3 de jan. de 2021

CANIBAL FILMES: OS BASTIDORES DA GORECHANCHADA

 

Por André Bozzetto Jr

Se é verdade que o ano de 2020 será para sempre lembrando por uma infinidade de motivos – infelizmente, muito mais ruins do que bons – é igualmente verdadeiro que, em se tratando da cena cultural underground brasileira, ficará marcado pelo lançamento de uma obra que já nasceu clássica. Trata-se do livro Canibal Filmes: Os Bastidores da Gorechanchada, de autoria da grande mente por trás da mais icônica produtora brasileira de filmes independentes de baixo orçamento, o diretor, produtor, roteirista, ator, escritor (e mais algumas funções que devo estar esquecendo de citar) Petter Baiestorf.

Editado de forma primorosa, em uma luxuosa edição em capa dura, acompanhado de lobby cards e marcadores de página personalizados, o livro aborda por mais de 500 páginas em textos e fotos os 30 anos de história do grupo de amigos que, no início dos anos 90, decidiu fazer filmes de forma amadora, sem nenhum dinheiro no bolso e, mesmo assim, revolucionou não apenas o pacato cotidiano da pequena cidade de Palmitos, no oeste de Santa Catarina, como também divertiu e influenciou todo uma geração de artistas independentes Brasil afora.

É muito legal de se ver o status de reconhecimento e relevância que a Canibal Filmes construiu sendo atestado por fiéis colaboradores como E. B. Toniolli, Carli Bortolanza e Elio Copini – presentes desde os primórdios da produtora – e também por figuras já tarimbadas na cena nacional, que participaram diretamente das produções ou se dedicaram a analisá-las e escrever sobre elas, como Cesar “Coffin” Souza, Gurcius Gewdner, Carlos Primati e Christian Caselli – que, inclusive, assina o prefácio da obra.    

Dezenas de pessoas que tiveram parte nas três décadas de caminhada da Canibal Filmes ganham voz nas páginas do livro, em excertos de depoimentos concedidos ao autor, ou através de recortes de entrevistas de fanzines, livros, documentários e revistas, compilados de diferentes épocas, mas que, reunidos de forma sistematizada, fornecem um interessantíssimo panorama dessa incrível trajetória de dificuldades, perrengues e fracassos, mas também de reconhecimento, aprendizado e, principalmente, muita diversão.

A obra destina espaço para tratar das produções originadas no seio da Canibal Filmes e também – em diferentes graus de detalhamento – daquelas capitaneadas por outros realizadores que de alguma forma contaram com a participação de Petter Baiestorf e membros do seu séquito de canibais. Há referências desde aos filmes de Rodrigo Aragão até citações de projetos totalmente despretensiosos, verdadeiras brincadeiras filmadas, como Lua Perversa, idealizado por este que aqui escreve.     

Não vou perder tempo citando os filmes nesta resenha. Basta dizer que não apenas os clássicos, como O Monstro Legume do Espaço (1995), Zombio (1999) e Vadias do Sexo Sangrento (2008), mas também cada um dos demais é esmiuçado no livro, com grande riqueza de detalhes sobre a concepção dos roteiros, produção, filmagens e resultados, com deliciosas anedotas de bastidores e curiosidades em geral. Para saber mais sobre eles, há centenas de críticas e artigos na internet, além de muitos dos próprios filmes disponíveis para serem assistidos gratuitamente. Também não vou me ater em pormenorizar o estilo característico que já se tornou marca registrada das produções da Canibal, com muito sangue e tripas permeando histórias debochadas, provocativas e, por vezes, chocantes, repletas de experimentalismos, sexo e um vasto cabedal de insanidades diversas. Prefiro mencionar um dos elementos que mais me agradou durante a leitura: constatar que essa não é apenas uma obra sobre filmes, mas também sobre fanzines, bandas de metal, punk e goregrind, eventos de cultura underground, poesia marginal e manifestos anárquicos. Ou seja, é um livro sobre um grupo de caras que, por absoluta falta de opções para expressar suas veias artísticas, criaram por si próprios os canais necessários para isso, e tudo em uma época anterior às facilidades da internet, em um município conservador de apenas 10 mil habitante e – nunca é demais lembrar – sem dinheiro algum.

Chega a ser emocionante a leitura dos relatos de muitos participantes afirmando que sempre se sentiram como párias e excluídos sociais e que, graças aos amalucados projetos do Baiestorf, encontraram não apenas um espaço de interação cultural mas também de integração social. Nas entrelinhas, o que nós temos é uma empolgante história sobre amizade e companheirismo.

