suspensão das normas — tempos do caos que reafirmam a ordem.

            O cinema de terror ocupa esse papel nas sociedades seculares: ele cria espaços simbólicos de transgressão controlada.

             Assistir a Halloween é, portanto, participar de um rito moderno em que a morte é domesticada, o pavor é estetizado e o caos é ritualizado para garantir a continuidade da vida social. Michael Myers é o sacerdote desse novo culto — o mediador entre o medo e o prazer.

            Ao longo das décadas, o personagem evoluiu sem mudar — paradoxo que reforça sua força arquetípica.

             Cada reinterpretação, de Rob Zombie a David Gordon Green, tenta decifrar o enigma de sua origem, mas fracassa, porque sua essência é precisamente a ausência de essência. O horror do inexplicável é o motor que mantém vivo o mito.

            Como observou Umberto Eco, os mitos modernos sobrevivem não pela coerência narrativa, mas pela multiplicidade de leituras que permitem.

            Myers pode ser lido como trauma, como crítica social, como metáfora existencial ou como puro artifício estético — e é exatamente nessa ambiguidade que reside seu poder.

            Em última análise, Halloween e seu protagonista constituem um espelho multifacetado da condição humana.

            A máscara de Myers devolve ao espectador o reflexo de si mesmo — não o herói, mas o vazio, a ausência de sentido, o medo de ser nada.

            Camus escreveu que “não há destino que não possa ser superado pelo desprezo”. Contudo, diante de Myers, o desprezo não basta; o horror resiste porque é estrutural, porque é humano.

             O cinema de Carpenter, com sua economia de meios e profundidade simbólica, antecipa a crise contemporânea da subjetividade: o sujeito reduzido a imagem, a emoção transformada em mercadoria, o medo convertido em espetáculo.

            Talvez por isso, ao fim de cada nova versão, Michael Myers nunca morre completamente.

            Ele é o retorno do reprimido cultural, o lembrete incômodo de que o progresso técnico não elimina a sombra.

            Como diria Jung, “aquilo a que resistimos, persiste”.

            E assim, o assassino mascarado continua a caminhar pelas telas, atravessando gerações, culturas e paradigmas, reafirmando que o medo é o idioma universal da existência.

             Se o século XXI é a era do vazio e da exaustão, então Michael Myers é seu ícone — não apenas o vilão do Halloween, mas o retrato simbólico da humanidade que se olha no espelho e já não reconhece o próprio rosto.


20 de out. de 2025

IT: A COISA

 



"A Carne do Medo: Uma Análise Macabra e Metafísica de IT (1990) e Suas Reencarnações Cinematográficas"

Por Clayton Alexandre Zocarato

ATENÇÃO: Este texto contém Spoilers.

            

            No subterrâneo escuro da psique humana, onde a luz da razão hesita em penetrar, habita aquilo que não ousamos nomear.

            E ainda assim, Stephen King o nomeia: IT.

            Não como monstro, mas como conceito, entidade, princípio.

            Uma coisa ancestral que veste os trajes de nossos medos mais primordiais. Na minissérie de 1990, dirigida por Tommy Lee Wallace, somos levados pelas mãos geladas da infância até as cavernas interiores onde o terror mora.

            Já nas refilmagens recentes de Andy Muschietti, It: Chapter One (2017) e Chapter Two (2019), a besta retorna com dentes mais afiados, mas também com maquiagem digital que suaviza, às vezes, a agonia metafísica que a encarnação original sugeria.

            Não é apenas uma história sobre um palhaço que devora crianças.

            É um estudo espectral do medo — não como reação, mas como substância.

            Como matéria psíquica.

            Como herança evolutiva.

          Em Pennywise, interpretado com sardônica majestade por Tim Curry na obra de 1990, a encarnação do horror se faz teatro, pantomima, eucaristia profana. Curry não atua: ele encarna.

            Sua performance pulsa numa cadência quase barroca, onde cada sorriso é uma ferida aberta, cada piada, um sussurro de morte.

            Em contrapartida, Bill Skarsgård nos traz um Pennywise que é o outro: alienígena, parasítico, desprovido do sarcasmo humano que dava ao palhaço original sua monstruosidade grotescamente familiar.

            Skarsgård é um avatar do medo cósmico à la Lovecraft, onde o terror não é tanto o que ele faz, mas o que ele é: uma ausência de compreensão encarnada.

