17 de mar. de 2021

ÁGUAS SOMBRIAS - A Verdade Sobre o Lago Verde

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Não começarei essa história pelo início, mas sim pelo meio. É estranho, eu sei, mas esse relato será cheio de fatos estranhos e misteriosos, então é bom se acostumar. Vou iniciar por este ponto porque assim ficará fácil ao leitor entender o motivo de meu interesse pelo assunto e o porquê de eu estar falando sobre isso apenas agora, mais de vinte anos depois do incrível acontecimento que irei narrar.

            Primeiro, me deixe falar rapidamente sobre o lugar. Ilópolis, “A Cidade da Erva-mate”, é um pequeno município de pouco mais de 4.000 habitantes, localizado na parte menos famosa da serra gaúcha, mais especificamente na Encosta Superior Nordeste do Planalto Meridional do Rio Grande do Sul, parte alta do Vale do Taquari. A grande maioria da população é composta por descendentes de italianos que chegaram à região no início do século XX, atraídos pela oportunidade de extração madeireira proporcionada pela enorme floresta de araucárias que ali existia e, com o passar das décadas, adotou a exploração da erva-mate como o foco principal de sua atividade econômica.

            Entre os vários atrativos turísticos do município – que não iremos detalhar por não ser do objetivo deste texto – com certeza ocupa lugar de destaque o Lago Verde, um inspirador espelho d’água de 178.000 metros quadrados, rodeados de mata nativa, com grande concentração de araucárias, entrecortada por frondosos bosques de pinheiros, do tipo pinus elliottii. O lago é, na verdade, um reservatório artificial, construído no início da década 1940 para represar a água que alimentaria uma pequena usina hidrelétrica construída nas imediações com o objetivo de fornecer energia ao povoado, bem antes de ele ser emancipado. No início dos anos 80, a usina foi desativada, e a partir de então a barragem continuou existindo como um cartão postal apto a várias atividades de lazer e recreação, como pesca, natação, canoagem e outros esportes aquáticos, além de um local agradável e convidativo para passeios, caminhadas, piqueniques e acampamentos. Pelo menos esta é a versão oficial. Como irei relatar nas próximas páginas, a história real é bem mais obscura, e as pouquíssimas pessoas ainda vivas que conhecem a verdade não gostam de tocar no assunto e se recusam a revelar o que sabem, mas eu irei contar.

            Assim como qualquer ilopolitano da minha geração, ou de gerações anteriores à minha, cresci ouvindo “histórias de assombração” sobre o Lago Verde. Este nome, inclusive, começou a se popularizar a partir da década de 1990, quando Ilópolis passou a ganhar alguma notoriedade em nível nacional por seu potencial ecoturístico, alardeado em programas de TV e publicações especializadas. Antes desse momento, o povo costumava a se referir ao local apenas como “A Barragem”. E do que tratavam os causos sobrenaturais relacionados à Barragem? Um pouco de tudo, mas lembro que os mais populares faziam menção à aparições de fantasmas, supostos espíritos de pessoas que teriam morrido afogadas nas águas escuras do lago em diferentes épocas, e que na calada da noite emergiam da escuridão para assombrar algum transeunte incauto. Também ouvi, por diversas vezes, menções a almas penadas de pessoas que haviam sido sepultadas em um antigo cemitério que foi demolido e removido no início dos anos 90 para a construção da Escola EMAFA, localizada em uma pequena elevação às margens do reservatório. Eu lembro muito bem desse cemitério. Ele ficava onde hoje está o Monumento à Agricultura, na pequena área calçada ao lado da escola. Tinha uma aparência realmente tétrica, com poucas sepulturas e lápides em meio a uma vegetação rasteira, que passava uma impressão de esquecimento e abandono. Não é difícil acreditar que tal visão despertasse nos transeuntes de imaginação mais fértil a sensação de cenário de filme de terror, com direito a fantasmas macabros perambulando à noite entre os túmulos em ruínas. Mas isso seria tudo? Não. Com certeza, havia mais. Porém, só fui descobrir posteriormente, pois quando se é criança, fica praticamente impossível distinguir fatos insólitos pautados na realidade de fantasias inventadas apenas para amedrontar meninos desobedientes. Para mim, as respostas começaram a aparecer em 1998. Vou começar a descrição dos fatos em um novo subtítulo, que chamarei de

Aquilo que espreita na escuridão

            Eu tinha 17 anos e estudava fora. Voltava para Ilópolis aos finais de semana e, nessas circunstâncias, o que mais gostava de fazer era me reunir com outros caras da minha idade para tomar cerveja, bater papo, jogar sinuca pelos bares da cidade e depois ir para algum baile na expectativa de ficar com alguma garota. Simples assim. Era a década de 90, em um lugar minúsculo do interior gaúcho, sem internet, sem celular e com o senso comum bem menos politicamente correto do que nos dias atuais.

            Há basicamente duas formas de se chegar ao Lago Verde. Uma delas é seguindo até o final a Rua Conselheiro José Bozzetto, que atravessa o centro da cidade e segue pavimentada até às imediações da Escola EMAFA. A outra é pela bem menos movimentada Rua Augusto Tomasini, que termina em um considerável declive de estrada de terra e mergulha em um denso bosque de pinheiros, já nas cercanias do lago. Em uma parte mais retirada deste bosque, haviam construído recentemente um prostíbulo que estava dando o que falar. Naquela sexta-feira em questão, Leandro, Marquinhos e eu havíamos combinado que iríamos “conhecer a zona” que tanto atiçava a curiosidade – ainda que fosse uma curiosidade bizarra – da maioria, senão de todos, os jovens da cidade.

            Logicamente, não tínhamos qualquer pretensão de “fazer programa” com as prostitutas, mas sim dar uma olhada no ambiente, que alguns amigos já haviam adiantado se tratar de uma espelunca de quinta categoria. Todo mundo sabe que cerveja de zona custa uma fortuna e, como mal tínhamos dinheiro, decidimos comprar umas latas de cerveja em um bar qualquer e beber nas margens do lago, para só depois seguirmos até o bordel ali próximo.

