8 de fev. de 2021

A FREIRA QUE ENGANOU O DIABO

 

 

Por Maria Ferreira Dutra

    Em um quarto no convento do Município de Varginha em Minas Gerais, a freira Lucretia Almate esperava ansiosa pela chegada da caminhonete que traria os mantimentos necessários para o local. A ansiedade era muito grande. Ela conhecia bem o motorista  Augusto, já eram amigos a muito tempo. 

    A caminhonete chegou e Lucretia foi correndo conversar com o seu amigo, e quando a caminhonete se aproximou e a porta se abriu,viu que dentro não estava seu amigo e sim um padre. Ele olhou para a Lucretia e se apresentou como  Padre Amando Culenia.  O padre  estava muito sério. Pegou um papel e entregou para Lucretia.

    Era um Atestado de Óbito, nele informava que o seu amigo Augusto havia falecido fazia três dias, numa tentativa de assalto , queriam levar a caminhonete e ele reagiu acabando sendo  baleado. Lucretia chorou no ombro do  padre que a abraçou de forma a acalma-la. Eles entraram e ficaram sentados no banco que havia no pátio do convento. O padre fez uma oração com ela e  pediu que lhe trouxesse em água com açúcar para ela tomar. Lucretia o agradeceu e ele ouviu o desabafo sobre como o seu amigo era um bom homem e que ele era jovem, tinha apenas 36 anos. Amando entendeu sua angustia,  explicou para a ela que ele ficaria no convento por uma semana e gostaria da sua companhia para mostrar o local.Lucretia ajudou a pegar as malas e o padre Amando agradeceu toda a ajuda da freira.

    Naquela noite, Lucretia estava dormindo em seu quarto e ouviu um ruído,  ela acendeu a luz mas não funcionava. Aos poucos, na frente da sua cama apareceu uma mesa com uma vela.  Dois  homens com chifres jogavam  cartaz nessa mesa e falavam algo sobre quem era o próximo a morrer e o outro dizia que já pegou muitos nessa semana. Esses homens tinham rabos com ponta de seta que pegava as cartas da mesa. Um deles perguntou onde estava o outro chifre dele. O Demônio passou a mão em sua testa e percebeu que realmente um chifre havia sumido e olhou e sorriu para a Lucretia que estava deitada e paralisada de medo.


    Ela sentiu algo em sua perna. Ela tentava impedir e o chifre foi mais para frente. Lucretia gritava de pavor e tentava impedir que aquele chifre viesse mais para o corpo dela. Estava subindo em sua perna e os dois demônios estavam rindo.


    Ela pegou o abajur e quando ia acertar a sua perna ela acordou do pesadelo e saiu correndo para o banheiro passar água no rosto. Quando ela pegou a toalha a madre superior estava na porta e  a perguntou se ela estava bem. Lucretia a respondeu que havia tido um pesadelo horrível. A madre superior a confortou e a levou para o seu escritório. Lá o padre Amando estava esperando a Lucretia e ela o abraçou. Contou o pesadelo e também informou que viu o rosto do seu amigo augusto em uma das cartas que os demônios manipulavam. O padre pediu autorização para falar com a Lucretia a sós. Ela concedeu e saiu. Amando segurou a mão de Lucretia e disse:


    ─ Esses demônios que viu eram capturadores de almas, eles tem a missão de coletar almas dos jurados pelo pacto. Seu amigo tinha pacto com um deles. Por isso a carta mostrou o rosto dele.


    Lucretia ficou muito impressionada com isso e dizia que era impossível que ele era bom e que jamais faria algo assim. Nunca venderia a alma para o Diabo.


    O Padre a informou que infelizmente ela estava errada e completou dizendo:


    ─ Sinto muito, mas a realidade é essa, eles levaram a sua alma; mas eu quero que saiba que podemos recuperar a alma do seu amigo e libertar do inferno.


    ─ Como? Como posso fazer isso? Eu faria qualquer coisa para libertar meu amigo desse lugar.
O Padre sorriu e perguntou:


    ─ Até mesmo reinar o inferno para toda a eternidade?