            Mas o que é It, senão um espelho invertido da consciência humana?

            Um inconsciente coletivo que se alimenta do que esquecemos deliberadamente? A cidade de Derry, palco de ambos os filmes, é menos cenário e mais organismo simbiótico.

            Uma cidade que consente com a monstruosidade.

            Uma cidade que esquece. Que nega. Um símbolo junguiano do recalque.

            A criatura desperta a cada 27 anos — número cabalístico, ciclo de Saturno — como uma espécie de retorno do reprimido. Freud sorriria, amargamente, diante dessa repetição mórbida.

            A análise crítica, então, deve se deslocar para além do roteiro, além da fotografia, e alcançar o âmago filosófico do que está sendo proposto.

            O horror aqui é ontológico.

            O medo não vem de fora. Pennywise não é externo — ele é um sintoma. Lacan, em suas espirais labirínticas, diria que o real é insuportável.  O real sem costuras, sem simbolização.

            It é precisamente isso: o retorno do real em forma de trauma coletivo.

            A criatura se alimenta do medo porque ele é a fonte primária de nossa humanidade — não a coragem, não o amor.

             O medo é anterior. É amniótico.

            Não há separações nítidas entre realidade e fantasia nesses filmes.

            A mente das crianças é palco. A infância, aqui, é território maldito. Um lugar onde as barreiras cognitivas são porosas e o inconsciente invade o cotidiano.

            A neurociência contemporânea, ao investigar os mecanismos do medo, fala do papel da amígdala, do hipocampo, das respostas neurovegetativas. Mas nada disso explica o sorriso de Pennywise.

            O terror é mais do que resposta neural: é abismo.

            É o contato com o que não deveria ser tocado.

            As refilmagens tecnicamente brilham, mas carregam consigo um fardo: o de tornar o horror explicável.

            Há flashbacks, explicações, até uma origem quase mitológica para It como entidade cósmica.

            Mas talvez seja justamente na ausência de explicações que o verdadeiro horror reside.

            Em 1990, a produção, limitada pela tecnologia, criava horrores mais sutis — mas por isso mesmo, mais permanentes.

            O medo que não se mostra é o medo que cresce. O medo que se insinua é o que não se esquece.

            Outras obras dialogam com esse mesmo terror ancestral. A Nightmare on Elm Street traz Freddy Krueger como uma figura do inconsciente destrutivo. The Babadook de Jennifer Kent transforma o luto em monstro, evidenciando a ligação íntima entre afeto e assombro.

            Hereditary, de Ari Aster, radicaliza o conceito, trazendo o horror como herança — não genética, mas ontológica.

            It, porém, se distingue porque o horror não é apenas uma consequência, mas uma estrutura. Um fundamento.

            Críticos literários como Harold Bloom, apesar de sua relutância em aceitar King no cânone, reconheceram o poder arquetípico de suas narrativas.

            Camille Paglia, com sua sensibilidade para o dionisíaco e o profano, talvez visse em It um rito de passagem. Um mergulho no horror como revelação.

            O medo, nesse sentido, não é degeneração, mas iluminação. Atravessá-lo é necessário.

            E então chegamos ao fim — ou melhor, ao eterno retorno. Pois It não morre.       Não porque é invencível, mas porque é interno.

            Porque somos nós. O horror psicológico proposto por King e dramatizado nos filmes é uma ontologia do medo: não um monstro a ser vencido, mas um espectro a ser reconhecido. Pennywise dança, sim.

            Mas sua dança é a mesma que Nietzsche viu no abismo. Aquela que nos olha de volta.

            Assim, no silêncio entre os risos do palhaço e os gritos das vítimas, ouvimos algo mais profundo: o eco de nossas próprias infâncias.

            O medo de não sermos amados. O medo de sermos esquecidos. O medo de sermos... reais.       

            E se o medo for, na verdade, um método de preservação do real?

            Uma âncora contra a dissolução?

            Diante de Pennywise, o palhaço dançarino, não é apenas a infância que vacila — é a própria estrutura da identidade.

            Cada criança em It é mais que um personagem: é um arquétipo psicanalítico, um fragmento do que somos ou fomos. Um relicário de traumas.

            Bill Denbrough, com seu luto silenciado pela culpa, representa o trauma fundador: a perda. Seu irmão Georgie é a primeira vítima visível de Pennywise, mas também símbolo do que foi arrancado antes mesmo da linguagem dar conta da dor.