            O Leandro era o único que já tinha carteira de habilitação, e o pai dele lhe emprestava o carro para dar umas voltas aos finais de semana. Foi assim que chegamos até o bosque de pinheiros. Estacionamos entre as árvores, bem de frente para as águas do lago. Leandro deixou os faróis ligados com luz baixa e também acionou a lâmpada no interior do veículo. Pelos alto-falantes ouvíamos as músicas de uma fita K7 do Iron Maiden, nossa banda favorita. Estava uma temperatura agradável, quase calor, algo bem incomum se tratando das noites ilopolitanas, o que nos estimulou a ficar ao ar livre de bom grado, recostados no capô do carro. Devia ser por volta de 23 horas e conversávamos sobre um assunto qualquer, provavelmente garotas. Fazia bem pouco tempo que havíamos chegado, ainda estávamos na primeira lata de cerveja, quando as coisas começaram a ficar estranhas. Até aqui eu me lembro de tudo perfeitamente.                 

            Primeiro foi uma sensação esquisita. Parecia que o ar havia ficado mais parado, pesado, fazendo sentir até uma certa dificuldade em respirar. Ao mesmo tempo, tive  uma espécie de calafrio e começou a crescer dentro de mim uma sensação de desconforto – de medo, para falar a verdade – e isso parecia aumentar a cada segundo. Nem tive tempo de comentar sobre isso com os outros rapazes, porque nesse momento começaram as luzes. Pareciam faróis de carros se aproximando pela estrada e iluminando de forma estranha os troncos das árvores. Só que não havia nenhum barulho de carro e os fachos de luz não se aproximavam na horizontal, como se fossem, de fato, faróis, mas sim de forma ondulatória, como se subissem até o topo das árvores e descessem novamente. Olhei para os rostos dos meus amigos e reparei que eles observavam as luzes com expressões que não pareciam denotar exatamente medo, mas sim estranhamento, como se não entendessem o que estava acontecendo. O medo para valer tomou conta de todos alguns segundos depois, quando começaram as vozes.

            No começo era um som confuso, que não dava para distinguir claramente. Chegou a me passar pela cabeça que poderiam ser as vozes de pessoas conversando na outra margem do lago, apesar de ser uma distância muito grande para isso ser possível. Porém, logo ficou óbvio que não poderia ser esse o caso, pelo simples fato de que as vozes estavam se aproximando! Se aproximando por cima, ou por dentro do lago! Era como se fosse um turbilhão de vozes, algumas femininas, outras masculinas, falando todas ao mesmo tempo, umas parecendo rir, outras chorar. Não duvido que ali no meio estivessem sendo pronunciadas palavras em algum idioma primitivo e desconhecido, enquanto começaram a ganhar destaque os gritos. Sim, gritos estridentes, horríveis que me faziam gelar o sangue e suar frio. E estavam chegando mais perto.

            Eu e os outros dois amigos nos entreolhamos e era nítido o pavor no rosto de cada um. Sem dizer absolutamente nenhuma palavra, simplesmente nos precipitamos rapidamente em direção ao interior do carro, buscando sumir dali o mais rápido possível. Contudo, nem sequer havíamos entrado no veículo e a luz dos faróis e da lâmpada de interior apagaram subitamente. A música dos alto-falantes também cessou de repente. Mesmo assim, Leandro sentou ao volante e tentou dar partida. Nada. Nem sinal de que o carro poderia voltar a ligar. O único foco de iluminação que tínhamos naquele instante era a pequena chama de um isqueiro que Marquinhos tirou do bolso e acionou. Tudo acontecia muito rápido. Ao mesmo tempo que as vozes se aproximavam por um lado e as luzes por outro, começamos a ouvir também um novo barulho que, para mim, era ainda mais apavorante do que os demais. Era o som de galhos se partindo e mata sendo pisoteada por alguém, ou por alguma coisa que estava chegando pelas nossas costas. Era algo grande e, pelo barulho, dava a impressão que derrubaria uma árvore ao nosso redor a qualquer momento. Nesse instante, uma lufada de ar quente apagou a chama do isqueiro e mergulhamos na escuridão total. Escutei Marquinhos praguejando enquanto tentava acender novamente, mas sem sucesso.

            Em meio ao pânico, alguém – provavelmente o Marquinhos – gritou “Corre, piazada!”, e foi isso o que fizemos. Corremos, imagino que cada um para um lado, destrambelhadamente em meio às trevas, tomados pelo mais completo pavor. Acredito que eu tenha tropeçado e caído no mínimo umas três ou quatro vezes. Trombei contra galhos e tronco de árvores e, enquanto me lembro disso, penso que só por um milagre não me machuquei seriamente.

            Como se não bastasse todo esse terror, ainda havia espaço para um novo elemento apavorante. Enquanto corria, eu gritava pelos nomes dos meus amigos e pedia por socorro, porque estava realmente em pânico. Eles não respondiam, mas alguma outra coisa respondia. Quando eu berrava “Leandro?!”, uma voz gutural, grossa e cavernosa repetia ao meu redor: “Leandro?!”. Quando eu gritava “Marquinhos?!”, uma voz tétrica e espectral repetia: “Marquinhos?!”. Se eu dizia “Socorro!”, alguma voz medonha dizia: “Socorro!”, logo em seguida. Não tenho vergonha de admitir que comecei a chorar de medo nesse momento.

            De repente, senti como se fosse uma rajada de vento quente me atingindo e não sei se caí, se acabei saltando involuntariamente de algum barranco ou se alguma outra coisa aconteceu, mas o fato é que parecia não estar mais tocando o solo por alguns instantes, como se estivesse flutuando. A impressão que eu tenho é que isso não durou mais do que alguns segundos até que me estatelei no chão, inclusive batendo a lateral da cabeça com muita força, a ponto de ficar bem zonzo, talvez no limite de perder a consciência.

            Quando consegui me levantar, meio grogue, notei que tudo estava em silêncio. Avistei, não muito distante, o que parecia ser a luz de um poste de iluminação pública. Andei o mais rápido que consegui naquela direção e notei, com muito alívio, que estava saindo do bosque de pinheiros e entrando na Rua Augusto Tomasini. Debaixo da luz do poste, reparei que minhas mãos estavam esfoladas por ter caído nos cascalhos, as minhas calças estavam sujas de terra nos joelhos e na bunda, além de ter uma mancha úmida na altura do zíper. Provavelmente me urinei de tanto medo. Também estava com um grande “galo” entre os cabelos, acima da orelha esquerda. Fora isso, de resto parecia tudo bem.