    ─ Não deve estar falando sério. essa era a segunda coisa estranha em uma mesma noite. Eu sou uma freira. Como eu posso entrar no inferno, pedir licença para o capeta sair do trono, sentar lá e dizer que sou a rainha a partir de hoje? Lucretia é o meu nome e não Loucura ou Lunática.


    O padre riu. Ele concordou com ela, que isso parecia loucura, mas era possível e com a posse do inferno ela poderia libertar seu amigo. Lucretia começou a duvidar da sanidade do padre, mas ela continuou ouvindo. O padre pegou a sua mala e abriu. colocou alguns ingredientes colocados em potes e colocou eles em cima da mesa e começou a explicar.


    ─ Esses potes tem a função de transformá-la em um demônio. Vai ter a essência de vampiros e cobras e lobos.


    Lucretia interrompe e comenta:


    ─ Espera. Vampiros existem?


    ─ Se demônios existem, todas as criaturas fictícias também.


    ─ Como Lobisomens? Fadas? Sereias?


    ─ Sim. A igreja tem uma boa relação sobre essas criaturas. Elas são bem vivas e a maioria tem celular.


    O padre pediu para ela deitar no sofá e assim ele poderia passar os ingredientes que a igreja havia guardado por séculos.


    Lucrétia perguntou:


    ─ Por um acaso, se esses produtos me transformarem em uma demônia, imagino que o senhor tem o endereço do inferno?


    ─ Não é segredo para ninguém. Até no Google você encontra. Agora deixe-me aplicar os cremes que estão no pote. A transformação será imediata.


    Com a aplicação na pele, em minutos ela se transformou em uma demônia. O padre pediu para ela se levantar e se olhar no espelho. Ela ficou impressionada com a transformação. Amando a levou para o carro. Ele explicou como deveria agir e o que deveria fazer. Lucretia achou tudo isso uma insanidade, mas era para tirar o Augusto do inferno. Ela só estava fazendo isso por ele. O padre chegou no local. Ela olhou bem e logo em seguida perguntou para ele:

    ─ Isso é uma boate? Aqui é a entrada? Você deve estar brincando.


    ─ Eu nunca brinco Lucretia. Siga as instruções e boa sorte. Lembre-se que ao entrar lá, será impossível sair sem consentimento dos senhores do inferno.


    Lucretia entrou no local com facilidade. Os demônios sentiram o seu cheiro e ela conversou com um deles para causar confusão.


    ─ Eu gostei de você, mas aquele seu amigo me quer primeiro. Isso é uma pena.


    O demônio ficou furioso. Ele foi até o outro e deu um soco e começaram a brigar. Em pouco tempo eles estavam brigando entre si. Lucretia. aproveitou a confusão e subiu para a sala onde o Diabo estava. Ela o viu, estava sozinho em seu escritório. Ele ficou surpreso com a chegada da Lucretia e ela sentou no colo dele e disse:

    ─ Eu preciso de um garoto mau.


    Lucretia beijou o diabo e ele a levou para a cama que era no quarto ao lado do escritório. Eles fizeram amor por horas. Logo em seguida o Diabo chamou todos os demônios para uma reunião urgente. Em pouco tempo ele foi para a sala de reunião e sentou em sua cadeira. Ele pegou na mão de Lucretia e anunciou que a partir daquele momento ela seria tratada como rainha do inferno e que todos deveriam prestar contas a ela, somente ela.

    Todos os demônios concordaram. Lucretia agora era a rainha do inferno. Ela beijou a boca do Diabo e sorriu. Logo em seguida alguns soldados colocaram uma cadeira ao seu lado, mas ela não quis se sentar nela por enquanto. Ela reverenciou o Diabo e deu dois passos a frente. Olhou para os demônios que estavam no local e andou para perto de cada um com um sorriso. Lucretia foi para o meio da sala e com o olhar e o sorriso de todos, proferiu:

 

