19 de abr. de 2021

OS DESEJOS PROIBIDOS

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Valdemar aproximou-se da borda da muralha e olhou para o lado de fora. Lá embaixo havia uma charrete parada diante do portão. Ele logo reconheceu o homem que segurava as rédeas da condução. Era Juvenal, seu irmão mais velho.

            – Abram essa coisa! Depressa! – esbravejou Juvenal, impaciente.

            Poucos segundos depois, o pesado e rústico portão de cedro foi aberto e a charrete adentrou o enorme pátio cercado da propriedade. De dentro do coche, Helena observava com grande interesse a alta muralha construída com robustas toras de madeira e que formava um círculo em torno do terreno no qual se encontravam a casa grande, a residência dos empregados, o estábulo, o chiqueiro, o galinheiro e o celeiro.

            – Fez tudo que te pedi? Mandou embora as mulheres? – perguntou o ansioso Juvenal, tão logo desceu da charrete.

            – Sim – respondeu Valdemar. – Rodrigo levou a mãe, as irmãs e também as empregadas para a fazenda do Coronel Teodoro. Saíram ao amanhecer, então já devem estar chegando lá.

            – Ótimo! – exclamou o visitante. – E quantos homens ficaram aqui?

            – Além de mim e do José, ficaram mais dois.

            – E os outros peões?

            – Um foi com o Rodrigo levar as mulheres, e os outros dois estão no campo cuidando do gado.

            – A que distância eles estão?

            – A uns dez quilômetros no sentido leste.

            – Quem bom! Acho que, se ficarem lá, não correm perigo.

            Valdemar se aproximou de Juvenal, colocou a mão sobre seu ombro e falou em tom bastante singelo:

            – Meu irmão, sabe que eu te respeito muito... Fiz tudo que me pediu assim que recebi sua mensagem... Mas agora creio que mereço saber o que está acontecendo.

            – Certo, Valdemar, tem razão. Mas antes, será que tu terias um bom vinho para tirar a poeira da garganta do teu velho irmão?

            – Mas é claro! Tenho no porão alguns garrafões que vieram direto de Caxias do Sul! Vamos até a casa grande!

            – Muito bem! Mas antes precisamos acomodar Helena. Ela está no coche.

            – Helena?! Mas por que a trouxe?!

            – Prometo que depois te explicarei tudo... – disse Juvenal, com indisfarçável constrangimento.

            Valdemar consentiu com um aceno de cabeça e em seguida se dirigiu ao rapaz que conversava com os peões perto do portão.

             – José, venha até aqui! Cumprimente seu tio Juvenal e depois leve a sua prima até a cozinha da casa grande. Faça para ela um bom chimarrão e prepare algo para comer.

            O jovem cumprimentou o tio de maneira discreta e respeitosa, seguindo logo depois na direção da charrete para chamar Helena.

            Valdemar ordenou que os peões desatrelassem os cavalos da charrete e levassem-nos ao estábulo. Em seguida, seguiu com Juvenal na direção da casa grande.

            Do lado de fora da grande muralha de madeira, alguém permanecia oculto em meio à vegetação, esperando pacientemente pelo por do sol.

 *

            Cheio de agitação, Juvenal caminhava em círculos defronte a janela da sala de estar, bebericando uma taça de vinho. Valdemar estava sentado diante dele, observando-o com indisfarçável desconfiança.

            – Tudo bem, meu irmão... – disse Juvenal. – Vou te contar tudo, desde o início.

            – Até que enfim, tchê! Estou ansioso para saber que diabo está acontecendo! – exclamou Valdemar.

            – Pois que seja – consentiu Juvenal – Essa barbaridade toda começou a cerca de um mês, naquela semana em que fui caçar com os rapazes. Creio que os peões da minha fazenda estavam entretidos demais com a lida do campo e as empregadas não foram atenciosas como pedi, pois em uma tarde em que Helena estava sozinha no pomar, um vivente apareceu não sei de onde e se aproximou dela. Tu conheces muito bem a Vanda, minha esposa... Sabe que ela não é prendada como se esperaria. Decerto não preveniu direito a guria para casos como este.

            – Meu irmão! Tu estás querendo dizer que... Que esse sujeito desonrou a minha sobrinha?!

            Juvenal estava tão constrangido que sequer conseguia olhar no rosto do irmão. Apenas consentiu com um aceno de cabeça.