            Na ausência de luto processado, o trauma se cristaliza, e Pennywise se alimenta dessa estagnação. Segundo Freud, o luto é um trabalho. Bill jamais o realiza. Sua gagueira — uma falha no fluxo da fala — é um sintoma direto da impossibilidade de narrar o horror. O trauma o petrifica no tempo. E assim, o monstro volta.

             Porque o que não é dito, retorna. Sempre.

            Beverly Marsh, por sua vez, é o corpo sexualizado antes do tempo, a infância violada pelo olhar incestuoso. Em sua casa, o terror não vem de fora — ele vive ali, no banheiro, nos olhos do pai, nos gritos que não ecoam.

             Pennywise não precisa se esforçar para assustá-la: ele apenas encarna a opressão que já habita o cotidiano.

            A mancha de sangue que jorra do lavatório, vista apenas por Beverly, é o signo da feminilidade negada, da puberdade transformada em pesadelo. O sangue que em outras narrativas representa vida, aqui é puro espanto. Julia Kristeva, em sua teoria do abjeto, escreveria que o sangue menstrual — ou todo sangue fora do corpo — é aquilo que o simbólico recusa. Beverly é abjeta. E portanto, perfeita oferenda ao monstro.

            Eddie Kaspbrak, com seu inalador e hipocondria, personifica a neurose criada pela superproteção.

            Sua mãe é a figura fálica do controle — um superego vivo —, e sua fragilidade física é psíquica: o corpo como palco da mentira internalizada. Pennywise se apresenta a Eddie como doença.

            Como contaminação.

            Como o colapso do corpo — talvez o medo mais arcaico de todos. A neurociência hoje entende que o medo da doença está entre os mais universais. Ele ativa os circuitos de sobrevivência com mais força do que o medo da violência. Porque a doença nos ataca por dentro, assim como faz It.

            Richie Tozier é a máscara do riso. O palhaço que teme o palhaço. A logorreia nervosa de Richie é o mecanismo de defesa contra o vazio. Jung diria: a sombra de Richie é o silêncio.

            E é nesse silêncio que Pennywise espreita. Nas refilmagens, sua homossexualidade reprimida é sutilmente explorada como mais um estrato do medo: o medo de si mesmo. Não há terror mais dilacerante do que olhar no espelho e ver um estranho.

            Mike Hanlon, o guardião da memória, vive o peso da história. Em suas mãos repousa o terror transgeracional. Em Derry, ele é o único negro — o Outro absoluto.          Seu medo é ancestral. É o fogo cruzado da violência racial, da exclusão.

            Pennywise, para Mike, é a voz de um tempo que nunca passa. O monstro o visita não apenas como palhaço, mas como símbolo da supremacia que queima, que lincha, que apaga. E o mais sinistro: Derry consente.

            Ben Hanscom, o garoto gordo, é o poeta da marginalização. Seu medo é o desprezo, a invisibilidade.

            Pennywise, para Ben, é a risada coletiva. O bullying encarnado. O desprezo das massas. Ele é a carne sobre a qual a sociedade projeta seu nojo. A psicologia do medo nos ensina que o riso pode ser instrumento de exclusão. Pennywise ri porque sabe que o riso é arma.

            Esses personagens são, portanto,  feridas abertas. Pennywise não é causa — é consequência.

             Ele aparece onde já havia dor.

            Onde a estrutura da mente já vacilava.

            Onde o medo já havia sido plantado pela cultura, pela família, pela história.

            Na filosofia da mente, o problema do qualia — a experiência subjetiva — é central.

            O que é sentir medo? Podemos mapear os neurônios, observar os neurotransmissores, descrever o circuito neural?

            Mas a experiência do pavor, do arrepio que paralisa, da sensação de ser observado no escuro, permanece além do físico.

             Pennywise, nesse sentido, é um qualia narrativo: um esforço de King para simbolizar o terror puro.

             Não apenas o medo de morrer — mas o medo de saber que se está vivo e que há algo que não se pode compreender.

            É aí que a refilmagem falha, em parte.

            Ao tentar racionalizar It, ao dar-lhe uma origem interdimensional, ao transformar o horror em ficção científica, perde-se o abismo.

            O It de 1990 — com suas limitações visuais e suas atuações teatrais — é mais verdadeiro justamente porque é mais onírico. O terror é mal definido. É sugestão.