   "Sem este lugar o mundo não existiria. As vitórias e glórias obtidas por esse reino serão lembradas pela eternidade. Os talentos alcançados e descobertos não são frutos de um amor, mas sim por ódio de alguém. Tudo que se descobriu foi gerado na procura da vingança, da raiva e do ódio. Foi assim que se descobriu a eletricidade Thomas Edison discutia com sua mulher em casa e isso o fez fazer testes com seus métodos científicos. Elizabeth Bathory era tratada como uma empregada em seu próprio império e muitos a traíram para que o seu trono fosse tomado. O ódio deve abrir as portas para o conhecimento mais do que o amor. Einstein foi traído e usado por sua namorada e isso fez com que ele criasse a teoria da relatividade, pois ele acreditava que em algum lugar fora desse mundo, ela o amava de verdade e aqui no inferno, esses sentimentos devem permanecer, pois são eles que fazem o mundo progredir e estamos aqui para garantir que tudo isso permaneça. E quem tem, ou acha que pode reinar como um amado, deve ser punido, preso e abandonado."

    Todos os demônios da sala levantaram e aplaudiram a Lucretia e ela pegou a espada de Astaroth e apontou para o Diabo.


    ─O Diabo infringiu a nossa lei. Ele, em sua procura para preencher o reinado, se aproveitou do seu cargo para conquistar um amor e não alimentou o ódio que deveria.

    Os demônios concordaram e pediram para os guardas acorrentá-lo. O Diabo olhou para a Lucretia e, com tristeza, foi para a sua prisão.

    Lucretia andou até a cadeira do Diabo e enfiou a espada no acento. Logo depois, sentou em sua cadeira e sorriu. Pegou a relação das almas aprisionadas e localizou o seu amigo Augusto e liberou a sua alma. A sua missão estava terminada.

    No convento o Padre Amando arrumava as suas malas para sair do local. A sua missão havia terminado. Na porta do seu escritório, havia o corpo enforcado da Madre Superiora que balançava de um lado para o outro. Ele recebeu uma visita. Uma mulher de cabelos brancos e com uma roupa de látex entrou calmamente em sua sala e sentou em uma cadeira. Ela perguntou se ele se divertiu. O padre sorriu e agradeceu ao anjo a sua aliança e ajuda por ter passado alguns poderes que o protegiam contra esse local e evitaram que ele fosse descoberto do seu disfarce. O Anjo agradeceu, andou até o padre e o beijou rapidamente. Depois sorriu e disse "Padre! Eu pequei, ajudei um vampiro a colocar Lucretia como rainha do inferno. Esse vampiro é muito mau e se chama Neculai. Quantos tapinhas no bumbum devo levar?"


    Neculai terminou de arrumar as suas malas e sorriu. Ele olhou para o corpo da madre e comentou que ela arrecadava o dinheiro para as crianças e usava para comprar casas e depois alugava para ganhar dinheiro. Mas por causa da sua morte, será visto como vilão da história.


    Mais tarde no inferno Lucretia foi até a cela onde o diabo estava preso. Ela pegou as chaves e abriu a porta. O diabo olhou para ela e sorriu. Lucretia tira a sua roupa e pergunta ao diabo se pode aquecê-la.



Ilustração: Adriano Siqueira.
Edição de imagem: André Bozzetto Jr.

 

6 de fev. de 2021

JORNADA DO PAVOR


 

Por Renato Rosatti

                “Onde será que estou? Que lugar será esse? Sinto-me perdido nessa imensidão de um escuro infinito. O ar está infectado por um nauseante cheiro de putrefação, que parece corroer meu cérebro. Não vejo onde piso, mas sinto que o solo sob meus pés é úmido e pegajoso. Ouço um estranho ruído ao caminhar que me dá a impressão de estar pisoteando ossos e vísceras. Será um pesadelo? Uma alucinação? Não posso me desesperar. Tenho que manter o controle de minhas emoções, apesar do odor fétido queimar minhas narinas e tentar me tirar a consciência”.