Quando se chega ao final da leitura, a primeira lição evidente é a de que não há limites para a manifestação da Arte quando se acredita nela. O segundo grande legado deixado por este livro – e só por isso já vale cada centavo investido na aquisição – é a arrebatadora vontade de produzir que ele desperta em quem lê, sejam filmes, textos ou qualquer outra coisa que sirva como forma de expressão e, acima de tudo, diversão. Simplesmente indispensável.  

 

Autor: Petter Baiestorf
Editora: Sangue TV
Preço edição física: R$ 91,00 (com correio incluído para qualquer cidade brasileira)
Preço Versão e-book: 29,90
544 páginas
Capa dura
Ano: 2020
Primeira Edição.

Contato para adquirir o livro: baiestorf@yahoo.com.br

MEDO DE PALHAÇO

 

Por Renato Rosatti

  O site de Horror “Boca do Inferno” foi criado em 2001 por Marcelo Milici e é uma importante fonte de informações gerais e resenhas, principalmente de cinema. Um monstro eletrônico que, assim como a criatura alienígena “A Bolha” (The Blob) do filme “B” clássico de 1958, está sempre se alimentando, devorando cada vez mais conteúdos sobre o gênero fantástico, especialmente o Horror, crescendo de forma exponencial. Para se ter uma ideia, seu catálogo de resenhas possui a expressiva quantidade de aproximadamente 2650 filmes analisados, com os números cada vez aumentando mais, num colossal banco de análises sem paralelo na internet brasileira.

  Parte de sua equipe de redatores juntou esforços e como resultado foi lançado no final de 2016 o primeiro livro representante do “Boca do Inferno”. “Medo de Palhaço” publicado pela “Editora Évora” (São Paulo/SP), é uma enciclopédia definitiva sobre palhaços assustadores na cultura pop, falando sobre a coulrofobia (o nome técnico para o medo de palhaço) e abrangendo todas as mídias passando por cinema (principalmente) e televisão, além da literatura e dos quadrinhos (com textos especiais sobre os vilões “Coringa” e “Violador”).  

O livro é resultado de um trabalho extenso e de grande qualidade sobre o assunto abordado. Os destaques certamente ficam por conta das resenhas de cinema, a maior especialidade do site, com dezenas de análises muito bem escritas e informativas. Com seções especiais para os filmes mais lembrados dentro do tema, “Palhaços Assassinos do Espaço Sideral” (1988) e “It: Uma Obra-Prima do Medo” (1990). A produção geral do livro também é ótima, com uma bela capa chamativa, formato grande e acabamento caprichado.

Porém, uma falha é a falta de créditos da maior parte dos textos e de todas as resenhas, as quais deveriam ser identificadas por seus respectivos autores, utilizando-se uma legenda com as iniciais dos nomes, uma vez que o livro foi escrito por cinco pessoas.

O capítulo sobre o assassino em série John Wayne Gacy, um americano que gostava de atuar como palhaço e foi condenado pela morte de muitos jovens, possui logicamente um interesse e importância dentro do tema, mas o texto é extenso demais com excesso de informações cansativas sobre sua vida e os processos que enfrentou na justiça, até ser condenado e executado no corredor da morte por injeção letal. O capítulo poderia ser menor e mais dinâmico, eliminando muitos detalhes sem relevância.

Tem um pequeno erro de informação na resenha sobre “Slasher House” (2012), dizendo que o músico Blaze Bayley, que fez a voz de um demônio, foi o primeiro vocalista da banda inglesa de heavy metal “Iron Maiden”, porém tiveram outros vocalistas antes dele como Paul Di´Anno e até mesmo Bruce Dickinson, que saiu em 1993 dando seu lugar para Bayley, e que depois retornou em 1999 permanecendo até os dias atuais.

Outra pequena oportunidade de melhoria seria a menção do país de produção dos filmes analisados, logo na pequena ficha que inicia as resenhas. Além do fato de que algumas delas caíram na armadilha de citar datas futuras para eventuais lançamentos ou informações similares, e que já se tornaram passado no lançamento do livro. Sabemos que impedir que um texto torne-se datado é uma tarefa difícil, e talvez não registrar datas seja a solução.