            Como nos clássicos do expressionismo alemão (Nosferatu, O Gabinete do Dr. Caligari), o medo nasce do ambiente, da distorção, do excesso de sombra. Pennywise aparece, às vezes, apenas como um balão vermelho. E esse balão é o que nos mata.

            No horror japonês (Ringu, Ju-On), há uma mesma ética do não dito. O medo não é grito, mas sussurro. Em King, e em It, há uma tentativa de conciliar o horror metafísico do desconhecido com a cultura pop americana — o que resulta num híbrido fascinante.

            A estética de It não é apenas assustadora — é perturbadora.

             Porque o monstro tem rosto de festa infantil. Porque o mal vem com confete.

            Mas talvez a questão mais metafísica seja: por que o medo da infância é o mais duradouro?

            Por que tememos o armário, o porão, o palhaço, mesmo depois de adultos?          A neurociência sugere que memórias formadas na infância têm uma carga emocional mais profunda, pois são registradas em um cérebro ainda em formação.

            A plasticidade neural é maior, mas também mais vulnerável. O medo infantil não se apaga: ele se transforma em sintoma. Em escolha de vida. Em fobia adulta.       Pennywise é um trauma que ganhou carne.

            E o mais cruel: quando adultos, os personagens quase esquecem. A mente os protege. E, com isso, também os fragiliza.

            O trauma não lembrado é o mais perigoso. Ele não cicatriza. Ele se esconde. E espera.

            Stephen King nunca escreveu sobre monstros.

            Escreveu sobre pessoas. Os monstros apenas revelam aquilo que os personagens já não podiam esconder.

            A obra inteira de King é um atlas do medo americano: o medo da exclusão (Carrie), do isolamento (The Shining), da perda (Pet Sematary), da loucura (Misery).      Em It, ele reuniu todos os medos numa só entidade.

            Um Deus do horror. Um demiurgo do abismo.

            É por isso que, ao fim, os adultos precisam voltar. Porque aquilo que não enfrentamos nos chama.

            Porque o medo, uma vez plantado, torna-se raiz. E nada mais cresce direito sobre ele. Derry não é apenas uma cidade. É uma metáfora.

            Um lugar dentro de cada um. E Pennywise é o guardião desse espaço.

            Rimos de nervoso. Fingimos não ver. Mas o balão flutua. Vermelho como o sangue. Vermelho como o primeiro grito. Vermelho como aquilo que não se esquece.

            A essência do mal em It não é o monstro em si, mas o ritual silencioso da repetição, da eterna volta ao mesmo ponto de ruptura. Georges Bataille, em seus escritos sobre o sagrado e o profano, apontaria que o horror é uma forma de experiência extática, um “excesso” que quebra os limites da ordem racional e social.

            Pennywise é esse excesso: a irrupção do caos na superfície ordenada da pequena             Derry, onde o sagrado é profanado e o profano se apresenta disfarçado de festa infantil.

             A liturgia do medo, portanto, é um rito que se repete a cada 27 anos, um retorno sacrificial que mantém o equilíbrio entre o conhecido e o insondável.

            Antonin Artaud, com seu Teatro da Crueldade, desafiaria a percepção do espectador para além do simples entretenimento — It é teatro cru, espetáculo do horror que penetra a carne da mente. Tim Curry, no papel original, é Artaud em forma de palhaço: não apenas um personagem, mas uma experiência visceral, um choque.

             A refilmagem, embora tecnicamente refinada, carece desse grito primitivo — é um sussurro digital diante do rugido teatral.

            Em Cioran, o pessimismo radical encontra eco nas sombras de King.

            O mal não é apenas externo; é o abandono de si mesmo, a queda no abismo interior.

             A essência do horror em It é esse desespero silencioso, o reconhecimento de que, por trás das máscaras da infância e da memória, existe um vazio que não se pode preencher — um vazio que é o próprio It.

            Michel Foucault nos recordaria que o poder, o controle social, estão implicados no terror que permeia Derry. O silêncio dos adultos, a conivência da cidade, são formas de poder disciplinar que mantêm It vivo.

            O monstro se alimenta da negação coletiva, da recusa em confrontar o passado e a sombra. É o terror do que a sociedade esconde, e que retorna sempre mais feroz.

            Assim, It é mais que horror — é uma liturgia metafísica, uma dança gótica do medo que nos obriga a olhar para dentro.

            Não para vencer o monstro, mas para reconhecê-lo como parte do que somos.