                “Continuo caminhando e agora imagens começam a surgir à minha frente. Posso ver um aglomerado de corpos humanos, alguns em adiantado estado de decomposição, outros abundantemente ensanguentados e ainda outros pendurados invertidos em grandes ganchos como se fossem animais abatidos e prontos para serem desmembrados. Muitos dos cadáveres estão violentamente mutilados e outros apresentam ferimentos diversos como se provocados por horríveis torturas. Posso ouvir o barulho característico proveniente do impacto de ferramentas cortantes em pedaços de carne, seguido por gritos intermináveis e agonizantes Uma cruel carnificina celebrando a dor. Um verdadeiro matadouro humano. Sinto-me como se estivesse hipnotizado com essas imagens escatológicas se fixando em minha mente e tentando me enlouquecer. Que lugar infernal será esse? Um universo paralelo que mantém a dor e o sofrimento eternos?”.

                “Apesar do horror à minha volta, eu prossigo a caminhada tentando manter a calma e mais imagens começam a aparecer. Vejo homens lutando entre si e posso ouvir explosões ensurdecedoras e armamentos em disparos contínuos. Chamas, destroços, sangue e pedaços de órgãos humanos espalhados por todos os lados, e dor, muita dor. É a guerra, cuja lei vigente é matar para não morrer e onde a única vencedora é a Morte, soberana e insuperável. Posso avistar agora cidades inteiras sendo aniquiladas em poucos segundos, com suas populações sendo incineradas vivas. É o holocausto nuclear. Um genocídio irreversível. A destruição total!”.

                “Será tudo isso um pesadelo de sangue, real apenas em meu subconsciente? Ou será uma viagem aos confins da loucura explorando a dor humana? O tormento das macabras imagens tenta explodir-me a cabeça, mas com muita dificuldade eu consigo manter a sanidade e prossigo a jornada rumo ao infinito, tentando encontrar uma saída do inferno em que me encontro. As imagens cessam e não retornam mais, ficando apenas a escuridão ao meu redor. Porém, avisto agora uma espécie de criatura de aspecto sinistro não muito distante de mim. À medida em que me aproximo dela, suas feições se sobressaem na escuridão tornando-se mais nítidas. O misterioso ser aparenta estar vestido com uma capa escura que o envolve até a cabeça, e luzes fracas o iluminam precariamente. Em uma das mãos está segurando um grande objeto pontiagudo, semelhante a uma foice. Continuo me aproximando até poder visualizá-lo bem e meu espanto é indescritível ao reconhecer a criatura como sendo um esqueleto humano! A própria imagem da Morte! O desespero então se apossa de mim, não sendo mais possível o controle das emoções. Meus gritos de agonia ecoam de maneira ensurdecedora através das trevas abissais e...”.

                Acordo de repente, todo suado e com o corpo dolorido e cansado. Apesar de meus constantes questionamentos, é novamente mais um pesadelo de horror invadindo minha noite e importunando meu descanso. Imagens macabras celebrando a dor e povoando meus sonhos. Meu batimento cardíaco está acelerado, a respiração ofegante e os olhos vidrados na escuridão do quarto.

                Alguns minutos se passam e aos poucos me recomponho da insana viagem que realizei. Minha visão vai se acostumando ao escuro e me levanto sentando na borda da cama. O corpo dói e as roupas coladas devido ao suor dificultam meus movimentos. Apanho meus óculos na cabeceira da cama e olho para o rádio-relógio à minha frente. Não me surpreendo ao ver os displays vermelhos mostrarem três horas e trinta e três minutos. É sempre na mesma hora. A hora marcada para a jornada do pavor. Foi assim que batizei essa tortuosa experiência que vivencio em vários pesadelos seguidos. Sempre as mesmas imagens, a celebração da dor humana, o encontro da vida com o seu fim e a escuridão eterna reinando morbidamente.

                Levanto-me e vou até a cozinha beber um pouco de água gelada, na esperança de me reanimar novamente. A noite ainda está na metade e não é mais possível dormir. Como nas vezes anteriores, e não me lembro ao certo quantas foram, aguardarei o amanhecer do dia para trabalhar e tentar esquecer os horrores da noite mal dormida.

                O dia passa rápido e a noite novamente se aproxima. E com ela vem o desespero de enfrentar outra viagem pelos caminhos do macabro. Dormir tornou-se uma atividade dolorosa e sufocante. Eu era escravo de meus pesadelos e senti que minha vida estava se esvaindo cada vez que meus olhos se fechavam para... sonhar.