Entretanto, independente dessas pequenas observações, o livro é uma referência de valor inestimável para qualquer tipo de pesquisa, estudo e catalogação sobre a origem, história e participação dos palhaços na cultura pop, em especial o cinema. Agregando imenso valor ao tema e ajudando a evidenciar a alta qualidade do conteúdo do portal de Horror “Boca do Inferno”, responsável pelo projeto, em parceria com a “Editora Évora”.

Que sejam bem-vindos mais títulos similares abordando outras fobias igualmente interessantes.

 

Medo de Palhaço” (2016)
Organizado por Marcelo Milici, com textos diversos e resenhas de Filipe Falcão, Gabriel Paixão, Matheus Ferraz, Rodrigo Ramos e Marcelo Milici (equipe do site de Horror “Boca do Inferno” – www.bocadoinferno.com.br) 
Editora Évora (São Paulo/SP)
Formato: 210 x 280 mm
270 páginas
 

Publicações anteriores:

www.infernoticias.blogspot.com.br, postado em 28/07/17 (https://infernoticias.blogspot.com/2017/07/resenha-do-livro-medo-de-palhaco-site.html).

www.almanaqueafb.blogspot.com.br, postado em 28/07/17 (https://almanaqueafb.blogspot.com/2017/07/medo-de-palhaco-2016.html).

Juvenatrix # 188, postado em Agosto 2017.

 

ZOMBIO

Por André Bozzetto Junior

         Um casal de ecologistas (Coffin Souza e Denise V.) decide passar um final de semana em uma ilha supostamente deserta localizada no Rio Uruguai, mais especificamente na divisa entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Após alguns breves instantes de descontração e lazer, os namorados se deparam com uma macabra infestação de zumbis – tão apodrecidos quanto esfomeados – e que parecem brotar de todos os recantos da ilha após terem sido despertos de seu sono sepulcral por uma demoníaca sacerdotisa (Rose de Andrade). Quase ao mesmo tempo, um sádico psicopata vestido de mulher (Coffin Souza, em seu segundo papel no filme) também aparece na ilha trazendo consigo uma “loirinha” (Cláudia de Sordi) para servir de vitima às suas devassas torturas. Não tardará para que eles também se deparem com a horda de mortos-vivos ansiosos por carne fresca.

            Essa é a síntese do enredo de “Zombio”, média-metragem dirigido pelo catarinense Petter Baiestorf em 1999 e que, ao lado de “O Monstro Legume do Espaço” (também de Baiestorf) se constitui em um dos maiores clássicos cult do cinema de horror independente brasileiro. Talvez o maior de todos.

            Creio que falar sobre a trajetória de Baiestorf seja desnecessário. Basta lembra que o cara produziu, roteirizou e dirigiu dezenas de filmes desde o início da década de 1990 até hoje, sempre com orçamentos miseráveis e pouquíssimos recursos, mas com muita criatividade e garra, mantendo sempre um pé calcado no horror escatológico e outro no experimentalismo subversivo e contestador.

            Mas voltando a “Zombio”, parece-me não ser exagero afirmar que ele sintetiza de forma emblemática tudo aquilo o cinema independente brasileiro tem a oferecer aos apreciadores dessa modalidade de manifestação artística oriunda do underground: crueza estética, edição tosca e atuações irregulares aliadas a doses consideráveis de ousadia, invencionice e o mais importante, muita diversão.

            Em termos técnicos, a qualidade da imagem deixa a desejar, mas nem poderia se esperar outra coisa de uma filmagem feita em VHS, sem quaisquer recursos de iluminação (além de tochas e fogueiras!). Contudo, a meu ver, o aspecto mais negativo está concentrado naquilo que costuma ser exatamente o problema mais grave da grande maioria das produções realizadas de forma amadora: o áudio. Em alguns momentos o vento que sopra na direção do microfone da câmera provoca um ruído desagradável que prejudica a compreensão de certas falas. Além disso, a trilha sonora – apesar de muito bem escolhida, composta quase que totalmente por músicas de heavy metal extremo – foi editada com base em cortes secos, o que acarreta um estranho baque e uma sensação de descontinuidade a cada mudança de cena onde a música aparece em primeiro plano.