            O terror psicológico da obra não é apenas o medo do palhaço, mas o medo do abandono, da perda, da rejeição, da morte de nossos próprios eus fragmentados.

            E quando o balão vermelho flutua no ar pesado da noite, quando o riso gélido ecoa no corredor escuro, não é apenas Pennywise que se aproxima.

            É o encontro com nossa própria essência abissal — o sussurro eterno que não pode ser silenciado, pois habita o silêncio.

            Assim, o horror de It é o horror da mente que se revela — o espelho quebrado onde as múltiplas faces do medo refletem o que sempre esteve oculto: que somos feitos não apenas de luz, mas de sombras que dançam, palhaços que riem, e monstros que habitam o silêncio.

            No cerne do abismo em que It mergulha, o medo do escuro e do desconhecido se impõe não apenas como um instinto primitivo, mas como uma força capaz de dissolver os limites entre a vida e a morte, o ser e o nada.

            Aqui, a teoria sociológica de Émile Durkheim sobre o suicídio oferece uma lente inquietante para entender a pulsão autodestrutiva que emerge do medo profundo — não apenas o medo de Pennywise, mas o medo existencial que permeia cada personagem, cada recanto sombrio de Derry.

            Durkheim categorizou o suicídio em quatro tipos — egoísta, altruísta, anômico e fatalista — cada um refletindo uma relação distinta entre o indivíduo e a sociedade.

            Em It, percebemos ecos dessa teoria na trajetória dos membros do Clube dos Otários. O medo que Pennywise insufla, aliado à negligência social e familiar, cria um terreno fértil para o suicídio egoísta: uma alienação do indivíduo perante a coletividade que deveria protegê-lo.

            A infância marcada pela exclusão, pela violência e pelo silêncio, torna-se um cárcere onde o desespero se enraíza.

            Este desespero é musicalmente evocativo em “Fear of the Dark”, do Iron Maiden — cuja atmosfera gótica e sombria parece sintonizar-se com a ansiedade pulsante do desconhecido.

            A música narra a experiência atemporal do temor do escuro, símbolo universal daquilo que não pode ser visto, nomeado ou controlado. “Porque o medo do escuro é algo que eu realmente entendo,” canta Bruce Dickinson, refletindo a inevitável luta contra as sombras internas.

            Assim como as crianças de Derry, todos nós carregamos um “medo do escuro” que é ao mesmo tempo literal e metafórico: o medo da morte, do abandono, do vazio existencial.

            Esse medo do escuro pode ser associado diretamente aos pecados capitais, estruturas morais ancestrais que catalogam as fraquezas humanas diante do desconhecido e do desejo.

            A ira, por exemplo, reverbera nas explosões violentas de Pennywise, bem como na hostilidade da cidade que prefere o silêncio à justiça.

             A inveja se manifesta nas rivalidades infantis, mas sobretudo na comparação dolorosa entre o “normal” e o marginalizado.

            A preguiça, enquanto apatia social, é refletida no consentimento coletivo da população de Derry, que mantém o monstro vivo pelo esquecimento.

            A gula se traduz na voracidade do monstro, na fome incessante pelo medo e pela vida. A luxúria, por sua vez, encontra sombra nas agressões e abusos que Beverly enfrenta, e na sexualidade infantil que é simultaneamente descoberta e reprimida.

            A vaidade e o orgulho, quase ausentes nas crianças, reaparecem na necessidade adulta de negar o passado, de fingir que nada aconteceu.

            Dentro dessa teia, o suicídio surge como um resultado trágico das falhas humanas em lidar com seus próprios demônios.

            Durkheim enfatiza que o suicídio anômico acontece quando a ordem social é perturbada — quando as normas falham, e o indivíduo se vê perdido. It encarna isso em sua máxima expressão: Derry é uma sociedade anômica, em constante negação de sua própria sombra. Pennywise é o espelho do fracasso coletivo, o reflexo de uma ordem social corrompida.

            Sob o prisma da psicanálise, o medo do escuro é o medo do inconsciente — o território onde jazem desejos reprimidos, traumas ocultos e pulsões mortais.

            Freud via o inconsciente como um território selvagem, e Pennywise é sua manifestação externalizada, uma força que não pode ser domesticada pelo ego.

             A música “Fear of the Dark” ecoa essa ideia, pois o escuro é aquilo que o ego tenta evitar, mas que o sujeito deve confrontar para alcançar a integração psíquica.