                Cansado e com o corpo dolorido, caminho em direção ao quarto como se fosse entrar numa cripta. Minha saúde estava terrivelmente abalada devido às inúmeras noites de tortura. Aproximo-me vagarosamente da cama e me sinto como se deitasse numa sepultura gelada. Minha resistência em vão cede perante o forte cansaço que me força a fechar os olhos vermelhos e lacrimejantes. Sinto como se fossem abertos os portais de um cemitério.

                    Tem início novamente a jornada do pavor.

                As imagens sangrentas começam a surgir e sinto minha energia vital sendo consumida pelo horror escatológico que me envolve. A viagem prossegue parecendo eterna e com ela a intensa batalha entre a razão e a insanidade. Quando surge a criatura vestida com a capa e com a foice em uma das mãos, eu interrompo a caminhada, já quase sem forças. Estou fraco e com o corpo extremamente dolorido. Parado ali, diante do sinistro esqueleto humano, sinto como se as viagens de sofrimento tivessem chegado ao seu fim, aliviando o martírio de uma vida atormentada pela dor.

                A criatura representante da morte levanta então seu braço direito erguendo a grande foice e vocifera com uma voz gutural que ecoa grotescamente na escuridão infinita:

                - Sua jornada chegou ao fim... e não tem volta!

                Os pesadelos acabaram... para sempre!

 

 

Publicações anteriores: fanzines Megalon 28 (Outubro 1993), Astaroth 18 (Outubro 1998) e Juvenatrix 168 (Fevereiro 2015).

Ilustração original: Roberto Schima.

Edição de imagem: André Bozzetto Jr. 

1 de fev. de 2021

ZINE NOTURNO Nº 01


 Por André Bozzetto Junior

             O ZINE NOTURNO é uma derivação aqui do blog RELATOS NOTURNOS, e visa se constituir em um espaço para a publicação não apenas dos meus próprios contos, mas também de autores já experimentados nas lides literárias – seja pelas vias independentes ou através de editoras profissionais –, bem como de escritores iniciantes que produzam material relevante aos fãs do gênero fantástico.

            Para esta primeira edição, cujo foco é a abordagem da temática do horror rural e do terror psicológico, trago um conto que perpassa, de forma quase psicodélica, a temática da licantropia, assunto seguidamente por mim revisitado no extinto blog Escrituras da Lua Cheia, em diversas antologias das quais participei, como Metamorfose – A Fúria dos Lobisomens (2009), Cursed City (2011) e Amor Lobo (2013), além dos romances sobrenaturais Na Próxima Lua Cheia (2010) e Jarbas (2011).

            Propositalmente optando por contar com artistas do oeste catarinense como integrantes do primeiro número, convidei para participar do projeto o lendário Petter Baiestorf, um dos mais icônicos nomes do cinema independente brasileiro, responsável por clássicos underground como O Monstro Legume do Espaço (1995), Zombio (1999) e Vadias do Sexo Sangrento (2008), entre outros, e que, em sua faceta multimídia, nos brindou com um conto perturbador.

            Completando a trinca de autores, temos o escritor e ator Alan Cassol – que atuou em filmes como Zombio 2 (2013) e Brasil 2020 (2019) dirigidos por Baiestorf, além de ter integrado o elenco do projeto Lua Perversa, idealizado por este que aqui escreve entre os anos de 2009 e 2012 – e possui textos publicados no e-book e no blog Mal do Horror e no zine e blog Impresso Marginal. Para esta edição, Alan nos trouxe uma história sinistra, quase uma fábula macabra, vista pelo olhar intrigante de uma criança.

            Esperamos que essa seja apenas a primeira de muitas edições e que este fanzine possa ser um ponto de contato entre autores e leitores aficionados por relatos oriundos dos recônditos escuros da noite. 
 
          Para baixar gratuitamente  o Nº 01 do ZINE NOTURNO, basta clicar neste link
 
         Boa leitura!

30 de jan. de 2021

CALAFRIO E MESTRES DO TERROR

Os grandes clássicos dos quadrinhos nacionais

Por André Bozzetto Junior

          Entre os diversos gêneros de histórias em quadrinhos que vieram a fazer sucesso – tanto em volume de vendas quanto em qualidade do material produzido – na prolífica trajetória da nona arte no Brasil, um dos que mais se destacou, com toda certeza, foi o Terror. Desde as décadas de 1930 e 1940 passou-se a ter alguma singela produção que, com a aceitação do público leitor e o despontar de artistas extremamente gabaritados, foi tomando fôlego de forma progressiva, até atingir o seu auge entre os anos de 1970 e 1980 e encontrar a decadência na primeira metade da década de 1990, onde a crise econômica da Era Collor, minou o poder de compra dos leitores e tornou o caro processo de impressão de revistas praticamente insustentável, levando inúmeras publicações ao cancelamento e editoras à falência.

          Durante a "Era de Ouro" dos quadrinhos de terror no Brasil, tivemos algumas publicações que se tornaram clássicas e até hoje são referência – não apenas da parte dos fãs, mas também de estudiosos do tema – pela qualidade do material publicado e pelo sucesso obtido junto a leitores ocasionais e colecionadores. Entre essas, é impossível deixar de mencionar as lendárias Kripta (RGE), Spektro (Vecchi), Capitão Mistério apresenta (Bloch), com suas infindáveis séries derivadas, Calafrio e Mestres do Terror (D-Arte). E são exatamente as duas últimas que se constituem no foco deste breve artigo, não apenas em função da minha predileção pelas mesmas, mas também por serem as únicas que continuam sendo editadas atualmente.

          A revista Calafrio passou a ser publicada em 1981, em São Paulo, pela editora D-Arte, surgida como uma derivação do estúdio de mesmo nome que prestava serviços a outras editoras, tendo como fundadores o argentino Rodolfo Zalla e o italiano Eugênio Colonnese, considerados por muitos como os maiores quadrinistas de terror que já atuaram em terras brasileiras. A publicação era impressa em preto e branco, com papel jornal no miolo e capa plastificada, no formato aproximado de 18 x 26 cm. Logo de cara, chama a atenção o extremo capricho com as capas, sempre ostentando belíssimas ilustrações que certamente contribuíam para atrair o interesse dos leitores nas bancas. No interior da revista, não era diferente. Os desenhos, geralmente excelentes, aliados a roteiros compostos por histórias quase sempre curtas e “avulsas” – que não demandavam conhecimento prévio ou obrigatoriedade de se continuar acompanhando futuras edições para conhecer o final – agradavam ao leitor esporádico e não comprometiam o interesse do colecionador. Os enredos em diversas ocasiões consistiam em adaptações de contos clássicos de autores estrangeiros, parecendo haver uma predileção por Edgar Allan Poe, mas na maioria das vezes eram histórias totalmente originais, abordando assombrações, vampiros, lobisomens, demônios e todo tipo de criaturas típicas do gênero.

          Neste ponto, creio ser muito válido mencionar aquela que provavelmente seja uma das características mais cativantes da revista, responsável por parte do grande apreço que possuo pela mesma, e que consiste justamente na brasilidade inerente à maioria das histórias. Ao longo da série há um constante desfiar de narrativas macabras vivenciadas por pessoas comuns, como o taxista da esquina, o açougueiro do bairro, eu ou você. São tramas que se passam nos subúrbios das grandes cidades, nas sombras perigosas dos arranha-céus de suas áreas centrais, nos recônditos isolados de cidadezinhas do interior, em áreas de matas afastadas ou nos sertões que entrecortam diversas regiões do nosso país. Figuras mitológicas oriundas de "causos" difundidos em nossa tradição oral e reminiscências do folclore popular e lendas urbanas seguidamente dão as caras, geralmente nas versões mais terrificantes possíveis. Tudo isso com aquela deliciosa “aura de anos 80”, que tanto agrada os nostálgicos de plantão, como este que aqui escreve.