            – Jesus Cristo! – exclamou Valdemar, levantando-se da cadeira. – Mas quem é esse vivente que parece não ter medo de ser castrado?!

            – Parece ser um estrangeiro, um italiano que surgiu por aquelas bandas não se sabe a troco de quê – disse Juvenal. – Mas isso não é o pior, meu irmão... Para que tu tenhas ideia da situação, te conto que depois daquela tarde a desgramada da Helena começou a sair às escondidas todas as noites para se encontrar com sujeito no meio do mato. Quando os peões descobriram, arrastaram a guria de volta para casa e preveniram o vivente para que sumisse da região antes que eu voltasse da caçada.

             – Pois deviam ter mandado chumbo nele ali mesmo!

            – Concordo – disse Juvenal, enchendo sua taça de vinho. – Mas o negócio foi ficando cada vez pior. Na manhã seguinte essa mesma dupla de peões que tinha enxotado o estrangeiro apareceu morta na beira do rio. Os dois homens estavam estraçalhados, como se tivessem sido atacados por uma onça. Uma onça gigante, pelo tamanho do estrago. Quando eu e fiquei sabendo do ocorrido, dei uma surra na sem-vergonha da Helena e mantive-a trancada no quarto, dia e noite. Fiquei tão furioso que cobri de bofetadas também a Vanda, pra ver se ela aprendia a ser uma mãe mais atenciosa. Na noite seguinte, o tal sujeito apareceu no gramado diante da minha casa! Quando uma das empregadas me avisou, saí atirando em companhia de um peão e do meu filho Maurício. Acho que não acertamos nenhum tiro, pois antes de desaparecer no meio do mato, ele ainda gritou com aquele sotaque irritante que iríamos nos arrepender muito por impedi-lo de se aproximar da Helena. De lá pra cá ele não foi mais visto, mas outros dois peões apareceram mortos, além de doze cabeças de gado.

            – Mas que barbaridade! – exclamou Valdemar – Tu achas que isso é obra do sujeito? Será que ele também tem alguma coisa com o caso de todas aquelas minhas vacas que foram despedaçadas há meses atrás?

            – Olha, meu irmão... Vou te dizer o que penso... – sussurrou Juvenal, se aproximando de Valdemar. – Aquele vivente não parece um sujeito normal! Quando vi os olhos dele... Pareciam olhos de bicho, não de gente!

            – Eu não entendo o que tu queres dizer!

            – Estou começando a acreditar que o estrangeiro tem parte com o diabo!

            – Parte com o diabo?!

            – Sim! Os antigos diziam que quem fazia pacto com o capeta ficava endemoniado... Meio homem e meio... Outra coisa. Entende porque pedi pra levar embora as mulheres e segurar contigo alguns homens armados?  Acho que o bicho ruim vai aparecer, procurando pela Helena... Então a gente enche ele de chumbo!

            – Mas, meu irmão... Tu acreditas mesmo nisso?

            – Valdemar, pense um pouco! Uma onça poderia ter matado três vacas, ou talvez quatro. Mas somando as minhas e as suas já foram mais de vinte, em poucos meses. E os quatro homens?! Estavam despedaçados, com as tripas espalhadas pelo chão e os ossos das pernas roídos! Uma onça não faz isso!

            – Tu não pensaste em ir até o povoado para falar com o padre Rômulo?

            – Padre Rômulo?! – exclamou Juvenal, com espanto. – Meu irmão, quando foi a última vez que tu foste ao povoado?

            – Bem, foi antes de construirmos a muralha. Acho que faz mais de três meses.

            – Percebe-se! Então, tenho que te dar a infeliz notícia: O padre Rômulo está desaparecido há várias semanas. Sumiu enquanto atravessava a floresta. Estava indo à minha casa, depois que eu lhe enviei uma mensagem dizendo que precisava encontrá-lo com urgência.

            Valdemar permaneceu alguns instantes calado e imóvel, como se pasmado com as informações que recebera. Em seguida, virou-se e tomou o rumo do interior da residência.

            – Aonde tu vais? – perguntou Juvenal.

            – Pegar a minha espingarda! – respondeu Valdemar, sem olhar para trás.

            Juvenal permaneceu na sala, observando através da janela a escuridão da noite se apossando dos últimos resquícios do dia que se esvaia em tons avermelhados. Poucos minutos depois, quase no mesmo instante em que Valdemar retornou trazendo sua espingarda, um dos peões entrou pela porta principal de forma alvoroçada.