            Instintivamente, comecei a correr pelas ruas desertas de volta em direção ao centro da cidade, sem saber o que fazer. Será que os meus amigos também teriam conseguido sair dos arredores do lago? Parei diante da casa do Marquinhos, que ficava apenas poucos quarteirões distante da entrada do bosque, e vi que estava tudo escuro e silencioso. Sua família com certeza estava dormindo. Olhei para o relógio no meu pulso e levei um susto ao constar que eram 02:40 da madrugada. Como poderia ter se passado todo esse tempo? A impressão que eu tinha é que tinham transcorrido apenas alguns minutos, ou no máximo meia hora, desde que as coisas começaram a ficar estranhas no lago.

            Agindo meio que sem raciocinar, caminhei até a casa do Leandro – que ficava perto da minha – e reparei que lá também estava tudo escuro e silencioso. O carro não estava estacionado no lugar de costume, no pátio da frente. O que fazer então? Acordar as famílias e contar a verdade? Julguei que ninguém iria acreditar. Achariam que eu estava bêbado ou drogado. Além disso, tive medo da possível reação dos pais se soubessem que nosso plano era ir ao bordel. Chamar a polícia? Sem chance. A polícia não gostava da nossa turma porque, além de ficarmos até tarde pelas ruas aos finais de semana, atitude classificada como “de marginais”, ainda usávamos camisetas de bandas de rock, alguns tinham cabelos compridos e brincos, o que servia perfeitamente ao estereótipo de “maconheiros” com o qual algumas pessoas gostavam de nos rotular.

            Sem saber o que fazer, acabei não fazendo nada e fui para casa. Entrei silenciosamente para não correr o risco de acordar alguém e coloquei minha calça diretamente dentro da máquina de lavar roupa, para diminuir a chance de a minha mãe perguntar o porquê do estado em que ela se encontrava.

            Não sei se por exaustão, esgotamento ou qualquer outro motivo, tive a impressão de que peguei no sono tão logo deitei a cabeça no travesseiro. Tive o sono agitado por sonhos estranhos dos quais não me recordo direito. Lembro apenas de uma parte, onde estava diante do Lago Verde, ao entardecer. O céu estava escuro, como se uma tempestade se aproximasse. Então, várias pessoas, com roupas de diferentes épocas começaram a sair da água e andar na minha direção. Entre elas, havia um velho de aparência indígena que dizia “Eu avisei que ninguém deveria vir aqui nestes dias! Eu avisei!”. Então fui acordado pela minha mãe, dizendo que o Leandro estava me esperando na sala. Lá fora o sol já estava alto e sua luminosidade entrava pelas frestas da janela.

            Enquanto me vestia, escutei a voz do Leandro conversando com o meu irmão sobre alguma trivialidade qualquer, o que me tranquilizou. Fui ao banheiro e depois entrei na sala como se tudo estivesse dentro da normalidade. Leandro, como se nada tivesse acontecido na noite anterior, disse que iria até a comunidade de Linha Gramadinho buscar algumas coisas para sua mãe e passou para ver se eu gostaria de lhe fazer companhia. Respondi que sim e imediatamente fomos saindo. Nesse momento vi a minha calça no varal e me senti aliviado. Minha mãe não devia ter percebido nada.

            Embarcamos no carro do pai do Leandro, mas ao invés de irmos para Gramadinho, fomos diretamente para a casa do Marquinhos. Uma quadra antes da sua residência, o avistamos na calçada, caminhando afobadamente. Ele estava justamente indo nos procurar. Então, nós três nos dirigimos até o bar do Fachi, que estava vazio aquela hora da manhã. Pedimos uma Coca-Cola de dois litros e nos sentamos em uma mesa no canto. Era hora de tentarmos entender o que havia acontecido na noite anterior.

            Contei a minha versão e eles ouviram tudo atentamente. Pareciam espantados, mas não exatamente surpresos, pois viveram situações parecidas. O segundo a fazer seu relato foi o Leandro. Ele disse que quando começou a correr no escuro, também gritou pelos nossos nomes, mas não nos ouviu respondendo em momento algum. Também não escutou nenhuma vez a nossas vozes chamando por ele. Marquinhos confirmou a mesma coisa. Todos nós estávamos chamado uns aos outros, mas não nos ouvíamos.

            Leandro contou que, tentando correr na direção contrária ao horrendo barulho de mata sendo despedaçada, acabou indo parar na estrada do outro lado do bosque, bem na hora em que vinha passando um carro. Ele fez sinal para que parasse, e ficou feliz ao ver que seus ocupantes eram conhecidos. Tratavam-se de quatro garotos de nossa idade, que frequentaram a escola conosco durante anos e moravam na comunidade de Linha Borges. Eles estavam muito bêbados, rindo e gritando dentro do carro, empolgadíssimos para ir ao bordel. Com certa dificuldade, Leandro tentou disfarçar o pavor e disse que seu carro havia tido uma pane e que, ao procurar ajuda no escuro, acabou se perdendo dos demais amigos. Com muito esforço, convenceu o alucinado quarteto a lhe dar uma carona de volta ao seu veículo.

            No curto trajeto, nada de anormal foi observado. Leandro sentou novamente ao volante e, ao dar partida, dessa vez o carro ligou normalmente. Ao verem o veículo funcionando, os garotos da Linha Borges partiram fazendo grande estardalhaço sem nem lhe perguntar se ele precisa de mais alguma coisa, fissurados que estavam da ideia de irem para a zona. Leandro então saiu de lá dirigindo atentamente, em busca de algum sinal de Marquinhos ou de mim. Obviamente, não nos avistou. Então, fez a mesma coisa que eu fizera anteriormente, passou na frente da casa do Marquinhos e da minha, onde viu tudo escuro e silencioso. Também chegou à mesma conclusão que eu: tentar ir para a cama e dormir. Um detalhe interessante é que ele disse que passava um pouco da meia-noite quando chegou em casa. Então, parece que esse insólito evento tem algo a ver com lapsos de tempo.

            Em seguida, foi a vez de Marquinhos contar sua história e ela foi a mais rápida e estranha de todas. Ele disse que estava correndo pela mata quando sentiu “como se fosse um vento quente” que o envolveu no momento em que caiu e começou a rolar pela encosta de um barranco. Então apagou. Quando acordou, o sol já estava começando a raiar. Ele estava sentindo uma tremenda dor de cabeça, como se estivesse com uma grande ressaca, e percebeu que havia sangue ressecado ao redor do seu nariz. Mas agora vem a parte mais espantosa: ele não estava nas margens do lago ou no meio do bosque, como seria de se imaginar, mas sim, no centro da cidade. No local onde hoje há o prédio da Unidade de Saúde de Ilópolis, nos anos 90 tinha outro bem menor, que também funcionava como Posto de Saúde, e na entrada do terreno havia um gramado com uma árvore perto da calçada. Foi ali que ele acordou. Então partiu rapidamente para casa – que ficava apenas um quarteirão de distância – com receio de que alguém pudesse vê-lo ali, deitado na grama, e o acusasse de estar bêbado ou drogado. Sem conseguir dormir, ficou andando de um lado para o outro do quarto, até os seus pais acordarem e ele poder sair, fingindo que havia passado a noite em casa.

            Nenhum de nós tinha qualquer teoria sobre o que havia acontecido. Ao longo dos anos, quando voltávamos a tocar no assunto, surgiam várias, mas, naquela manhã ensolarada de sábado, apenas estávamos felizes por estarmos vivos e saudáveis, e também por nossos pais não terem descoberto nada. Combinamos de guardar segredo, pois, em uma cidadezinha onde todo mundo se conhece, não queríamos virar motivo de chacota, uma vez que ninguém iria acreditar em nós.

            Com o tempo, eu descumpri o combinado e contei essa história para algumas pessoas – poucas, é verdade. Apesar do mal-estar por não ter mantido a palavra empenhada com meus amigos, por outro lado isso acabou sendo extremamente útil por dois motivos: em primeiro lugar, serviu para eu ver que muita gente poderia sim ter acreditado em nosso relato, pelo simples fato de que casos semelhantes já aconteceram com várias pessoas, como vim a ficar sabendo. Em segundo lugar, acabei encontrando os indivíduos certos para me ajudar a entender o que havia acontecido conosco naquela noite e também com tantos outros ao longo dos anos, pois o assunto já era “investigado” há muito tempo, embora sempre de forma extremamente confidencial e por um número muito restrito de conhecedores. Foi o que eu soube através deles que, pela primeira vez, irei relatar em seguida.

15 de mar. de 2021

NA MONTANHA DO PAVOR - PARTE FINAL


 

Por André Bozzetto Junior

 

            Para ler a PARTE I desta história, clique AQUI, e para ler a PARTE II clique AQUI.

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            Mesmo sem que fosse preciso trocar qualquer palavra sobre o acontecido, todos os fugitivos remanescentes sabiam perfeitamente o que aqueles gritos significavam. Intimamente, um toque de melancolia fustigou cada um deles, mas o desespero e a ânsia por manterem-se vivos fizeram com que logo suas atenções tornassem a ser direcionadas apenas para a fuga que poderia salvar suas vidas.

            Quase no mesmo instante em que o velho guiou o grupo até uma escarpa mais íngreme que as demais circundantes – e passou a escalá-la com uma desenvoltura surpreendente para alguém daquela idade – a chuva que ameaçava cair sobre o vale durante a maior parte do dia finalmente desabou de forma torrencial em meio a relâmpagos e trovoadas.

            Enquanto Milton e Cíntia seguiam o ancião de perto, apensar das inegáveis dificuldades provocadas pelos tropeços e resvalos, Rafael havia ficado um pouco para trás, pois além do tempo que perdeu cogitando ajudar Paulina, ainda estava sendo prejudicado pela chuva que rapidamente transformava em lama o sopé da escarpa e fazia com que ela se tornasse inconvenientemente escorregadia.

            – Desçam pela direita e me esperam na entrada daquele bosque! – disse Jaime ao casal de namorados, tão logo chegaram à parte superior do íngreme aclive – Eu vou ajudar o amigo de vocês a subir e depois encontraremos vocês lá.

            – Podemos ajudar também! – ponderou Milton.

            – Não! Vão à frente! – insistiu o velho – Eu conheço a região e logo alcançaremos vocês!

            Desistindo de insistir, Milton pegou Cíntia pela mão e a puxou no rumo indicado pelo ancião, tentando correr o mais rapidamente possível. Por sua vez, Jaime deitou-se na borda da encosta e estendeu o braço para baixo, na direção de Rafael, que se arrastava à duras penas até lá.

            – Segure a minha mão, rapaz! Vamos! – gritou Jaime, tentando fazer sua voz soar audível em meio às insistentes trovoadas.

            Sem titubear, Rafael estendeu seu braço para o velho e sentiu-se parcialmente aliviado ao constatar, instantes depois, que já estava do lado de cima da escarpa.

            – Até eu recuperar o fôlego, me responda uma coisa, vovô... – disse o rapaz, enquanto sentava-se ao lado do velho, que se encontrava tão ofegante quanto ele – Essa coisa que está nos seguindo é o tal rapaz que você procurava, certo?

            – Sim. – respondeu o ancião, em tom melancólico – É o José Cláudio. Ele é um lobisomem.

            – Um lobisomem?!

            – Isso mesmo. Ele já é assim há muitos anos, desde que foi contaminado quando voltava de um baile. Sempre que é noite de lua cheia eu o tranco em uma jaula para impedir que ele machuque alguém.

            - Ora, vovô, conte direito essa história! – esbravejou Rafael – Se você sempre o mantém trancado, então porque há tantos relatos terríveis sobre esse lugar?! Vai tentar me convencer de que ele não tem nada com isso?!

            – Bem, a verdade é que no início as coisas foram difíceis – disse Jaime, constrangido – Imagine se isso acontecesse com você, como se sentiria?! O pobre rapaz demorou a compreender a sua situação e finalmente optar por se trancafiar na jaula. Antes disso, infelizmente, algumas pessoas acabaram tendo o azar de topar com ele em noites de lua cheia.

            – Você continua me enrolando, velhote! – exclamou Rafael – Vamos deixar de enrolação e abrir o jogo! Eu e os meus amigos vimos dois cadáveres hoje à tarde! E eles não eram tão antigos assim!

            – Acontece que o José Cláudio fugiu uma vez! – respondeu o ancião, com voz trêmula – Ou melhor: duas! E em ambas às vezes pessoas inocentes acabaram sofrendo as consequências! É muito triste que isso tenha acontecido, mas ele não fez por mal! Acontece que, quando é lua cheia, ele simplesmente não consegue se controlar!

            – Não fez por mal?! – vociferou furiosamente o rapaz – Então quer dizer que ele acabou de devorar a minha namorada sem querer?! Ora, faça-me o favor! Se eu soubesse de tudo isso antes, teria metido dez tiros naquele desgraçado ao invés de um só!

            – Você deu um tiro nele?! – exclamou Jaime, surpreso.

            – Dei sim! – respondeu Rafael, sem disfarçar a irritação – Foi um acidente, mas agora me arrependo é por não ter dado outros!

            – Bem, isso explica porque ele não foi para casa ao entardecer. – ponderou o velho, pensativo – Quando chegou à hora de trancafiá-lo e percebi que ele não estava lá, logo entendi que algo devia ter acontecido.

            Antes que o diálogo pudesse ser levado adiante, um uivo terrificante ressoou em meio às trovoadas, deixando claro que a besta continuava no encalço de suas presas.

            – Merda! – esbravejou o rapaz, levantando-se apressadamente – Ele já está ali embaixo! E agora, qual é o plano, vovô?!

            Apesar da indagação do rapaz, Jaime nada respondeu. Apenas levantou-se dissimuladamente erguendo com sigo uma pedra tão grande que mal cabia em sua mão direita. Aproveitando-se do fator surpresa e da distração de Rafael – que estava tentando avistar em meio às sombras a criatura que os perseguia – o ancião aproximou-se do jovem e o atingiu com uma violenta pedrada na cabeça, tão forte que o fez tombar já desacordado e rolar vertiginosamente para baixo da escarpa.

            – Isso é por ter atirado no meu filho, seu garoto imbecil! Toda essa confusão é culpa sua! – vociferou Jaime, ao mesmo tempo em que, metros abaixo, as mandíbulas poderosas do monstro rasgavam a garganta de Rafael e partiam sua coluna vertebral.

 *

            Na entrada do bosque à direita da escarpa, Milton e Cíntia discutiam sobre o que deveriam fazer.

            – Não adianta nos enfiarmos no meio do mato com essa escuridão! – exclamou Milton – Precisamos esperar pelo velho!

            – Veja! – gritou Cíntia apontando para a esquerda – Não é o velho descendo para lá?!

            – É sim! – concordou o rapaz, após observar mais atentamente o vulto que se embrenhava rapidamente no bosque sem lhes destinar maiores atenções.

            Intrigados com a atitude de Jaime, os jovens decidiriam correr em seu encalço.

            – Jaime! Jaime! – gritou Cíntia – Você não ia nos chamar?!

            – Ah, sim! – respondeu o velho, sem muita convicção – Entrei no bosque tão apavorado que nem vi vocês.

            – Onde está o nosso amigo? – indagou Milton, andando logo atrás do ancião.

            – Ele já era. – respondeu Jaime, sem nem olhar para trás – Rolou do barranco e foi pego.

            – Meu Deus! Meu Deus! – exclamou Cíntia, caindo em prantos novamente.

            – Que merda! – gritou o Milton – E você não conseguiu ajudá-lo?!

            – Não. – concluiu secamente o velho, acelerando o passo.

            – E agora, o que faremos?! – insistiu o rapaz.

            – Vamos até o açude. – resmungou Jaime.

            – Açude?!

            – Sim. – confirmou o ancião – Um lago que é utilizado por um morador que vive do outro lado do morro para criar carpas. Lá há um pequeno barco a remo que é utilizado na pesca. Acho que ele poderá ser útil.

            – Não seria melhor tentar chegar até a sua casa, ou de algum outro morador da região?

            – Não dá tempo! – retrucou o velho – Ele nos alcançaria antes de chegarmos. Por isso vamos apelar para o barco. Acredito que, se conseguirmos remar até o meio do açude, ficaremos em segurança.

            Após poucos minutos de apressada caminhada, Jaime – que conhecia perfeitamente cada palmo da região – conduziu os apavorados jovens até a margem do pequeno lago. Naquele momento a chuva já havia cessado e a lua cheia voltava a encontrar brechas por entre as nuvens para lançar sua luminosidade fantasmagórica sobre a paisagem. Sem muito esforço, o velho localizou o pequeno barco amarrado a um palanque em uma minúscula enseada. Nervosamente, ele desprendeu a embarcação das amarras e a empurrou para a água.

            – Esse barquinho não é pequeno demais para três pessoas?! – indagou Cíntia, em meio aos soluços.

            – Acontece que ele vai conduzir apenas uma. – respondeu o ancião, abaixando-se para pegar um remo que se encontrava no assoalho do barco.

            Milton já estava abrindo a boca para questionar a afirmação do velho, mas não teve tempo de pronunciar sequer uma palavra. De maneira súbita e inesperada, Jaime virou-se na direção do rapaz e o atingiu no rosto com um violento golpe de remo.

            Com um grito abafado, Milton tombou na relva molhada e imediatamente sentiu o gosto de sangue lhe inundando a boca.

            – Mas o que é isso?! – gritou Cíntia, enquanto se agachava para amparar o namorado com uma expressão apavorada no semblante.

            – Isso é para vocês aprenderem, seus garotos estúpidos! – esbravejou o ancião, já a bordo do pequeno barco – Quem vocês pensam que são para atirar no meu filho?! Agora aguentem as consequências do que fizeram!

            – Seu velho filho da puta! – vociferou Cíntia, em prantos.

            Mesmo atordoado pelo golpe recebido, Milton levantou-se com a mão no rosto ensanguentado e tentou adentrar no açude ao encalço de Jaime, mas a embarcação já estava fora de alcance. Perplexo, o casal de namorados permaneceu imóvel por um instante, observando o ancião que se afastava remando rapidamente para o meio do pequeno lago, cuja placidez só era fustigada pela luminosidade esbranquiçada da lua cheia que refletia em suas águas.

            De repente, Milton agarrou Cíntia pela mão e a puxou com rispidez, conduzindo-a quase de arrasto através da pequena trilha que costeava o açude.

            – Para onde estamos indo?! – indagou a moça.

            – Para qualquer lugar longe daqui! – respondeu com dificuldade o rapaz, em função do rosto machucado – Não ouviu o barulho na mata lá atrás?! Aquela coisa já está vindo!

            Ao longo de um período que seria incapaz de precisar, Milton escoltou a namorada através da trilha que se afastava do lago e subia em direção a um barranco cuja encosta era totalmente recoberta por capim. Ele tinha certeza de que pelo menos uns dois dentes haviam se quebrado com o golpe desferido pelo velho e talvez até o maxilar. A dor em toda a sua face era intensa. O sangue continuava a escorrer de sua boca e a cada minuto que passava ele sentia-se mais fraco, mas, mesmo assim, procurava ignorar o mal-estar, os tropeços e as quedas para amparar Cíntia e tentar levá-la para um local seguro o mais rapidamente possível.

            Quando chegaram ao topo do aclive, os jovens avistaram uma luz proveniente do que parecia ser uma casa, localizada a uma distância não muito grande de onde se encontravam.

            – Veja! – exclamou a moça, apontando para o local de onde provinha a luminosidade – Vamos descer até aquela casa e pedir ajuda!

            Milton apenas assentiu com a cabeça e seguiu ao lado da namorada, ainda que de forma cada vez mais trôpega.

            Do outro lado do morro, o terreno era recoberto por capim apenas na parte mais próxima ao topo. Na medida em que desciam na direção da casa, os jovens se embrenhavam em uma área onde a mata era mais densa e as árvores de grande porte – inicialmente esparsas – tornavam-se cada vez mais frequentes e próximas umas das outras, fazendo com que, em certa altura, seus galhos e folhagens se emaranhassem a ponto de formar um verdadeiro túnel natural, através do qual o luar não conseguia penetrar.

            Em dado momento, Milton trombou de encontro ao tronco de uma árvore e caiu sentado. Tentou levantar-se de imediato, mas vacilou ao sentir que as forças já o abandonavam.

            – Que merda! – resmungou o rapaz, em um tom sussurrado e exausto – Não enxergo nada nessa escuridão!

            – É só continuarmos descendo em linha reta! – disse Cíntia, tentando motivar o namorado – Logo vamos atravessar esse bosque e então avistaremos a casa com facilidade.

            Milton queria dizer que sim e com isso manter a motivação da namorada, mas quando vislumbrou duas esferas avermelhadas e reluzentes aproximando-se rapidamente em meio a escuridão, tudo que conseguiu foi emitir um gemido de pavor que logo foi substituído por um lancinante grito de dor.

            Quando Cíntia percebeu, a criatura que ostentava aquele par de olhos rubros e demoníacos já havia saltado sobre seu namorado. Na escuridão, ela não enxergava quase nada, mas os urros vorazes emitidos pelo monstro e os berros desesperados que escapavam da boca ensanguentada de Milton não deixavam dúvidas sobre o que estava acontecendo. A moça permaneceu estática, gritando e chorando desesperadamente, incapaz de fazer qualquer coisa enquanto o rapaz era devorado vivo. Sua transtornada imobilidade só foi rompida no instante em que ela ouviu o barulho perturbador do que lhe pareceu ser algo robusto se partindo, no exato instante em que Milton emitiu um grito ainda mais forte e estridente do que os anteriores, para em seguida se calar. Nesse mesmo momento um líquido quente e viscoso espirrou de encontro ao rosto da moça e ela logo compreendeu do que se tratava.

            Saindo daquela espécie de transe que a mantinha imóvel, Cíntia desatou-se a correr ladeira abaixo em meio à escuridão. Na descida, trombou com árvores e pedregulhos, tropeçou em galhos e caiu por diversas vezes, mas, movida pelo intenso desespero, levantou-se após cada queda e, ignorando os ferimentos que maculavam seu corpo, prosseguiu correndo. Quando finalmente conseguiu sair da parte densa do bosque, constatou com um grito de satisfação que a casa que avistara do alto do morro já estava bastante próxima. Poucos minutos depois já se encontrava esmurrando a porta da residência e gritando por socorro.

            Após alguns segundos que lhe pareceram longos como a eternidade, a porta finalmente foi aberta e uma velha apareceu.

            – Querida, o que está acontecendo?! – indagou a anciã.

            – Tem um monstro lá fora! – gritou Cíntia, praticamente atirando-se para dentro da residência e fechando a porta detrás de si – Ele matou os meus amigos e agora está vindo atrás de mim!

            – Calma, minha menina! – disse a velha, em um tom sereno que não demonstrava nenhum espanto – Está vendo estas grades na janela e a tranca na porta? São de prata! Ele não pode entrar aqui. Fique tranquila.

            – Ah, então a senhora já sabe da existência dele! Mas o meu namorado ainda está lá fora! Eu preciso ajudá-lo!

            – Talvez só lhe reste ajudar a si mesma.

            Cíntia compreendeu o que a anciã quis dizer, mas naquele momento seus olhos vislumbraram uma espingarda presa na parede, logo acima da pia da cozinha e a esperança voltou a fustigar seu coração.

            – Me dê aquela arma! – ordenou a moça – Vou voltar para ajudar o meu namorado!

            – Talvez só lhe reste ajudar a si mesma. – repetiu a velha, ainda em um tom de voz condolente.

            – Então pelo menos eu vou encher de chumbo aquele filho da puta! – gritou Cíntia – Meu amigo deu um tiro nele e eu vou dar outro! Bem no meio da cara do desgraçado!

            – Seu amigo deu um tiro nele?! – questionou a anciã, surpresa.

            – Deu sim!

            – Mas e depois, o que aconteceu?!

            – Meu amigo atirou nele sem querer, mas atirou! Se soubesse da verdade certamente teria atirado mais! E depois, quando o monstro começou a nos perseguir, aconteceu o pior: um velho escroto disse que nos ajudaria a fugir, mas escapou sozinho de barco e nos deixou para trás! E ainda deu uma pancada com o remo no rosto do meu namorado!

            – Fugiu de barco?! – indagou novamente a velha.

            – Sim! E por culpa desse velho nojento o Milton foi pego! Agora temo que tenha sobrado apenas eu!

            – Sobrou apenas você?! – perguntou mais uma vez a velha, no mesmo tom de voz monótono.

            – Sim! – esbravejou Cíntia, irritada com as perguntas retóricas da anciã – Agora me dê aquela merda de arma, pois eu vou acertar as contas com aquele bicho filho da puta!

            – Certo, certo. – concordou a velha, finalmente retirando a espingarda do suporte na parede e entregando-a para Cíntia.

            Com a arma em mãos, a moça rapidamente precipitou-se porta afora.

            – Adeus! – disse a velha, voltando a trancar-se na segurança da casa.

            Cíntia nada respondeu, pois todas as suas atenções estavam voltadas para a criatura que naquele exato instante saia de dentro do bosque e seguia lentamente na direção da residência. Uma criatura enorme e de aspecto repulsivo, onde se destacavam os olhos avermelhados e perversos que reluziam à distância.

            Mesmo sem nunca ter empunhado uma arma antes, Cíntia apontou a espingarda na direção do monstro e – tomada pelo ódio – apertou o gatilho com convicção. Para a sua surpresa, apenas um suave estalo metálico seguiu-se ao seu gesto.

            – Meu Deus! – gritou a moça, em pânico – Essa porra de arma está descarregada!

            – É claro que está descarregada! – vociferou a velha em resposta, por detrás da porta da casa – Acreditou mesmo que eu permitiria que você atirasse no meu filho?!

            Cíntia pensou em todas as ofensas e xingamentos que conhecia e almejou despejá-los contra a anciã que a fizera cair em uma armadilha, mas não teve tempo de pronunciar uma palavra sequer antes que o lobisomem arrancasse a arma de suas mãos e a suspendesse no ar, agarrando-a pelo pescoço.

            Quando os gritos de dor e pavor da moça começaram a ecoar, deixando claro que o sangrento ritual de abate havia iniciado, a velha aproximou-se da janela e espiou para fora através de uma pequena fresta.

            – Aproveite bem, seu menino sapeca, pois amanhã você volta para a jaula! – exclamou a anciã, com um sorriso terno e maternal preenchendo-lhe os lábios.

 

Fim  

12 de mar. de 2021

NA MONTANHA DO PAVOR - PARTE II


 

Por André Bozzetto Junior

  

            Para ler a PARTE I desta história, clique AQUI.

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            Após o tiro, as garotas pararam de gritar e ingressaram quase que automaticamente em um estado de tenso silêncio, como se na expectativa do que estava por vir. Rafael baixou a espingarda e ficou imóvel, fazendo coro à tensão que dominava o grupo de forma tão intensa que parecia de sensação quase tátil. Depois de um intervalo de tempo impossível de ser precisado por qualquer um dos jovens, Milton pareceu sair do estado de choque que enrijecia a todos e caminhou lentamente na direção dos arbustos que ocultavam a visão do alvo abatido.

            – Meu Deus! – gritou ele, levando as mãos à cabeça e atraindo a atenção dos demais, que correram em sua direção.

            Tão logo se postaram ao lado de Milton, as garotas voltaram a gritar quase que tão estridentemente quanto antes, pois a visão de um rapaz desacordado com um ferimento de bala no peito deixava claro a elas que as surpresas trágicas que aquele dia lhes reservava estavam apenas começando.

            – Cristo! Matei um cara! – exclamou Rafael, ao constatar que o rapaz alvejado não respirava – O que vamos fazer?!

            – Vamos embora! – gritou Cíntia.

            – Temos que chamar a polícia! – emendou Paulina, também aos berros.

            – Chamar a polícia?! Está louca?! – retrucou Milton – Vamos ser presos!

            – Mas foi um acidente! Vamos explicar... – insistiu a moça.

            – E quem garante que alguém vai acreditar?! – intrometeu-se Rafael – Nossas barracas estão cheias de bebidas alcoólicas e de erva! Se nos obrigarem a fazer exames de sangue ou urina estamos ainda mais ferrados!

            – E podem achar que nós matamos também esses outros caras! – complementou Milton, apontando para os cadáveres ressecados estendidos a alguns metros abaixo.

            – Quem será que os matou? – perguntou Cíntia, em um tom de voz balbuciado e choroso que evidenciava o enorme transtorno pelo qual sua mente estava passando.

            – Provavelmente foi esse cara aqui! – exclamou Milton, apontado para o corpo do rapaz alvejado aos seus pés.

            – Ora, como você pode saber?! – retrucou Paulina.

            – E você viu mais alguém nessa montanha desde que chegamos?! – gritou Milton – Por que será que o único ser humano que avistamos ao longo do dia inteiro estava justamente aqui, na beira de um precipício oculto e cheio de ossos e caveiras ao redor?!

            – Isso explica também todos aqueles boatos sobre desaparecimentos... – ponderou Rafael – É tudo obra de um serial-killer... E, ao que parece, aqui está ele, mortinho da Silva.

            – Vamos jogar o corpo desse cara no precipício e dar o fora daqui! – decretou Milton – Depois basta nunca mais tocarmos no assunto e ponto final.

            – E ainda teremos a consciência tranquila, pois livramos o Morro Assombrado do responsável por tudo de ruim que andava acontecendo por aqui! – complementou Rafael.

            – Vocês estão loucos?! – gritou Paulina – Não há nenhuma garantia de que essa teoria estapafúrdia de vocês seja verdadeira! Está na cara que se trata apenas de uma desculpa para justificar o que fizemos!

            – Eles estão certos. – interveio Cíntia, com uma voz que, inicialmente, era pouco mais do que um sussurro, mas subiu de tom até tornar sua fala em uma sucessão de gritos histéricos e perturbados – Os meus pais vão ficar furiosos comigo se ficarem sabendo... E eu... E eu não quero ser presa! Não quero ser presa! Não quero ser presa! Não quero ser presa!

            Como se as palavras descontroladas da companheira servissem de aval para as suas intenções, Milton e Rafael entreolharam-se rapidamente e, de forma decidida, ajuntaram o corpo do rapaz e carregaram-no até a borda do precipício. Bastou uma rápida olhada lá para baixo para constarem que se tratava de um grande abismo, pois nem era possível enxergar o seu final, em partes também em função da vegetação que cobria parcialmente suas encostas e se adensava na medida em que o declive se tornava mais íngreme. Sem titubear, os rapazes balançaram o corpo para frente e para trás duas vezes e na terceira arremessaram-no com o máximo de força possível para dentro do precipício. Observaram quando o cadáver bateu contra a encosta duas vezes – amassando arbustos e fazendo pedras caírem – para depois rolar sobre uma saliência rochosa, ganhar embalo e despencar no vazio até sumir de vista. Aguardaram em silêncio com a mórbida expectativa de ouvir o barulho do corpo estatelando-se de encontro ao solo lá embaixo, mas nenhum som mais enfático chegou aos seus ouvidos. Por um instante, Milton temeu que o cadáver pudesse ter ficado enroscado na vegetação em algum ponto do declive, mas decidiu não compartilhar dessa desconfiança com o amigo. Com sensação de dever cumprido, os dois jovens retornaram ao encontro das moças.  

            – Agora sim vamos embora. E depressa! – decretou Milton.

            – E bico calado. Para sempre! – complementou Rafael.

            Cíntia apenas consentiu com um aceno de cabeça, enquanto que Paulina tentou protestar, mas Rafael simplesmente pegou-a pelo braço e puxou-a na direção da encosta do barranco. Os jovens realizaram em silêncio a escalada de volta até a parte superior do morro e, em função da tensão e da escuridão cada vez mais acentuada, a subida foi bem mais lenta e dificultosa do que gostariam.

            Quando finalmente chegaram de volta ao acampamento, saciaram a sede que já os perturbava e imediatamente começaram a desmontar as barracas. Nesse momento, o sol já havia se posto por completo e a visão panorâmica proporcionada pela localização no alto do morro permitia aos amigos presenciar o antagônico espetáculo natural que se dava acima de suas cabeças. De um lado as nuvens tempestuosas já se encontravam bastante próximas, e os relâmpagos e trovoadas que realçavam sua aproximação deixavam claro que a chuva despencaria em breve. Do outro lado, a lua cheia já começava a raiar pálida e enorme por detrás da montanha, emitindo uma luminosidade que ao mesmo tempo realçava os contornos da paisagem e os tornava inquietantemente sinistros.

            Mal haviam começado a encher suas mochilas e os quatro jovens perceberem, com grande surpresa e desconfiança, a aproximação de um homem que vinha rapidamente em sua direção.

            – Meu Deus! Quem será aquele? – exclamou Cíntia.

            – Logo saberemos. – disse Milton – Rafael, fique com a espingarda ao alcance das mãos. E vocês, mocinhas, tratem de ficar de bico calado!

            Na medida em que o sujeito se aproximava, o grupo pode constar que se tratava de um homem de idade avançada, praticamente idoso. Possui cabelos e bigode grisalhos e usava roupas claramente destinadas ao trabalho na roça. Aparentava ser um morador da área agricultável do morro, a leste, e seu semblante tenso denotava indisfarçável preocupação.

            – Minha nossa! – exclamou o desconhecido tão logo chegou ao acampamento – O que vocês estão fazendo aqui?!

            – Estávamos acampando, mas como percebemos que está vindo um temporal, decidimos ir embora. – respondeu Milton, tentando disfarçar a apreensão.

            – E o senhor, quem é? – perguntou Rafael, com desconfiança.

            – Jaime. – respondeu o ancião – Moro do outro lado do morro e estou procurando por um rapaz.

            – Um rapaz?! – exclamou Paulina, arrependendo-se em seguida pelo tom de voz suspeito.

            – Sim. Um rapaz mais ou menos da idade de vocês, alto e de cabelos pretos. – explicou Jaime.

            – Não vimos ninguém. – respondeu Rafael, com rispidez.

            – É verdade. – complementou Milton, o senhor é a primeira pessoa que avistamos aqui no morro.

            – Que loucura! – exclamou Jaime, como se estivesse pensando em voz alta – isso não poderia estar acontecendo. De novo não!

            – Do que o senhor está falando? – questionou Cíntia.

            – Deixem para lá. O que importa é que vocês precisam sair daqui agora mesmo! – respondeu o ancião, apontado para a trilha que conduzia para o declive.

            – Sim, sim... – concordou Milton – Vamos só recolher nossas coisas e...

            – Não há tempo! – interrompeu Jaime, praticamente gritando – voltem amanhã de manhã para buscar suas coisas. Agora vocês precisam ir embora. E depressa!

            Como se para sublinhar de forma tetricamente enfática as palavras carregadas de tensão proferidas pelo velho, um uivo sinistro e enregelante ecoou de algum lugar do morro não perfeitamente identificável, mas que era inegavelmente próximo.

            – Jesus Cristo! – gritou Jaime – Tempo esgotado!

            – Mas de que merda o senhor está falando?! – indagou Rafael, com grande irritação.

            – Que som mais horrível foi aquele?! – perguntou Cíntia, prestes a entrar novamente no estado de descontrole que a afligiu anteriormente.

            O ancião nem sequer ouviu os questionamentos dos jovens, pois já estava se afastando do acampamento de forma extremamente apressada, praticamente correndo.

            – Vamos! Vamos! – gritava Jaime, olhando para trás e gesticulando para que o grupo o seguisse – Com certeza ele já sabe que estamos aqui! Logo, logo vai aparecer!

            O pavor expressado pelo velho ao proferir essas frases era tão claramente perceptível que – aliado a sua atitude inusitada de sair correndo de forma súbita – acabou por contagiar os jovens com uma sensação de perigo iminente, de tal forma que, segundos depois, todos eles estavam correndo também, acompanhando o ancião na fuga de algo que desconheciam, mas que certamente deveria ser terrivelmente ameaçador.

            Provavelmente o grupo de amigos sentir-se-ia aliviado em saber que essa foi a atitude mais sensata que tomaram até então naquele dia, pois, ao correrem, ganharam alguns minutos preciosos que impediram que todos fossem brutalmente trucidados pela monstruosa criatura que emergiu instantes depois da encosta do barranco recoberta de mato que havia bem próxima ao acampamento.

            Quando se sentiu invadida por uma intempestiva curiosidade e decidiu olhar para trás em meio à correria, Paulina vislumbrou algo que preferia jamais ter visto ou sequer sabido que poderia de fato existir. Uma criatura enorme, e de aparência tão desconhecida quanto horrenda, corria com determinação no encalço do grupo, há algumas dezenas de metros de distância. A apavorante visão a perturbou de tal forma que ela acabou tropeçando nas próprias pernas e desabando pesadamente ao chão, gritando de imediato por socorro.

            Enquanto os outros continuaram correndo, Rafael parou e voltou-se para ajudar a namorada. Quando avistou a besta que se aproximava com grande velocidade, o rapaz ficou intensamente perturbado. Em meio ao espanto perante a visão terrificante, lamentou intensamente a própria estupidez. Lamentou por não ter acreditado na fama de maldito daquele lugar, lamentou por ter se apavorado a tal ponto de sair correndo do acampamento sem ao menos levar a espingarda consigo e – principalmente – lamentou pelo destino de Paulina, pois compreendeu que o monstro estava próximo demais e ele nada poderia fazer para salvá-la. Com o coração apertado por uma sensação de pesar e até certa dose de vergonha mediante a própria impotência, Rafael deu às costas para a namorada e desatou-se a correr novamente na direção tomada pelo velho e os demais amigos.

            Chocada e incrédula diante da atitude covarde e desprezível do homem que ela pensou que a amava, Paulina não pronunciou sequer uma palavra. Apenas duas lágrimas melancólicas escorreram dos seus olhos uma fração de segundos antes de a besta saltar sobre seu corpo emitindo um urro triunfal. Então foram os seus gritos que ecoaram pela noite, consolidando o clima de terror que se abatia sobre o vale e motivando o grupo de fugitivos a correr ainda mais desesperadamente.
 
Continua...