          Alguns meses depois da Calafrio começar a ser publicada, a editora D-Arte coloca nas bancas a revista Mestres do Terror, supostamente com a intenção de pegar carona nas boas vendas da antecessora e reverter o prejuízo acumulado com a publicação do faroeste Johnny Pecos, cujo fracasso de vendas ocasionou o seu cancelamento na quarta edição. Em termos gerais, a Mestres do Terror seguia os mesmos moldes da Calafrio, tanto no que diz respeito ao material de impressão, quanto no esmero com as belíssimas capas. A já referida brasilidade das narrativas também estava ali, encantadoramente incrustada em muitas das histórias, até porque, boa parte dos roteiristas eram os mesmos em ambas as revistas.

          Em termos de diferencial, a Mestres do Terror tinha como marca registrada apresentar em cada edição algumas histórias com personagens recorrentes, ainda que em pequenos arcos fechados, que podiam ser compreendidos e apreciados sem a necessidade de se ler outras edições. Entre esses personagens, podemos citar os monstros clássicos imortalizados tanto na literatura como no cinema, a exemplo do Conde Drácula, Monstro de Frankenstein (em sua versão inspirada pelos lendários filmes em preto e branco da Universal), Kharis, a Múmia, além de personagens criados por artistas daqui, como Von Bóros, o Lobisomem, de Gedeone Malagola, Mirza, a Mulher Vampiro e o Morto do Pântano, idealizados por Eugênio Colonnese, entre outros.

          No que se refere aos roteiristas e desenhistas que transitaram pelas páginas das revistas, fica até difícil destacar algum em particular, pois havia uma profusão de grandes talentos como R. F. Lucchetti, Mozart Couto, Flávio Colin, Rubens Cordeiro, Ota, Jayme Cortez, Júlio Shimamoto, além dos já referidos Zalla e Colonnese, entre vários outros não menos gabaritados. Particularmente, sempre fui um grande fã das histórias do Ota – o reconhecidíssimo Otacílio Costa d'Assunção, lenda do meio dos quadrinhos nacionais, não apenas como artista, mas também como editor – pois muitos dos seus roteiros ambientavam as ações em gafieiras, bordéis, bairros decadentes, subúrbios sinistros, espeluncas diversas e estabelecimentos comerciais para lá de suspeitos, o que reforçava o tom de terror tipicamente brasileiro das narrativas, além das mesmas virem ocasionalmente pontuadas por perspicazes doses de ironia e humor negro.

          Infelizmente, em 1993 ambas as revistas foram canceladas. Calafrio parou na edição 52, tendo tido também cinco números especiais publicados. Mestres do Terror foi até o número 62, além de ter recebido quatro edições especiais.

          Em 2002, a editora Opera Graphica lançou um álbum especial comemorativo intitulada Calafrio – 20 Anos Depois, contando com histórias de autores como Eugênio Colonnese, Mozart Couto e Jayme Cortez, entre outros.

          No ano de 2011, Rodolfo Zalla decidiu ressuscitar a Calafrio com a alcunha “Edição de Colecionador” em parceria com a editora CLUQ. Apesar de retomar a publicação a partir no número 53, onde havia parado na editora D-Arte, a revista estava diferente, tanto nos aspectos de editoração quanto de impressão e, mesmo possuindo conteúdo de inegável qualidade, a baixa tiragem aliada ao elevado preço de capa e às restrições de distribuição fizeram com que o projeto tivesse vida curta, sendo cancelado na edição 64, em função das vendas inexpressivas.

          Depois de mais alguns anos de hiato, a Calafrio volta a ser publicada em 2015, quando Zalla fecha um acordo com os editores Daniel Saks e Fábio Chibilski, do selo Ink&Blood Comics. As novas edições, que notadamente procuram retomar os aspectos editoriais da séria clássica – acertadamente, diga-se de passagem – recomeçam a numeração de onde a editora D-Arte havia parado, ou seja, a partir do número 53. De quebra, a Mestres do Terror é igualmente trazida de volta da sepultura, depois de décadas de hibernação, também retomando a publicação de onde havia parado no início dos anos 90, ou mais especificamente, do número 63. Pouco tempo depois, Fábio Chibilski se desliga da edição das revistas para se dedicar a outros projetos e, com o falecimento de Rodolfo Zalla em 2016, Daniel Saks assume sozinho o papel de levar adiante a publicação de ambas. Editadas inicialmente sem uma periodicidade rígida, atualmente a Calafrio é publicada nos meses de abril, junho, outubro e dezembro, se encontrando na edição 69, e a Mestres do Terror, lançada nos meses de fevereiro e agosto, está no número 73.

          Publicadas de forma independente – e, inicialmente, quase amadora – as revistas da Ink&Blood Comics vêm apresentando uma notável evolução, tanto no que diz respeito a diagramação e impressão, quanto no que se refere ao conteúdo. Com a acertada proposta de republicar eventualmente algumas histórias clássicas de fase áurea, tanto a Calafrio quanto a Mestres do Terror têm aberto espaço para novos talentos dos quadrinhos nacionais, além de ter o grande mérito de trazer de volta às páginas diversos colaboradores da D-Arte que, com reedições de material raro ou conteúdo inédito, vêm abrilhantando cada novo número. Sidemar de Castro, Ivan Lima, Toni Rodrigues, Gian Danton e Bené Nascimento – o internacionalmente aclamado Joe Bennett – são alguns dos nomes encontrados nessa fase atual das revistas.

          Em um mercado editorial completamente diferente daqueles anos dourados da década de 1980, onde as bancas de revistas se encontram em extinção e até grandes editoras enfrentam problemas e recebem críticas em função de dificuldades de distribuição, e, principalmente, com um público leitor de quadrinhos muito menor do que no passado, é admirável a iniciativa da Ink&Blood Comics de manter a publicação das duas revistas, apesar do lento e baixo retorno financeiro. Percebe-se o profundo respeito com que o legado da Calafrio e da Mestres do Terror é tratado, e, apesar da natural necessidade de se adequar aos tempos atuais, o glorioso passado de ambas as publicações nunca é perdido de vista.

          Tanto com os autores novos quanto com os antigos, o que se lê, na grande maioria das vezes, são roteiros de alto nível, que atualizam o terror para os dias de hoje, mas ainda fazendo jus à tradição construída no passado. Na Mestres do Terror, por exemplo, novos personagens recorrentes passaram a dar as caras, renovando ou incrementando o plantel de monstros clássicos, sendo que podemos citar a vampira Anya, a Filha de Drácula, criada por Laudo Ferreira e Lillo Parra, e A Coisa do Tietê, também de Parra, entre outros.   Quanto aos desenhistas, a maioria é igualmente digna de mérito, embora alguns possuam um estilo de traço que parece não combinar muito bem com a temática das revistas – algo por diversas vezes mencionado por leitores nas sessões de correspondência das publicações. E por falar nas sessões de correspondência, elas se constituem em mais um elemento de ligação entre as diferentes fases das revistas, uma vez que as mesmas eram inegavelmente apreciadas no passado, não apenas pelo humor involuntário contido nas cartas de muitos leitores, mas também pelo tom irônico e por vezes ríspido das respostas por parte dos responsáveis, sobretudo do saudoso Reinaldo de Oliveira, um reconhecido ranzinza. Ao manter esse canal direto com o público, o editor possibilita um maior engajamento dos fãs junto às revistas.
 
          Calafrio e Mestres do Terror estão entre o que de melhor já se produziu em termos de quadrinhos de terror nacionais, sendo que vale muito a pena garimpar as edições antigas e acompanhar as publicações atuais, uma vez que elas representam não apenas um inegável elo de ligação com um passado saudoso para o público nostálgico, mas também possuem potencial suficiente para proporcionar um entretenimento de qualidade para todos os fãs, tendo ainda o mérito de possuir um preço de capa extremamente acessível quando comparado ao que se publica em termos de quadrinhos no Brasil atualmente.

       Para se adquirir as revistas, pode-se entrar em contato diretamente com o editor Daniel Saks através do e-mail: revistacalafrio@gmail.com