            – Coronel Valdemar! Um vivente surgiu de dentro do mato e está plantado lá na frente do portão! – disse o ofegante empregado.

            Valdemar e Juvenal se entreolharam afoitos e saíram em direção ao pátio, seguidos pelo peão. De forma apreensiva, subiram as escadas que levavam até a borda interna da muralha e se posicionaram ao lado do outro empregado que permanecia lá, olhando com desconfiança para fora.

            – É ele! É o desgraçado do qual eu estava falando! – gritou Juvenal, tão logo vislumbrou o homem que se encontrava do lado externo.

            Diante do portão, estava parado um rapaz que em nada se assemelhava aos sujeitos que estavam do outro lado da grande divisória de madeira. Era loiro, tinha olhos azuis e vestia roupas aristocráticas, bem diferentes das tradicionais pilchas e bombachas tão usuais entre os habitantes da região. Também chamava a atenção uma grande cicatriz que ele ostentava no lado esquerdo da face.

            – Coronel Juvenal! De nada adianta o senhor achar que pode esconder Helena de mim... – disse o desconhecido, com um sotaque tão carregado que chegava a dificultar a compreensão de suas palavras. – Nós temos uma ligação muito forte. Deixe-a vir até mim, para o bem de todos que se encontram detrás desta muralha.

            – Mas que vivente mais lacaio! – gritou Valdemar, engatilhando sua espingarda – Além de desonrar a minha sobrinha ainda tem coragem de vir até aqui desafiar o meu irmão e ameaçar a minha gente?!

            Nesse instante, uma súbita gritaria fez com que as atenções se voltassem para o pátio interno da propriedade. Era Helena que corria na direção do portão, sendo perseguida pelo atrapalhado José, que tentava contê-la.

            – Ângelo! Ângelo, meu amor! – exclamava a moça. – Abram esse portão e me deixem sair!

            Do lado de fora da muralha, o rapaz começou a rir de forma provocativa tão logo ouviu a voz da moça chamando pelo seu nome. Possuído pelo ódio, Valdemar não hesitou, apontou sua espingarda na direção do indesejado visitante e atirou. A bala atingiu Ângelo no ventre, fazendo-o gritar e curvar-se levando as mãos ao ferimento, de onde já começava a verter o sangue que manchava de vermelho a sua camisa branca. Cambaleante, ele correu da forma mais rápida que pode para dentro da mata.

            – Coronel Valdemar! Deixe-nos ir atrás daquele verme! – exclamou um dos peões.

            – Sim, vão! – ordenou o patrão. – E de preferência tragam o sujeito vivo para que a gente possa castrá-lo antes de cortar a sua garganta! Ele vai ver o que acontece com quem se mete com as mulheres da nossa família!

            Com rapidez, os dois empregados desceram as escadas, abriram o pesado portão e saíram empunhando suas armas no encalço do fugitivo. Segundos depois já haviam desaparecido em meio à escuridão da mata.

            A dupla de irmãos dirigiu-se então até Helena, que naquele momento chorava de forma estridente, sendo amparada por José.

            – Sua rapariga desgramada! – gritou Juvenal, atingindo a filha com uma forte bofetada no rosto. – Será que nunca mais vai parar de me fazer passar vergonha?!

            Com a violência do golpe, a moça caiu ao chão levando as mãos ao rosto e chorando de forma ainda mais desesperada.

            – José, pegue a sua prima e leve-a para quarto de visitas. Confira se as janelas estão bem trancadas e passe a chave na porta! – ordenou Valdemar.

            O rapaz obedeceu a ordem do pai de imediato, ajudando Helena a se levantar e conduzindo-a para o interior da casa grande. Juvenal observava a cena sem conseguir disfarçar o grande constrangimento que o afligia.

            – Fique tranquilo, meu irmão! – disse Valdemar, colocando a mão sobre o ombro de Juvenal. – A Helena é teimosa feita uma égua xucra, mas logo a gente a amansa. E quanto ao estrangeiro, pode ter certeza que ele é um homem comum, igual a nós! Com uma bala no bucho ele não vai longe. Logo os peões vão voltar trazendo ele de arrasto e então veremos o quão macho ele é com um facão no meio dos bagos!

            – Ainda não estou convencido disso. – murmurou Juvenal, observando o clarão da lua cheia que começava a raiar por detrás das colinas conferindo um tom suave e prateado à paisagem dos pampas.

 *

            No interior da casa grande, José já havia acomodado Helena no quarto de visitas e conferido as janelas. Estava prestes a sair e chavear a porta por fora, conforme a orientação do pai, quando a moça – que até então permanecera calada e cabisbaixa – apressou-se em sua direção.

            – Primo José, posso te fazer uma pergunta? – indagou Helena, em um tom de voz suave e delicado.

            – Claro, prima. O que é? – disse o rapaz, de forma encabulada.

            Helena deu mais dois passos na direção de José, encarando-o de forma ostensiva e posicionou seu rosto a poucos centímetros do dele.

            – Tu já andas te iniciando com as empregadas?

            O rapaz enrubesceu com a pergunta da prima. Sentiu-se muito constrangido com sua ousadia e petulância ao tocar em um assunto como aquele de forma tão direta. Mas, ao mesmo tempo sentiu-se também invadido por uma grande excitação. Desde que Helena chegara ele tinha reparado em como ela havia se tornado uma moça extremamente sensual, onde os olhos verdes e os longos cabelos castanhos conferiam um realce todo especial à sua beleza. Naquele momento, José estava convencido de que homem algum ficaria imune aos seus encantos, e com ele não seria diferente.

            – O que é isso, prima?! Deixe de fazer pergunta besta! – exclamou José, tentando em vão não deixar transparecer o quanto estava encabulado.

            De forma brusca, Helena apoiou sua mão esquerda no peito do rapaz, empurrando-o contra a parede, ao mesmo tempo em que introduzia a mão direita entre as suas pernas. Em seguida, a moça encostou seus lábios de forma lasciva na orelha do aparvalhado primo e sussurrou:

            – Ah, José, tu não queres fazer da tua prima a tua mulherzinha...?

            O contato da pele macia e o perfume adocicado dos cabelos da moça contribuíram de forma decisiva para romper a resistência do desconcertado rapaz. No instante seguinte os dois já estavam sobre a cama, compartilhando da tarefa de arrancar o vestido o mais rapidamente possível do corpo de Helena.

 *

            Próximos ao portão, Valdemar e Juvenal fumavam e caminhavam em círculos, de forma impaciente e apreensiva.

            – Não entendo porque estão demorando tanto! – exclamou Valdemar. – ferido do jeito que estava, aquele peralta não poderia ter ido muito longe!

            – Eu te disse, meu irmão! – retrucou Juvenal. – O sujeito não é normal!

            Como se endossando esta última afirmação, naquele exato instante uma série de gritos angustiantes começou a ressoar do lado de fora da muralha.

            – Coronel Valdemar! Coronel Valdemar, abra o portão, pelo amor de Deus! – suplicava a voz vinda de fora.

            Sem perder tempo, os irmãos abriram o robusto portão e vislumbraram diante de si a terrificante visão de um dos peões que se aproximava rastejando, repleto de lacerações, coberto de sangue e sem parte da perna direita, que havia sido mutilada na altura do joelho. Faltavam-lhe também alguns dedos de ambas as mãos.

            – Aquele gringo é o tinhoso, Coronel! É o tinhoso! – exclamava o homem, com as últimas forças que lhe restavam – Se o senhor visse o que ele fez com o Arlindo...! Que Deus os proteja, porque ele está vindo...! Ele está...

            Incapaz de resistir por mais tempo, o peão exalou seu último sopro de vida e calou-se para sempre. Apavorados, os irmãos entreolharam-se por uma fração de segundos e correram para o lado interno da muralha. Estavam tão apressados e concentrados em trancar o portão que sequer se preocuparam em arrastar o corpo do empregado para dentro.

 *

            No interior da casa grande, o quarto de hóspedes fervilhava de desejos e luxúria. Com seu corpo quente e suado colado ao de José, Helena não cessava de falar-lhe ao ouvido todas as excitantes idéias que lhe vinham à mente:

            – Primo... Tu vais fazer comigo tudo aquilo que o Ângelo faz? Tu vais, primo...?

            José não se preocupava em responder, pois estava imerso em um turbilhão de sensações tão intensas que inebriavam quase que por completo sua racionalidade. Porém, ele teve a vaga impressão de ter percebido algo diferente no tom de voz da prima. Algo inquietantemente diferente.

            – Tu vais me morder, primo? Vais me morder do jeito que o Ângelo me morde...?

            Essa última frase soou tão grave e áspera aos ouvidos de José que ele chegou a ter um sobressalto. Abriu os olhos e, de forma impulsiva, segurou Helena pelos ombros e afastou-a do seu corpo. Foi somente nesse momento que ele prestou atenção nas cicatrizes de mordidas que ela possuía na base do pescoço, no seio esquerdo, na barriga e na parte interna das coxas. Mas isso ainda não era o mais assustador. Sob a tênue luz do luar que entrava através dos vidros da janela, o perplexo rapaz viu a prima se converter em algo inumano e horrendo, que em nada se assemelhava com a moça sedutora e deslumbrante com quem ele havia se deitado alguns minutos antes.

            O monstro que antes fora Helena saiu de cima da cama, que começava a ceder sob o seu peso, e emitiu um urro ameaçador na direção de José. Naquele momento o rapaz já estava com lágrimas nos olhos e, mesmo estando nu, se precipitou para o corredor na intenção de chegar até o seu próprio quarto, onde costumava deixar uma de suas armas. Porém, não conseguiu dar mais do que três ou quatro passos antes que o lobisomem o alcançasse e dilacerasse sua garganta com uma única e vigorosa mordida, que fez com que seu sangue espirrasse de encontro às paredes e manchasse de vermelho os antigos retratos de família que ali se encontravam emoldurados.

 *

            Do lado de fora da casa grande, Juvenal e Valdemar não ouviram nem os urros do monstro e nem o grito de agonia de José, pois estavam entretidos demais com os barulhos não menos sinistros que vinham do outro lado do portão.

            – Virgem Santíssima! Aquela coisa já está ali fora! – exclamou Juvenal, cheio de horror.

            – Seja lá o que for, pelos barulhos deve estar comendo o corpo do peão! – assentiu Valdemar, igualmente terrificado.

            – Precisamos de mais armas! Rápido, tchê!

            – Sim! Vamos até a casa grande chamar o José e pegar uma espingarda pra ti também!

            Os dois homens correram na direção da casa principal. Quando estavam a pouco mais de dois metros de seu objetivo, a porta da frente da residência veio abaixo e através dela surgiu o lobisomem. Os irmãos ficaram pasmos e sem ação diante da terrificante visão.

            – Cristo! O que é isso?! Como é possível?! – exclamou Valdemar, um segundo antes de o monstro atingi-lo com uma patada que lhe arrancou a espingarda das mãos e em seguida com outra tão violenta que dilacerou seu rosto de tal forma que os ossos da face ficaram descarnados e expostos.

            Ao vislumbrar o corpo do irmão tombar sem vida, Juvenal ansiou sair correndo, mas não passou disso, um inútil anseio. O lobisomem agarrou-o pelo pescoço, suspendendo-o no ar e depois o arremessou à distância, fazendo-o estatelar-se no chão. Antes que o atordoado homem pudesse se levantar, a besta fechou suas garras poderosas em torno do seu tornozelo direito e saiu arrastando-o na direção do portão da propriedade que, naquele instante, já começava a ceder sob as pancadas da criatura que o golpeava com violência pelo lado de fora.

            Sem largar a perna de Juvenal, que gritava em desespero, o lobisomem que o segurava ajudou a atacar o portão, de forma que dentro de poucos instantes a robusta estrutura não resistiu às avarias e tombou sob o impacto dos golpes. O luar iluminou então o tétrico momento em que os dois monstros ficaram frente a frente, entreolharam-se com afeição e depois voltaram suas atenções para o apavorado homem que ali se encontrava, a mercê de sua fúria voraz.

            A partir de então as bucólicas paisagens noturnas dos pampas gaúchos foram invadidas por uma bizarra e intensa sinfonia de gritos e uivos que ecoaram para além das árvores seculares e campos de pastos verdejantes, chegaram até as propriedades vizinhas e ajudaram a alimentar os boatos sobre pessoas que se transformavam em lobisomens e vagavam por entre as sombras atacando incautos nas noites de lua cheia.

 

* Conto publicado originalmente no livro Amor Lobo - Crônicas de Amor, Sangue e Lobisomens, de 2013.     