           Porém, para quem aprecia esse tipo de produção, as limitações técnicas não são suficientes para impedir o transcorrer de 45 minutos de pura diversão. Até porque, Baiestorf conseguiu imprimir ao seu filme um ritmo dinâmico, de forma que, após o primeiro zumbi aparecer em cena, a ação não para mais. É correria, gritos e sangue até o final, ou seja, a reprodução da fórmula clássica que o diretor implantou desde o seu primeiro filme: horror explícito, com direito a muitas tripas e mutilações em paralelo com um humor negro, ácido e debochado.

            Entre os aspectos positivos, impossível não mencionar as atuações de Coffin Souza, que em termos de interpretação se encontra visivelmente em um patamar superior aos demais atores com os quais contracena, de forma que seus personagens acabam roubando todas as atenções a cada vez que surgem na tela. O divertidíssimo personagem “Gaúcho” interpretado pelo saudoso Jorge Timm é outro que merece destaque, pois me fez gargalhar continuamente durante todo o período em que esteve em cena. Inclusive existe uma semelhança significativa entre esse personagem e aquele interpretado pelo mesmo ator no recente “Vadias do Sexo Sangrento”. Seria coincidência?

            Algumas ideias também foram desenvolvidas de forma criativa e interessante, como a encarniçada luta entre zumbis e a hilária “chapadeira” que acomete os seres humanos ao serem mordidos pelos mortos-vivos. O final também me agradou bastante, principalmente por fugir do lugar comum instituído pela reprodução dos clichês dos filmes do mestre George Romero e investir em algo meio “lovecraftiano”.

            Mas no final das contas, o que mais me surpreendeu mesmo foram os zumbis. A caracterização das criaturas – a cargo de Carli Bortolanza, habitual colaborador de Baiestorf - ficou realmente muito boa, lembrando logo de cara os efeitos dos mortos-vivos de filmes como os clássicos “Zombie” de Lucio Fulci e “Burial Ground” de Andrea Bianchi. Fulci chega mesmo a ser homenageado explicitamente nos créditos finais, confirmando a perceptível influência que o cineasta italiano exerceu sobre a obra de Baiestorf. A admiração pelos efeitos especiais se torna ainda maior quando levando em consideração o fato de que o orçamento do filme foi, de acordo com o próprio diretor, de cerca de R$ 300,00 (em valores da época) o que prova que criatividade e empenho podem resultar em muita coisa legal, mesmo quando não se dispõe de grandes recursos. A cena em que os zumbis aparecem levantando de suas sepulturas é de longe a minha favorita, não apenas por remeter diretamente ao já mencionado filme de Lucio Fulci, mas também por conferir à obra um clima realmente tétrico e sinistro.

            Apenas a título de curiosidade, uma informação complementar que creio ser interessante de mencionarmos aqui diz respeito a dúvida que me acometeu ao ver nos créditos do filme a distinção entre os nomes “César Souza” e “Coffin Souza”, uma vez que todos sabem que ambos são a mesma pessoa. Intrigado, entrei em contato com Baiestorf pedindo qual era a lógica por trás disso, e a resposta que ele me enviou foi tão hilária que vale a pena transcrevê-la na íntegra: “A lógica dos nomes Cesar Souza e Coffin Souza é a mesma de Petter Baiestorf e Uzi Uschi, ou seja, nenhuma... (nem sei por que a gente coloca isso, talvez pra confundir, mas nunca pensamos nisso). Talvez na época tinha alguma piada (que era fazer parecer que os dois papéis eram feitos por caras diferentes e não pelo mesmo ator), mas faz tanto tempo que não sei mais o porque...”. Surreal!

            Por fim, vale lembrar que “Zombio” foi lançado em DVD em uma edição especial que traz no mesmo disco o longa-metragem “Eles comem sua carne” (1996), além de uma grande quantidade de extras como making off, trailers, curtas-metragens e pequenos documentários com histórias de bastidores. Ou seja, um produto simplesmente indispensável para os apreciadores do cinema underground brasileiro.

 

Ficha Técnica
Ano de lançamento: 1999 Brasil
Diretor: Petter Baiestorf
Roteiro: Petter Baiestorf
Elenco: Coffin Souza, Denise V., Rose de Andrade, Cláudia de Sordi, Jorge Timm
Produção: Coffin Souza
Produção Executiva: Jorge Timm, Petter Baiestorf, Cláudio Baiestorf
Fotografia: Petter Baiestorf
Edição: Leonardo Imazaki
Maquiagem: Carli Bortolanza e Coffin Souza
Música: Petter Baiestorf
Produção/Distribuição: Canibal-Mabuse Produções

Contatos com Petter Baiestorf: