10 de mai. de 2021

O CREPÚSCULO DE UM ÍDOLO


 

Por André Bozzetto Junior

 

“O mais corajoso dentre nós só raramente tem a coragem de afirmar aquilo que sabe verdadeiramente...” (Nietzsche)

 

            Eu nem me lembro ao certo quantos lobisomens já exterminei ao longo desta jornada. Sei apenas que foram vários... Mais de dez, provavelmente. O primeiro deles foi há muitos anos atrás e tratou-se do desgraçado que assassinou a minha noiva. A sensação de alívio e bem-estar que senti ao mandar aquele monstro nojento para o inferno foi indescritivelmente prazerosa, mas breve, muito breve. A partir de então, tenho me sentido permanentemente impelido a buscar novamente por aquela emoção, como se só ela pudesse aplacar a dor e a revolta que me foi imposta na noite em que presenciei minha adorável companheira sendo destroçada por uma besta licantrópica. Desde aquela época, venho empregado a maior parte do meu tempo e do meu dinheiro em uma permanente caçada a essas odiosas criaturas.

            O último caso a chamar a minha atenção por apresentar claros indícios de atividade licantrópica dizia respeito a uma minúscula e remota comunidade rural localizada no extremo oeste de Santa Catarina. O lugarejo foi notícia há alguns anos atrás quando um “animal misterioso” atacou e matou mais de uma dúzia de pessoas no intervalo de poucos meses e depois simplesmente desapareceu de forma tão súbita quanto surgiu, sem ter sido abatido, capturado ou ao menos devidamente identificado. Desde então, não houve mais relatos de mortes, mas ao longo do tempo várias pessoas foram dadas como desaparecidas depois de terem se aventurado naquela região. Eu já tinha conhecimento de um caso bem parecido ocorrido no interior do Rio Grande do Sul e, analisando a similaridade da situação, estava convencido de que havia um lobisomem aterrorizando aquela localidade.

            Viajando pelo oeste catarinense, deixei para trás a última cidade logo depois do meio-dia e perambulei durante toda a tarde por estradas de terra esburacadas e costeadas apenas por mata, exceção feita a uma ou outra pequena propriedade agrícola de aparência desolada e melancólica que esporadicamente se avistava na margem do caminho. Chamou a minha atenção o fato de que durante todo o trajeto apenas em duas ocasiões avistei pessoas pelos arredores e em ambas as circunstâncias ela pareceram me observar de forma desagradável e até mesmo hostil.

            Quando finalmente cheguei ao núcleo comunitário da vila de agricultores, o entardecer já se pronunciava no horizonte e a decadência daquilo que avistei ganhava assim contornos ainda mais fantasmagóricos, uma vez que nada havia ali além de uma pequena igreja e um galpão que fazia às vezes de bar e salão de festas. Ambas as edificações se encontravam em péssimas condições de conservação. A igreja, particularmente, aparentava tamanho desleixo que passava a impressão de que poderia ruir e desabar a qualquer momento. Nenhuma residência era visível nos arredores, o que me fez entender que os habitantes da região viviam em sítios de localização ainda mais remota e só se reuniam no núcleo comunitário ocasionalmente. Naquele momento em especial, havia apenas três ou quatro homens no interior do bar e, tão logo estacionei meu carro diante do prédio, passaram a me encarar de uma forma que interpretei como sendo um misto de surpresa e desconfiança.

            Ao me aproximar da entrada do recinto, avistei sem dificuldades os profundos sulcos na parte de fora da porta de madeira, que para mim logo indicaram uma evidência da presença de um licantropo na área, uma vez que aquele tipo de arranhão tão singular não poderia ter sido produzido por outra espécie de animal. Do lado de dentro do prédio, quase deixei escapar um sorriso de satisfação quando percebi que o lado interno da porta e as janelas eram reforçados por grossas dobradiças e robustas barras de ferro. De imediato compreendi que aquele local deveria ser utilizado com relativa frequência pelos moradores da região como uma espécie de abrigo coletivo, capaz de protegê-los nas noites de lua cheia de uma evidente ameaça licantrópica. Acreditei assim que a minha intuição havia sido certeira.

            Simulando descontração, me aproximei do balcão, pedi uma cerveja e comecei a interrogar os poucos presentes sobre as cascatas e demais belezas naturais que, graças a uma antiga matéria de uma revista, eu soube que existiam na região. Acrescentei ainda que morava em Florianópolis e que tinha me deslocado até ali a passeio, uma vez que a minha intenção era passar vários dias perambulando pelo oeste do Estado. Com certa relutância, aqueles homens rudes me explicaram – com um sotaque muito carregado – que as tais cascatas ficavam em lugares de difícil acesso e que, obviamente, eu só conseguiria chegar até elas durante o dia.

            Aproveitando a deixa, expliquei que pretendia passar a noite acampado nos arredores e que partiria para o meu passeio ecológico na manhã seguinte. Conforme eu previa, os caras ficaram inquietos ao ouvir a minha ideia e – com perceptível embaraço – acabaram me dizendo que não era seguro pernoitar em um acampamento e sugeriram que eu permanecesse no bar até o fim do expediente e depois ficasse hospedado na casa do morador mais próximo. Prontamente, agradeci pela gentileza e depois evitei levar a conversa adiante. Era noite de lua cheia e eu estava convencido de que, mais cedo ou mais tarde, o assunto do lobisomem inevitavelmente viria à tona e, se tudo corresse conforme o planejado, eu poderia meter uma bala de prata na cabeça do desgraçado e finalmente livraria aquela pobre gente do tormento que os assombrava.

            Pedi algo para comer e me serviram um prato minguado com pão, queijo e salame e ainda assim parecia ser o que de melhor tinham a me oferecer. Sentei em uma mesa próxima da porta e fiquei observando o movimento enquanto comia. Na mesma velocidade em que a noite chegava, mais e mais pessoas apareciam no bar. Invariavelmente, todas olhavam para mim com expressões graves e de certa forma apreensivas. Pensei que estavam simplesmente constrangidas com a minha presença, decerto imaginando que explicações me dariam quando o licantropo começasse a espreitar pelos arredores. Novamente, apenas simulei indiferença.

            Quando terminei de comer, o bar já estava completamente lotado. Devia haver pelo menos umas cinquenta pessoas ali dentro e o clima de tensão que se construiu era tamanho que no interior do recinto ouviam-se apenas murmurinhos, cochichos furtivos entre aquelas pessoas que me observavam de uma forma que já era praticamente acintosa. Aquela incômoda situação passou a me transmitir uma sensação de velada ameaça, mas, infelizmente, quando cogitei me levantar e fazer algo, já era tarde demais. Alguém se aproximou furtivamente pelas minhas costas e desferiu um violento golpe na minha cabeça, fazendo com que eu perdesse os sentidos.

            Não sei quanto tempo fiquei desacordado, mas quando despertei logo percebi que estava deitado na relva, do lado de fora do bar. Constatei prontamente que os meus agressores permaneciam trancados no interior do recinto, me observando através das frestas das janelas. Quase ao mesmo tempo, escutei também um rosnado vindo do interior escuro da mata circundante e então julguei ter compreendido tudo: eu estava desempenhando o papel de uma espécie de oferenda. Cansados de serem infernizados pela besta licantrópica que habitava a região e incapazes de encontrar uma forma eficaz de se livrarem dela, aqueles indivíduos rústicos e ignorantes apelaram para uma solução provisória: para evitar que os membros da comunidade fossem devorados pelo monstro, procuravam saciá-lo, oferecendo a ele banquetes ocasionais constituídos pela carne e pelo sangue de viajantes incautos que tinham a infelicidade de aparecer por ali durante os ciclos da lua cheia. Porém, comigo seria diferente.

            Sem suspeitar de que eu já desconfiava da verdade, os caipiras nem devem ter se dado ao trabalho de me revistar atentamente, pois embora o revólver e a espingarda estivessem no interior do meu carro – que já tinha sido removido dali – eu ainda trazia presa ao tornozelo a pistola calibre 22 devidamente carregada com projéteis de prata.

            Quando os arbustos se dobraram mediante a presença do monstro horrendo que se aproximava rosnando de forma ameaçadora, permaneci encolhido junto ao chão, fingindo estar petrificado pelo pavor. Discretamente, saquei a pistola e, tentando manter a frieza, aguardei pelo momento certo de entrar em ação.

            Acostumado a abater vítimas indefesas e tomadas pelo medo, o lobisomem se aproximou de mim de forma lenta e sem a ferocidade que é característica desse tipo de criatura, como se estivesse convencido de que não seria preciso nenhum esforço para me reduzir a pedaços. Quando ele já estava perto o suficiente para me permitir sentir o fedor nauseante que exalava do seu corpo asqueroso, decidi que hora de agir. De maneira decidida, me levantei com a pistola em punho e a apontei para a cabeça do monstro. Sem pestanejar, disparei três tiros certeiros que perfuraram a face medonha da criatura, fazendo com que ela caísse morta soltando apenas um grunhido que me pareceu muito mais de surpresa do que propriamente de dor. Segundos depois, o que estava caído diante de mim já não era mais um monstro gigantesco e bizarro, mas sim um homem de meia idade de aparência extremamente comum, o que me fez refletir novamente – ainda que apenas por um breve instante – sobre o quanto é perturbador saber que podemos estar diariamente em contato com um lobisomem sem jamais suspeitar que ele possa ser um de nossos vizinhos, o padeiro do bairro ou o bêbado esquisito que avistamos de vez em quando no boteco da esquina.

            Eu ainda estava distraído com esses pensamentos quando ouvi o barulho da porta do bar sendo aberta às minhas costas. Antes mesmo que eu pudesse me virar, um disparo ecoou pela noite e senti meu corpo sendo atirado ao chão com uma dor muito intensa no ombro direito. Surpreendido e debilitado pelo tiro, apaguei novamente.

            Quando despertei pela segunda vez, acreditei que já tinham se passado muitas horas e constatei de imediato que alguma coisa extremamente ruim havia acontecido. Eu me sentia de uma forma como jamais havia me sentido antes e essa sensação era tão indescritível quanto terrivelmente perturbadora. Apavorado, percebi que meu pescoço estava preso por uma corrente incrivelmente grossa e pesada, cuja outra extremidade estava firmemente fixada em um pilar de concreto. Só então me dei conta de que estava no interior da decadente igreja local e que toda a população da comunidade deveria estar ali, me observando com expressões perversas e doentias que eram realçadas pela luz fantasmagórica das tochas e das velas que iluminavam de forma tétrica o ambiente.

            Como se querendo aumentar ainda mais o meu desespero, o dono do bar local se aproximou e apontou o dedo para um ponto específico às minhas costas. Quando me virei, dei de cara com o corpo nu e crucificado do antigo lobisomem suspenso em sua forma humana no alto de uma parede. Percebi que, além dos ferimentos provocados pelos tiros disparados por mim, ele ostentava também um profundo corte na garganta, de onde visivelmente havia escorrido muito sangue. Foi apenas nesse momento que me lembrei do meu próprio ferimento. Como não estava sentindo dor alguma, levei a mão ao ombro e tive a impressão de que a lesão já estava praticamente cicatrizada. Creio ter sido nesse momento que passei acidentalmente a minha outra mão pelo rosto e percebi que ele estava lambuzado por uma grande quantidade de sangue que, aparentemente, não era meu. Depois de alguns instantes de angustiante reflexão, comecei a literalmente chorar de desespero. O enigma tinha sido desvendado.

            – Você matou a nossa divindade! – gritou o bodegueiro, apontando para mim de forma ameaçadora – Pois então agora ficará no lugar dela!

            Sim, uma divindade. Era isso que o lobisomem representava para aquela comunidade miserável e esquecida por todos. Um ídolo pagão e profano que desempenhava a função de manter aqueles indivíduos unidos em torno de um objetivo comum: a realização periódica de assassinatos de teor ritualístico que funcionavam como um culto blasfemo e perverso a algo que eles consideravam extraordinário... Algo que eles temiam e respeitavam na mesma proporção e que, de certa forma, os tornava especiais.

            É evidente que, enquanto eu permaneci desacordado, aqueles desgraçados me fizeram ingerir o sangue do lobisomem abatido. Agora este fluído vital amaldiçoado corre pelas minhas veias e a hedionda energia licantrópica pulsa em meu interior, se apossando a cada segundo de um pedaço maior da minha mente e da minha alma. Sinto que a lua cheia está raiando e com ela o monstro também emergirá das profundezas do meu ser. Estou condenado, para sempre.

            Ao contrário do que eu almejava em minha arrogância e pretenso altruísmo, o ciclo de horror que impera nessa região abandonada por Deus não terminou, mas apenas mudou de nível. Um antigo ídolo tombou, um novo ídolo surgiu, a maldição continua... E o culto também. 


4 de mai. de 2021

A NOITE DA VERDADE

 

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Robério estava exultante. Havia saído de uma jornada de trabalho monótona e cansativa como outra qualquer, e, por ser sexta-feira, decidiu fazer aquela escala tradicional no seu bar favorito antes de retornar para casa. Foi aí que as coisas começaram a melhorar. Uma garota chegou de repente e sentou-se no balcão, ao seu lado. Ela tinha pele clara, cabelos negros, longos e lisos, e usava um vestido vermelho, curto e sensual. Possuía também olhos escuros e atraentes que, sem nenhuma cerimônia, passaram a encarar Robério de forma provocativa. Depois de dez minutos os dois já estavam bebendo e conversando animadamente. Uma hora mais tarde o casal se encontrava entrando na casa da moça de forma afoita, entre beijos calorosos e carícias lascivas.

            – Preciso ir ao banheiro. – disse Robério, enquanto tirava o casaco.

            – É a porta no final do corredor – indicou a moça apontando para a direita, ao mesmo tempo em que descalçava os sapatos. – Vou te esperar no quarto. Venha logo.

            O rapaz seguiu na direção indicada com um sorriso estampado no rosto, acreditando que a sorte havia lhe estendido a mão. Porém, poucos segundos depois, essa sensação de euforia revelou sua face ilusória. Quando chegou à entrada do banheiro, Robério olhou casualmente para a porta localizada no lado esquerdo e, através de uma fresta entreaberta, vislumbrou algo que fez o seu sangue gelar. Aparentemente não era nada de extraordinário, apenas um monte de coisas – algumas parecendo serem muito antigas – espalhadas aleatoriamente pelo chão de um quarto sem mobília nenhuma. Havia peças de roupas, tanto masculinas quanto femininas, de várias cores e modelos diferentes, joias, óculos, maletas, molhos de chaves, bolsas, carteiras, chapéus e calçados, além de alguns objetos de natureza diversa, como discos de vinil, celulares, fitas K7, aparelhos de MP3 e outros artefatos do tipo.

            Robério não sabia o significado daquilo tudo e, ainda que a sua mente se esforçasse em afirmar que não era nada de mais – talvez a garota trabalhasse com antiquários – crescia em seu interior uma terrível sensação de angústia, do tipo que muito raramente se manifesta, mas que quando surge é indicativo que algo de ruim vai acontecer.

            – Eu falei que o banheiro era na porta no final do corredor. – disse a moça, surgindo às costas de Robério de forma tão sorrateira que o susto fez seu coração disparar.

            – O que são todas essas coisas?! – indagou o rapaz, com voz trêmula.

            – Droga, eu pensei que a gente iria transar – suspirou a moça, em tom pesaroso – Porque você precisava xeretar aí?

             O que são todas essas coisas?! – repetiu Robério, quase que totalmente invadido por uma sensação de pavor tão palpável que fazia o suor escorrer pelo seu peito e empapar sua camisa.

            – São souvenirs. – respondeu a garota, de forma impassível.

            – Souvenirs?! Que tipo de souvenirs?!

            – Lembranças dos lobisomens que eu matei. – explicou a moça, dessa vez com um tom de voz estranhamente alterado.

            Robério deu um passo atrás e suas costas se chocaram com a parede do corredor. Além da voz, algo mais parecia diferente na garota.

         – Eu sou um lobisomem que odeia outros lobisomens – continuou a moça, falando de forma pavorosamente gutural – e, quando os mato, gosto de guardar algo para recordação.

            Vendo a moça se transformando em algo inumano diante de seus olhos, Robério cogitou sair correndo ou ao menos gritar por socorro, mas, ao invés disso, o pânico que o dominava só permitiu que pronunciasse uma única frase com voz embargada:

            – Eu não sou um lobisomem!

            – Claro que não! – respondeu a criatura que agora muito pouco lembrava a bela mulher de outrora. – Você é apenas diversão e comida!

              No instante seguinte, o monstro agarrou Robério pelo pescoço, suspendeu-o no ar com extrema facilidade e lhe desferiu uma violenta mordida no ombro esquerdo. Tomado por uma dor absurda, o rapaz gritou, se debateu e esperneou, mas percebeu que seria impossível escapar das garras da besta. Quando as esperanças já lhe abandonavam junto com o sangue que escorria do ferimento, Robério percebeu que a criatura simplesmente o atirou no chão com truculência, fazendo com que fosse parar na divisa entre a porta do corredor e a sala de estar.

            Tentado resistir à dor lancinante que o atordoava, o rapaz observou com surpresa que o monstro passou por ele caminhando lentamente e adentrou na sala movendo sua horrenda cabeça para cima em movimentos circulares, como se estivesse farejando algo.

            Um segundo depois a janela à esquerda da sala explodiu em milhares de estilhaços quando através dela saltou outro lobisomem que aterrissou violentamente sobre o corpo do primeiro. Robério teve a impressão que desmaiaria de susto, mas, como isso não se consumou, ele pode observar as duas bestas se engalfinhando em uma luta mortal onde, em meio a sangrentas patadas e mordidas, rolavam pela sala inteira, derrubando e quebrando tudo que houvesse pela frente.

         Ainda que o monstro que atacara Robério resistisse ensandecidamente, era visível que a criatura recém-chegada levava vantagem, pois, graças ao ataque surpresa, conseguiu desferir de imediato uma devastadora mordida na garganta do oponente, o que ia progressivamente minando suas forças na medida em que o sangue fluía do ferimento.

            Depois de instantes que pareceram ao rapaz muito mais longos do que realmente foram, seus olhos vislumbraram o corpo nu e sem vida da garota estendido em uma poça do seu próprio sangue. Quase ao mesmo tempo, o monstro vitorioso iniciou uma bizarra metamorfose que o converteu à forma humana. Era um homem de meia idade, baixo, magro e de cabelos castanhos. Porém, o que realmente chamava a atenção em sua aparência era a profusão de cicatrizes espalhadas por todo o corpo – as piores no pescoço e nos ombros – e as anomalias que ele ostentava, como a ausência da orelha esquerda e uma deformidade na perna direita, que o fazia caminhar mancando.

            – Foi muito difícil te encontrar, mas dessa vez acabei com a sua raça, puta desgraçada! – exclamou o homem, sem dar atenção a Robério. – Você não foi a primeira a tentar me matar, mas roubar o meu trabalho de uma vida inteira, isso jamais!

            O sujeito caminhou com certa dificuldade até o interior do corredor que levava aos outros aposentos da casa. Nesse meio tempo, Robério se escorou na parede e tentou se levantar. Teve a impressão de que conseguiria, mas, como o indivíduo retornou logo em seguida, julgou mais conveniente ficar sentado, imóvel e em silêncio.

            O homem reapareceu na sala carregando uma maleta de couro antiga e surrada. Ergueu do chão uma cadeira e sentou-se com o objeto no colo. Havia um enorme sorriso de satisfação no seu rosto.

            – Essa puta achou que tinha me matado e ainda roubou a única coisa valiosa que eu tenho! – disse o desconhecido, se dirigindo pela primeira vez a Robério. – Ela devia ter se certificado da minha morte. Esse foi seu erro.

            O rapaz ficou surpreso com o tom de voz amistoso daquele indivíduo, e mais ainda quando ele abriu a pasta e começou a retirar de lá uma série de fotografias.

            – Veja – disse o homem, apontando na direção de Robério uma antiga foto em preto e branco onde se via um garotinho sorridente – Esse é o meu filho, Sílvio, a única coisa boa que fiz na vida.

            Em seguida, outras fotos foram sendo mostradas ao rapaz. A maioria era do mesmo menino, que devia ter uns três ou quatro anos de idade. Havia algumas em que o sujeito aparecia segurando a criança no colo e Robério reparou que nos retratos ele aparentava ter exatamente a mesma idade atual, mas sem as cicatrizes e ainda com as orelhas intactas.

            – Ele morreu no ano passado, aos oitenta e quatro anos – disse o desconhecido, com lágrimas nos olhos – Me deu três netos e dois bisnetos, até agora.

            Como Robério apenas ouvia, sem nada responder, o homem prosseguiu com seu relato.

            – Eu fui atacado por um lobisomem pouco depois que as últimas dessas fotos foram feitas. Sílvio cresceu e viveu toda a sua vida pensando que eu havia morrido em uma caçada.

            – E você nunca tentou... – balbuciou Robério, tentando levar a conversa adiante, na expectativa de que a sorte voltasse a lhe sorrir e ele pudesse sair vivo dali.

          – Me reaproximar dele?! – completou o sujeito. – Claro que não! Eu logo entendi no que havia me transformado. Se eu não sumisse só iria desgraçar a vida de todos que amava. Mas eu sempre o acompanhei de longe. Chorei por não poder abraçá-lo nos momentos de dificuldade, vibrei com suas vitórias, sofri por não participar da sua vida, por não desempenhar o meu papel de pai nos bons e maus momentos. Mas, foi melhor assim. Ele teve uma vida boa e plena, foi um homem honrado e me deu muito orgulho. Lembrar disso me deixa feliz.

            O desconhecido fechou a maleta e levantou-se bruscamente da cadeira, fazendo Robério se encolher instintivamente contra a parede.

            – Eu não vou matá-lo – disse o sujeito, percebendo o medo do rapaz – Faz muito tempo que só mato quando é extremamente necessário.

            Robério nem teve tempo de sentir-se aliviado, pois o indivíduo logo se encarregou das más notícias.

            – Preciso lhe dizer algo: você foi mordido, portanto, agora é um de nós. Amanhã, quando a lua cheia surgir novamente, você vai se transformar numa coisa horrível como aquela em que eu e a vadia ali nos transformamos – o tom de voz do desconhecido era ao mesmo tempo calmo e pesaroso. – Vai virar um monstro furioso e descontrolado que atacará qualquer um que aparecer na sua frente. Não irá envelhecer e nem morrer, a não ser pela prata ou pelas garras de outro lobisomem, mas terá, na sua consciência, que conviver com o peso de todas as mortes que ocorrerem no seu caminho. E isso, meu rapaz, é a certeza de que um dia sua alma vai arder no inferno. Nenhum sangue pode ser derramado em vão.

            – Você disse que não mata há anos...! – resmungou Robério, sem conter as lágrimas que escorriam por sua face.

         – Se você não for morto e nem enlouquecer, o que acaba acontecendo com a maioria de nós, depois de um bom tempo e fazendo um grande esforço, talvez consiga ter controle sobre a transformação e certa lucidez na forma de fera. Mas, não se iluda, isso não garante nada. É como o alcoólatra que se embebeda para esquecer a sua vida de merda, mas, quando o porre passa, a merda toda continua lá.

            Desolado, Robério levou as mãos ao rosto e começou a chorar convulsivamente. O desconhecido observou a cena por alguns segundos e então tornou a sentar-se.

            – Eu posso lhe dar um presente! – disse o sujeito, com certa empolgação, ao mesmo tempo em que abriu novamente sua maleta e retirou algo de um fundo falso muito bem camuflado – Uma oportunidade que não foi dada a mim...

            Tentando conter as lágrimas, o rapaz olhou para o desconhecido e uma pistola calibre 22 foi oferecida em sua direção. Sem entender exatamente o que aquilo significava, Robério instintivamente pegou a arma com mãos trêmulas.

               – Está carregada com uma bala de prata – disse o indivíduo ao entregar a pistola – Tenho ela há muito tempo, para o caso de alguma emergência. Acredito que ainda funciona.

             – Você... você quer... que eu me suicide?! – balbuciou o rapaz.

            – Se fizer isso agora, estará destruído apenas o seu corpo. Se morrer depois de já ter se transformado e começado a matar, terá condenado também a sua alma.

            O sujeito começou a caminhar na direção da porta de saída, e então se voltou para Robério.

            – Acho bom você decidir-se logo.  Minha audição de lobo já está captando as sirenes da polícia a alguns quarteirões daqui. Devem ter sido os vizinhos.

            Sem acrescentar mais nada, o desconhecido saiu da casa e atravessou rapidamente o amplo pátio que o separava da rua. Não era nada sensato um homem nu e ensanguentado ficar zanzando a pé por aí carregando uma maleta, ainda mais com a polícia se aproximando. Por isso ele decidiu que precisava de um carro.

            Trinta segundos depois, um Gol branco surgiu descendo a rua. O desconhecido enfiou-se na frente do veículo, obrigando o motorista – um homem gordo e baixo, com um bigode volumoso – a frear bruscamente.

            – Preciso do seu carro. Você vai me entregar numa boa ou eu terei que matá-lo? – disse o sujeito, sorrindo em seguida e deixando à mostra enormes presas pontiagudas que, somadas aos seus olhos vermelhos reluzentes, davam um vislumbre do monstro que se ocultava sob a forma humana.

            Soltando um grito abafado, o motorista praticamente se jogou para fora do carro e saiu correndo o mais rapidamente que podia. Quando o desconhecido sentou-se ao volante, escutou o estampido de um tiro vindo do interior da casa de onde saíra.

            – Sábia decisão, garoto, sábia decisão. – murmurou ele, pisando fundo no acelerador.

27 de abr. de 2021

HORA DE LER UM LIVRO DE VAMPIROS

 

 

Por Adriano Siqueira

 

            O segurança da Biblioteca estava segurando uma lanterna e andava pelos corredores verificando as salas quando viu uma mulher procurando livros na estante. Ele cuidadosamente alertou:

            — Senhorita! A biblioteca já fechou. Você não deveria estar aqui nesta escuridão. Por favor você deve se retirar.

            A mulher continuava olhando os livros na estante e ignorou o aviso do segurança. Ele se aproximou mais e novamente tornou a alertar.

            — Você não ouviu o que eu disse? Já estamos fechados. Você não pode permanecer aqui. Por favor saia ou chamo a polícia.

            Ela olhou para o segurança e com alguns livros na mão disse calmamente:

            — Eu só estou escolhendo alguns livros para ler. Nada de mais. Continue o seu trabalho. Logo vou partir.

            — Você não pode levar nada daqui a esta hora. Deixe os livros aonde estão e saia agora mesmo.

            — Sinto muito, mas eu quero levar estes livros. Depois eu devolvo. Prometo.

            — Olha. Eu não posso deixar você fazer isso. Os livros aqui devem ter uma autorização para sair deste local. Sua promessa não é o suficiente. Por que não vem mais cedo e assim você pode pegar o seus livros.

            — Mas eu só posso visitar a biblioteca de dia. Eu só quero ler. Por que vocês humanos são tão egoístas e não deixam a biblioteca aberta 24 hs? Acham que só os humanos podem visitar as bibliotecas? Nós também temos o direito de entrar nos locais públicos. Vocês é que deveriam abrir as portas para todos. São raras as bibliotecas que abrem à noite. Eu vou levar estes livros. E minguem vai me impedir.

            A mulher levanta o segurança com apenas uma mão e o joga para longe.

            — Vocês humanos tem muito o que aprender. Nós sempre conseguimos o que queremos. Somos eternos.

            — Como pode ter tanta força? Q-quem é você?

            — Eu só digo meu nome para quem vai morrer.

            — Você é louca. Eu vou perdir ajuda.

            A mulher corre até o segurança e o levanta. coloca a mão no seu pescoço, se aproxima e concluí.

            — Você já tomou muito o meu tempo. Isso me deixou com fome.

            — O que está fazendo? Seus dentes... Não se aproxime.

            — Queria saber o meu nome... Eu sou Ramanga. E você é meu jantar.

            — Nãooo! Argh!

            A vampira pega seus livros e saí calmamente da biblioteca.