            No campo da neurociência, estudos indicam que a resposta ao escuro ativa regiões cerebrais ligadas à ansiedade e à vigilância, como a amígdala e o córtex pré-frontal.

            O medo, nesse contexto, é um mecanismo adaptativo, mas quando exacerbado, torna-se patológico. It é a dramatização desse limite tênue, onde o medo se torna criatura e devora a própria mente.

            Portanto, a analogia entre a obra de Stephen King, a teoria de Durkheim, a música do Iron Maiden e os pecados capitais traça um mapa sombrio e intricado do terror psicológico.

             Não se trata apenas de enfrentar o monstro externo, mas de reconhecer que o verdadeiro horror reside na falha humana de integrar suas sombras, seus medos e suas pulsões.

            O balão vermelho flutua, então, como um símbolo não apenas do perigo iminente, mas da necessidade urgente de iluminar o escuro dentro de nós, para que a criança perdida em Derry — e dentro de cada um — não sucumba ao silêncio eterno.

            No âmago da narrativa de It, os laços que unem as crianças do Clube dos Otários são tanto um refúgio quanto um espelho dos conflitos sociais que produzem o medo.     Bill Denbrough, carregando a culpa e o luto não processado, vive sob o peso da anomia — conceito durkheimiano que define o estado de desorientação que surge quando as normas sociais falham.

            Seu sofrimento, silencioso e sufocante, é a personificação do suicídio egoísta e anômico.

            A ausência de apoio social claro e a perda precoce criam um vácuo existencial que Pennywise explora com voracidade metafísica.

            Essa situação reverbera na canção “Fear of the Dark”, cuja letra não apenas narra o medo literal da escuridão, mas sobretudo a angústia existencial da invisibilidade e do isolamento.

            O trecho “I have a constant fear that something's always near” remete diretamente ao estado psicológico dos personagens: um temor perpétuo do que não se pode ver, mas que se sente sempre próximo, penetrando a alma.

            Assim como a escuridão da música, a cidade de Derry é um espaço saturado de ausência de luz — tanto física quanto moral —, onde o mal se esconde e se alimenta dessa penumbra.

            A presença do medo dentro do escuro, carregado de simbolismo, pode ser compreendida como um portal para os pecados capitais, que aqui funcionam como estruturas psíquicas e sociais que alimentam o horror.

            A ira está presente na violência implícita e explícita dos abusos e na fúria das crianças que lutam contra Pennywise.

            A inveja e a vaidade revelam-se nas dinâmicas grupais e na alienação social, enquanto a preguiça traduz o silêncio cúmplice dos adultos, que preferem negar a existência do monstro a confrontá-lo.

             A luxúria e a gula aparecem de maneira distorcida e sombria, em abusos e na fome insaciável do ser monstruoso. Assim, os pecados capitais não são apenas transgressões morais, mas forças estruturantes do medo, manifestando-se no psicológico coletivo e individual.

            A relação entre a teoria do suicídio de Durkheim e a narrativa de It se torna ainda mais evidente quando observamos o comportamento de Mike Hanlon, o guardião da memória.

            Ele representa o elo com a história não resolvida, a consciência social que confronta o esquecimento coletivo.

            O silêncio da cidade e a repetição do ciclo de horror são a encarnação da anomia: a ausência de ordem moral deixa os indivíduos vulneráveis ao desespero e, por consequência, ao suicídio — não necessariamente literal, mas simbólico, como a morte da esperança e da infância.

            Psicanaliticamente, Pennywise funciona como a personificação do “Outro” — aquilo que o sujeito teme e rejeita em si mesmo.

            A repetição do ciclo de horror é o sintoma da neurose coletiva que não se cura.    A repressão do trauma e do medo infantil cria fissuras na psique, gerando um estado de vulnerabilidade constante.

            O retorno do trauma em forma do palhaço indica o fracasso do trabalho de luto e da integração do inconsciente.

            No plano neurocientífico, a resposta amplificada ao medo do escuro ativa circuitos de alerta e defesa que, quando ativados continuamente, desencadeiam ansiedade crônica, fobias e comportamentos autodestrutivos.

            Assim, o suicídio, enquanto ato extremo, pode ser visto como a última tentativa de controlar ou extinguir esse terror interno inescapável.

            Portanto, a obra de Stephen King, ao combinar o horror externo (Pennywise) com o horror interno (medos, traumas, pecados), cria uma narrativa profundamente simbólica que dialoga com múltiplos níveis do sofrimento humano.