16 de abr. de 2021

O NOVO MORADOR

 

 

Por Adriano Siqueira

 

            O apartamento 213 estava com um novo morador. O rapaz tinha aproximadamente 33 anos e usava roupa social. Ele andou pelos apartamentos do seu andar para se apresentar aos vizinhos. Muitos acharam o rapaz estranho por ter cicatrizes profundas no rosto. 
 
            Quando ele bateu na porta do último apartamento para se apresentar, um garoto aparentando 10 anos abriu a porta e se assustou. Correu para dentro gritando que o caçador apareceu.
 
            O casal e uma adolescente de 17 anos viram ele sorridente na porta. Mandaram ele ir embora, mas o rapaz da cicatriz só sorriu e disse: "Vocês já me causaram problemas demais". Empurrou toda a família para dentro da casa e trancou a porta.

            Tirou o cinto da sua calça e movimentou várias vezes até que ficou reto e endurecido como uma estaca de madeira pontuda. Era uma arma da sua agência de caçadores. Enfiou no coração do homem de 40 anos e ele gritou enquanto seu corpo virou poeira. "Maldito seja!" foram suas últimas palavras. A mulher segurou o rapaz enquanto a adolescente, com suas unhas afiadas rasgou a sua barriga. O rapaz colocou a mão no bolso da sua calça e puxou um frasco de plástico bem sensível e arrebentou na cara da mulher que o soltou com rapidez e começou a gritar em agonia com seu rosto todo queimado pela água benta. Ele recuperou a sua barra pontuda e enfiou no coração dela.
 
            A adolescente mostrou seus caninos pontiagudos e correu em direção ao seu pescoço. O rapaz chutou uma mesa em sua direção que a desequilibrou e caiu atordoada. O rapaz agiu e enfiou a barra no seu coração. Ela gritou muito antes de virar poeira.
 
            Ainda faltava o garoto de 10 anos. Ele deveria estar em algum lugar na casa escondido. O rapaz tinha que destruí-lo antes dos vizinhos descobrirem o que estava acontecendo. Abriu a porta do quarto do garoto e o viu sentado na cama jogando videogame. Ele se aproximou vagarosamente e o garoto olhou para ele e depois voltou a jogar.
 
            Os dois olharam a tela do jogo. O rapaz perguntou se faltava muito e o garoto respondeu dizendo que era a ultima fase. Ele sentou ao lado do garoto e ficou lá paciente até ele terminar.

14 de abr. de 2021

A REVELAÇÃO KYNGÁ

 

                                                                    

 Por André Bozzetto Junior

 

            – Ora, mas que surpresa agradável! Vini! Meu velho amigo Vinicius! – exclamou Roberto ao abrir a porta de forma receptiva.

            – Olá, Roberto. Eu estava passando casualmente por aqui e vi que tinha luz na casa. Então resolvi parar e pedir como está a pequena Taís.

            – Mas claro! Entre, entre! Você não vai acreditar: a Taís está ótima! Completamente curada!

            – É mesmo?! Graças a Deus! Então todos esses meses de quimioterapia em Porto Alegre trouxeram resultado...

            – Na verdade a quimioterapia ajudou pouco. A cura estava em outro lugar. Mas, sente-se! Aguarde um minuto até que pego algo para bebermos.

            Enquanto Roberto se afastava, Vinicius não pode deixar de perceber alguns nuances estranhos em seu comportamento. Ele estava agitado, se movendo de forma quase frenética e falando em um tom de voz que era ao mesmo tempo alto e apressado, evidenciando uma empolgação que não era comum a sua habitual conduta discreta e austera. “Deve estar exultante em função da recuperação da filha”, pensou.

            Roberto retornou trazendo dois copos de uísque. Entregou um nas mãos de Vinicius e sentou-se na poltrona diante dele.

            – Vini, vou lhe contar algo incrível! – disse o anfitrião, com um grande sorriso nos lábios e um brilho inquietante no olhar – Você não vai acreditar no que eu descobri! Lembra-se dos tempos de faculdade, quando comentávamos sobre os índios Kyngá?

            – Mais ou menos. Lembro de algumas especulações que foram levantadas em meio às discussões antropológicas. Pelo que eu sei trata-se de uma lendária tribo de guerreiros nômades que vagava por toda a região meridional. Parece-me que seria uma derivação dos Kaingang.

            – Não! – retrucou Roberto, com certa rispidez – Apenas o tronco linguístico é o mesmo. É um grupo completamente diferente. Tanto que enfrentou os Kaingang e os Guarani na “Grande Guerra dos Pampas”, que ocorreu antes da chegada dos espanhóis.

            – Pode ser... – disse Vinicius, com constrangimento – Você sempre se interessou mais pelo estudo dos povos indígenas do que eu. Mas, de qualquer forma, lembro-me também que na época os professores alertavam para o fato de que não havia evidências científicas que atestavam a real existência dessa tribo.

            – Pois saiba que eles estavam errados! – gritou Roberto, saltando da poltrona com grande empolgação – Eu os encontrei! Sim, depois de exaustivas e onerosas buscas eu finalmente encontrei a tribo Kyngá no interior de Bagé!

            – Você encontrou os descendentes daqueles índios...?

            – Não! Eu encontrei a tribo original! O grupo que já circulava por estas terras séculos antes da chegada dos europeus!

            – Mas, Roberto... Como seria possível? – questionou Vinicius, tentando dissimular suas crescentes desconfianças quanto à saúde mental do amigo.

            – Eles não morrem, Vini... – sussurrou o anfitrião, com os olhos arregalados e expressão nitidamente perturbada – Pelo menos não do mesmo jeito que as pessoas normais!

            A partir desse momento, Vinicius desistiu de tentar dissimular suas preocupações. Levantou-se do sofá de forma abrupta e caminhou na direção do amigo.

            – Escute, Roberto... Será que você não está bebendo demais? Espero que não se ofenda, mas penso que...

            – Eu posso provar, Vini! – interrompeu Roberto, sacudindo o visitante pelo braço – Posso provar com facilidade! Ou melhor: a Taís vai lhe provar!

            – A Taís?! Que relação ela tem com essa história?

            – Foram os Kyngá que a curaram, Vini! Por Deus, foi preciso um grande sacrifício, mas eles a curaram! Marta sabia que valeria a pena se sacrificar!

            – Marta?!

            – Sim, a minha esposa, Marta. Ela concordou com tudo.

            – Roberto, eu não entendo o que você está dizendo...

            – Nós precisávamos provar aos Kyngá que éramos dignos de receber a ajuda deles. Então Marta aceitou se sacrificar. Ela foi devorada, Vini! Foi devorada por toda a tribo em um grande banquete lunar! Mas foi por uma boa causa.

            – Meu Deus, Roberto! Você está louco! Está completamente louco!

            Vinicius se desvencilhou e deu dois passos na direção da porta, fazendo menção de que iria embora. Porém, Roberto tornou a agarrá-lo pelo braço – desta vez de forma mais agressiva – e puxou-o através de um pequeno corredor que conduzia a outro aposento. Contrariado, o visitante preparava-se para protestar quando, já em um quarto diferente, teve diante de si a visão mais bizarra da qual poderia se recordar em seus trinta e poucos anos de vida.

            O aposento em que tinham acabado de adentrar possuía todas as paredes e janelas revestidas por pedaços de isopor e caixas de ovos, que desempenhavam a clara função de proporcionar um isolamento acústico ao ambiente. No meio do quarto havia um único objeto: uma jaula de pouco mais de dois metros de altura, composta por grossas e robustas barras de ferro. No seu interior estava Taís, a filha de Roberto. A menina, que tinha oito anos de idade, usava um vestido azul com detalhes em branco. Os cabelos loiros que pendiam em cachos de sua cabeça eram escassos, se comparados a outras épocas, e denotavam a fragilidade natural decorrente de um tratamento quimioterápico. Contudo, esse era o único sinal de debilidade que Vinicius identificou na criança. Em todos os outros aspectos ela parecia muito bem, de forma que o visitante chegou a supor intimamente que ela parecia possuir naquele instante uma vivacidade maior do que em qualquer outro momento do passado. Porém, havia algo em seus grandes olhos azuis que gerava desconforto. Um brilho anormal, que parecia denotar um misto de força, ódio e até mesmo perversidade. Vinicius – que até então vinha sendo dominado por uma crescente sensação de angústia – teve um calafrio e sentiu suas pernas vacilarem sutilmente ao ser encarado pela menina.

            – Roberto, eu não sei o que significa tudo isso... Mas eu vou embora e chamarei a polícia! Chamarei a polícia agora mesmo!

            – Ora, Vini! Não seja tão melodramático! – exclamou Roberto, com um sorriso doentio realçando-lhe as feições – Você está assim por causa da jaula? Pois saiba que ela é provisória. Estou confiante de que, dentro de pouco tempo, a Taís vai aprender a lidar melhor com a sua nova natureza e então não precisarei mais prendê-la. Creio que em breve ela poderá circular livremente, mesmo nas noites de lua cheia, como hoje.

            – Meu Deus! Eu não...

            – Lobisomens, Vini! – interrompeu Roberto, com um gesto teatral – Os Kyngá são todos lobisomens. Não é a toa que foram chamados em outras épocas de “Os Guerreiros da Lua Cheia”. Agora a minha pequena Taís é como eles... Não vai mais envelhecer, não vai mais adoecer... Nem vai morrer, desde que tenha o cuidado de evitar a prata. Mas convenhamos: essa é uma precaução perfeitamente aceitável, não é mesmo?

            Vinicius permaneceu em silêncio. Estava pasmo com as palavras delirantes do amigo. Sua única vontade era ir embora. Mas Roberto interveio de forma providencial.

            – Certo, certo! Estou vendo que o seu ceticismo só aumentou com o passar do tempo, Vini! Já vi que minhas palavras não bastam para convencê-lo. Está esperando um prova para finalmente acreditar, não é mesmo?! Pois que assim seja!

            Rapidamente, Roberto se embrenhou através do mesmo corredor através do qual havia conduzido o visitante e, depois de breves instantes que para Vinicius pareceram uma eternidade, retornou trazendo no colo um filhote de pastor alemão. Aproximou-se de jaula e colocou o pequeno cão para o lado de dentro. Em seguida, dirigiu-se para a menina – que observava o animal com um sorriso macabro nos lábios – dizendo:

            – Vamos, Taís! Mostre para o tio Vinicius a sua força! Mostre! Mostre!

            Prontamente, a menina consentiu, primeiro emitindo um urro tão potente que pareceu impregnar o ambiente de forma ensurdecedora, e em seguida entrou em um processo de metamorfose tão horrendo e desconcertante que fez com que Vinicius inconscientemente recuasse até a parede levando as mãos à cabeça, consternado. Diante do olhar apavorado do visitante e do sorriso triunfante do pai, o corpo delicado da criança se transformou em um ser monstruoso, coberto por uma espessa pelagem marrom e possuidor de presas e garras tão longas quanto afiadas. Seus olhos adquiriram tons avermelhados que pareciam flamejar e potencializar o brilho odioso e perverso de outrora. Dentro de poucos instantes, não havia mais nenhum vestígio da menina. Em seu lugar estava tão somente um monstro de feições lupinas aterradoras, tão grande que mal cabia na jaula.

            O pequeno cachorro – que até então tentava fugir desesperadamente se espremendo contra a tela de arame que revestia a parte inferior da jaula – foi agarrado pelo lobisomem que, em um gesto tão ágil quanto brutal, enfiou-o inteiro dentro de sua enorme bocarra e o mastigou de forma grotesca, fazendo os ossos estalar e o sangue verter por entre seus lábios hediondos.

            O horror desta visão foi demais para a mente abalada de Vinicius. Entregando-se definitivamente ao pânico, ele gritou de forma estridente e desesperada, para em seguida partir em uma fuga alucinada através do corredor. Atravessou a sala rapidamente e, quando chegou à porta principal da residência, começou a chorar de desespero ao constatar que a mesma estava trancada e a chave não estava ali. Sequer teve tempo para cogitar uma via de escape alternativa. Sentiu uma dor aguda na parte de trás da cabeça e depois tudo foi envolvido pelo silêncio e pela escuridão.

            – Estúpido! – vociferou Roberto, empunhando o martelo ensanguentado com o qual atingira o antigo colega de faculdade – Pessoas como você querem tanto conhecer a verdade, mas quando a tem diante dos olhos não conseguem suportar o peso da revelação. Gente assim não é digna de conhecer os mistérios que rondam por entre as sombras da noite.

            De forma um tanto desajeitada, Roberto começou a arrastar o corpo de Vinicius para o quarto da jaula, deixando para trás um pegajoso rastro de sangue no assoalho.

            – Pelo menos amanhã a minha querida Taís não precisará comer carne de cachorro...

 

* Conto publicado originalmente no livro Extraneus - Vol. 2: Quase Inocentes (org. M.D. Amado), de 2011.