            O “balão vermelho”, como sinal visual, é o aviso permanente, a lembrança de que o escuro nunca está vazio, e que os monstros que nele habitam são, em última instância, parte da nossa própria alma fraturada.

            No cerne da experiência humana, o existencialismo revela o indivíduo lançado num universo sem sentido, onde o absurdo é o terreno de fundo da existência. Jean-Paul Sartre e Albert Camus desvelam o paradoxo do ser: a busca por sentido em um cosmos indiferente, onde a morte é a única certeza e a liberdade absoluta traz consigo o peso do nada.

            It encarna esse drama ontológico. As crianças de Derry são seres expostos à angústia primordial: a sensação de abandono, o enfrentamento do nada — simbolizado pelo abismo de Pennywise.

            O palhaço-monstro é o absurdo em forma de criatura, um enigma que não se explica e não se compreende.

             Sua presença não depende de lógica, mas de uma força irracional que devora a esperança e a segurança.

            Bill, com sua gagueira, não é apenas um menino ferido pela perda; é o sujeito existencial que tenta encontrar sentido no caos.

            Sua trajetória é um esforço para afirmar sua liberdade e reconstruir o mundo fragmentado pela morte do irmão.

            Na filosofia sartreana, isso é a “náusea”: o enfrentamento da contingência que abala a essência.

            Beverly, presa a um ambiente abusivo, vive o horror da facticidade: a condição dada, cruel e inescapável.

             Sua luta representa a afirmação da liberdade diante do determinismo social e familiar, um gesto de revolta contra o destino imposto.

            Eddie, com seu medo da doença e da fragilidade, é o sujeito que busca no corpo um refúgio, mas descobre que o corpo é também um cárcere.

            Sua neurose é a manifestação do conflito entre o desejo de segurança e a inevitabilidade da vulnerabilidade humana.

            A angústia do medo do escuro, a vulnerabilidade exposta pela música “Fear of the Dark”, é a expressão musical do absurdo que permeia o texto.

            A sombra não é apenas ausência de luz, mas a metáfora do vazio existencial que oprime o sujeito.

            O retorno constante do monstro a cada 27 anos é o eterno retorno nietzschiano, um ciclo de sofrimento que desafia a liberdade de ruptura.

            Derry, assim, é o espaço onde o indivíduo é confrontado com a repetição do trauma, o qual só pode ser enfrentado pela coragem de reconhecer e transcender o medo.

            Sob a lente da psicanálise, esse enfrentamento é o trabalho do ego que deve integrar as sombras do inconsciente, representar a consciência e construir a narrativa do self. Pennywise é o id primitivo, a pulsão da morte, o retorno do recalcado.

             A resistência ao monstro é o esforço pela síntese psíquica, pela saúde mental.

            No campo do horror clássico, It dialoga com obras como O Exorcista e O Iluminado, onde o mal toma formas que são reflexos do inconsciente coletivo e individual.

            Ao contrário do terror gore ou do slasher, King propõe um horror metafísico, onde a verdadeira ameaça é o vazio dentro do sujeito, o medo do esquecimento, da morte e da solidão.

            Assim, It não é apenas uma obra de monstros, mas uma meditação profunda sobre o medo como condição existencial.

            A repetição do horror, o balão vermelho, o escuro opressivo — todos são símbolos da luta do ser contra o nada, contra a dissolução do sentido.

            A obra It dialoga com um panteão sombrio de clássicos do terror que exploram o abismo do medo psicológico e a dissolução da identidade diante do inexplicável.

             Em O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, adaptado da obra homônima de Stephen King, a ameaça reside no isolamento e na loucura crescente, como uma espiral de desintegração psíquica e social.

            O Hotel Overlook é um microcosmo de opressão e memória do mal, refletindo a luta interna do protagonista com seus próprios demônios — similar ao modo como Derry se torna um espaço simbólico do trauma coletivo em It. Ambos os filmes enfatizam a angústia existencial, a luta contra forças internas que se manifestam no espaço externo.

            Já O Exorcista (1973), de William Friedkin, aborda o horror pela possessão demoníaca, traduzindo o conflito entre o sagrado e o profano, o corpo e o espírito, em uma batalha metafísica.

             Diferentemente do terror corporal e explícito, a possessão aqui é metáfora para o medo do desconhecido dentro do próprio corpo e alma — uma luta que ressoa com a personificação de Pennywise como um mal primordial que transcende a forma e a razão.

            It amplia essas abordagens ao inserir um monstro que é o produto de um trauma coletivo e individual, um espectro que se alimenta dos medos reprimidos de uma comunidade inteira.

            Aqui, a psicanálise freudiana e lacaniana emerge nitidamente: Pennywise é o “Outro” simbólico que reflete as fissuras do inconsciente e o medo do sujeito do que está além da linguagem e do controle racional.

            Filosoficamente, It se apoia em conceitos de Heidegger sobre o “ser-para-a-morte” (Sein-zum-Tode), onde o medo não é mera reação a estímulos externos, mas uma condição ontológica que revela a finitude do ser.

            O monstro não é simplesmente uma ameaça física, mas o lembrete constante da morte que espera, da aniquilação do ser. Essa perspectiva transcende o terror imediato e se insinua como um horror existencial que dilacera a alma.

            Outro paralelo encontra-se em O Babadook (2014), que explora o luto, a depressão e a repressão de traumas psicológicos através de uma criatura que personifica esses estados emocionais.

            A similaridade com It reside na transformação do medo interno em forma tangível, em espectro, e na necessidade de confrontar essas sombras para alcançar algum grau de cura ou libertação.

            Assim, ao contrário de narrativas que privilegiam o choque ou o grotesco, It privilegia o terror psicológico e metafísico, articulando o medo como uma experiência

            O medo do escuro, presente em It e evocado na música “Fear of the Dark” do Iron Maiden, é um arquétipo do terror psicológico.

             Sob o olhar filosófico, o escuro não é mero fenômeno físico, mas símbolo do desconhecido, do nada, do abismo que confronta o sujeito com sua finitude e ignorância. Heidegger concebe o ser humano como um “ser-no-mundo” cuja existência é definida pelo “ser-para-a-morte” — a consciência da finitude.

            O escuro é a metáfora dessa finitude: um espaço onde a ausência de luz revela a ausência de respostas, a suspensão do sentido.

            Na psicanálise, o escuro é o espaço do inconsciente — vasto, inexplorado, carregado de desejos reprimidos, traumas e medos que o ego evita para preservar a sanidade.

             Freud já apontava que o medo infantil do escuro representa a resistência do ego em lidar com o que está fora de seu controle, fora da consciência.

             Lacan, por sua vez, consideraria o escuro como o “Real” — aquilo que escapa à simbolização, que não pode ser integrado na linguagem, e que provoca a angústia pura.    Pennywise, enquanto manifestação do medo, é a personificação desse Real aterrador: um ser que escapa a qualquer lógica ou narrativa que o ego possa construir.

            A ausência de estímulos visuais ativos o sistema de alerta do cérebro, aumentando a vigilância e a produção de adrenalina — mecanismos que, em situações normais, nos protegem, mas que, quando exacerbados, desencadeiam transtornos ansiosos.

            Essa resposta neurobiológica se materializa no medo visceral dos personagens, cuja exposição prolongada ao escuro e ao desconhecido os empurra para estados de pânico, dissociação e até comportamento autodestrutivo.

            It aprofunda esse estado ao colocar os personagens num ambiente onde o escuro é onipresente — Derry é uma cidade onde o mal se esconde não só fisicamente, mas nas memórias esquecidas e no silêncio social.

            O ciclo de terror se alimenta do medo coletivo, uma neurose social que mantém o monstro vivo.

             A música “Fear of the Dark” serve como trilha sonora simbólica dessa luta interna e externa contra o desconhecido: o medo que não se pode nomear, que não se pode dominar, mas que exige ser enfrentado.

            A analogia com os pecados capitais, especialmente a preguiça e a ira, reforça a dimensão moral e social do medo.

            A preguiça, entendida como apatia e omissão, é a força que permite a persistência do mal — o silêncio cúmplice dos adultos que negam os horrores de Derry.       A ira, como resposta à injustiça e ao sofrimento, pode ser tanto destrutiva quanto emancipadora, ilustrando a luta dos personagens contra o monstro e contra as próprias sombras.

            Este entrelaçamento entre filosofia, neurociência e psicanálise oferece um panorama complexo do horror em It: não um simples susto, mas uma experiência que toca o núcleo do ser, a relação do homem com o desconhecido, com a morte e com seus próprios demônios internos.